Vêm-nos
à memória os cheiros suaves da terra, da urze do monte, do fumo da lareira, sentimos no rosto as carícias
do orvalho da manhã, a frescura da brisa que vem da serra e que, por vezes
é cortante como lâminas, outras suave como mãos de dama macias e cândidas.
Recordamos
as jaculatórias das matinas rezadas brevemente e os terços repetidos e cadentes
depois dos toques das Trindades sentimento profundo e crença inabalável no Além
e no culto à Virgem Santa Maria, aquela mãe que nos acalenta a esperança de uma
vida melhor desde o nascimento até à morte, sentimos a fé na multidão de santos
e anjos que nos acompanham na existência e por quem invocamos nas horas menos
boas da vida ou nas trovoadas: “santa Bárbara bendita que no Céu está escrita
com devoção e água benta nos livre desta tormenta”.
Ouvimos
o crepitar suave da lenha que estala no braseiro de pedra, o ranger dos carros
de bois que passam na rua feita de pedra que canta, escutamos o pulsar da
terra, o chiar das alheiras sobre o braseiro, escutamos o suave tostar da
grossa fatia de trigo que aloura na ardência do lume para ser regada com fio de
azeite ou ainda com fatia de unto salgado ou carne gorda curtida.
Inalamos
o aroma suave das sopas que lentamente se cozinham nos lares de pedra onde o
lume aceso com a caruma ou carqueja estala, fazendo melodias gritantes de
sabedoria milenar e de apelo ao apetite.
Sentimos
saudades das carícias da avó que nos ensinava as cantigas que já ninguém canta
e as ladainhas corridas e populares: “com Deus me deito, com Deus me levanto,
São José na cabeceira, Santa Maria de dianteira e mais os anjos da guarda,
Jesus Cristo me proteja a vida inteira…”, o santo nome de Deus todo o dia nas
suas bocas pedindo protecção.
Salivamos
ao folhear as páginas de doces tradicionais, e na memória o Natal salta com os
aromas de mel, canela e limão nas travessas fundas afogadas de arroz doce e
aletria, montanhas de rabanadas regadas com vinho fino, os mexidos feitos de
pão seco enriquecidos com amêndoas e nozes e uvas passas e pinhões.
Perdemo-nos
nas romarias às divindades da Terra, protectoras de todo o mal e delícia
pantagruélica nas mesas de piqueniques em toalhas aos quadrados ou de linho
estendidas pela relva ou mesa de granito, as condessas de palha recheadas de
bolinhos de bacalhau e o arroz de forno embrulhado em folhas de papel de
jornal.
Temos
neste livro memórias e saudades de muitas coisas vividas, outras que
gostaríamos de ter vivido, sentimos falta do que não tivemos e do que tivemos e
perdemos. Existe neste livro sabedoria tanta e tamanha que em cada receita
ressalta a vida, em cada página pedaços de vivência e a capacidade do Homem em
superar as adversidades da natureza.
Constroem-se
pontes de desejos para o passado da nossa imaginação, mas que ainda hoje é real.
Abrem-se as portas à procura de uma terra que já nos parece tão longe e irreal.
É
um livro que nos faz sonhar com o pão saído do forno a lenha, quente e a
fumegar, partido com as duras mãos e saboreado com sofreguidão, comido com mel
ou azeite… ou apenas e somente com a deliciosa sensação de degustar uma vez
mais a sabedoria que nos é servida.
Depois
o nosso olhar perde-se nas imensas fotos e testemunhos de um mundo que queremos
perpetuar, como as nossas histórias de meninos que pedíamos, ou que gostávamos
de ter pedido, vezes sem conta, para que nos fossem contadas…
…Era
uma vez uma aldeia muito escura, feita de xisto, mas que tinha uma luz imensa
vinda de uma certa luz de candeia que, quando acesa, iluminava a alma de quem
lá morava e irradiava tanta, mas tanta luz, que mesmo os que estando longe,
muito longe, se a não viam, a sentiam e tinham vontade de ir ao seu encontro…
Aldeias do Xisto feitas dessa pedra negra e de tantas estórias e receitas que o
tempo não apagou e que nos traz e nos dá a lição da vida em suaves garfadas e
colheradas de doçura e ternura, como a malga do caldo adubado com fio de azeite
que ilumina e sacia a nossa alma.
Chefe Hélio Loureiro
in Sabores da Aldeia, Edição ADXTUR – Agência de Desenvolvimento
Não
resistimos a transcrever na íntegra o excelente prefácio deste livro que além
de sabores, nos transmite saberes antigos e nos confidencia memórias das
tradições que constituem a nossa matriz cultural. Tentaremos em breves
apontamentos futuros dar-vos a conhecer “o que se comia, quando se comia e
porque se comia” retirando desta obra pedaços de saber que possam enriquecer o
nosso conhecimento.
Felicitamos
todos aqueles que contribuíram para a excelência deste livro, a Carta
Gastronómica das Aldeias do Xisto. Bem-haja!
A. Domingos Santos
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