“A propósito de um comentário que fazia hoje de manhã neste blogue, partilho convosco a história triste da Ligeira, que ainda hoje sofre as sequelas da experiência, queixando-se de dor ao mínimo toque, e tendo dificuldades em alguns movimentos. A situação que esteve na base da história passou-se há uns anos, o texto foi escrito o ano passado, conforme data constante. As ilustrações fantásticas e ternurentas são da autoria da minha filha Catarina Matos.”
Este pequeno texto acompanhou a história da Ligeira, a cadelinha que pagou cara a sua curiosidade e traquinices sendo vítima de armadilhas que a mão humana colocara naquele espaço de cultivo. Parabéns à Dr.ª Lisete de Matos por mais este generoso contributo que vem enriquecer o blogue da União e parabéns também à sua filha Catarina pelas excelentes ilustrações. Igualmente para si caro visitante deste blogue, os nossos parabéns pela oportunidade que lhe proporcionamos de apreciar este belíssimo trabalho.
Este pequeno texto acompanhou a história da Ligeira, a cadelinha que pagou cara a sua curiosidade e traquinices sendo vítima de armadilhas que a mão humana colocara naquele espaço de cultivo. Parabéns à Dr.ª Lisete de Matos por mais este generoso contributo que vem enriquecer o blogue da União e parabéns também à sua filha Catarina pelas excelentes ilustrações. Igualmente para si caro visitante deste blogue, os nossos parabéns pela oportunidade que lhe proporcionamos de apreciar este belíssimo trabalho.
LIGEIRA
OU
A HISTÓRIA
TRISTE DE UMA CADELA QUE FOI APANHADA NA VIOLÊNCIA DOS LAÇOS QUE OS HOMENS
ARMAM
Saíram
cedo caminhando lestos pela berma estreita da levada extensa que vem de sul.
Para trás ficavam a aldeia estendida e os velhos sentados ao sol radioso da
manhã.
Seguiam
indiferentes ao aroma suave das cantarinhas que ainda não tinham murchado, ao cucar
do cuco perto e às risadas do peto pica pau longe. Bafejada pela brisa morna
que corria, a prenunciar calor intenso de verão na primavera amena, a folhagem
das árvores desenhava no chão figuras irrequietas que buliam manso.
Como
sempre, ela ia à frente, andando para cima e para baixo, para cá e para lá, em
grande velocidade … Por isso é que se chama Ligeira! De vez em quando, parava
cansada ou pensativa. Tinha–se deixado engordar devido ao apetite devorador com
que ficou depois da muita fome da infância abandonada, mas o pior eram a
curiosidade e a bisbilhotice.
Tudo
quanto mexesse servia para a distrair, perseguindo para melhor observar as
abelhas e as borboletas que beijavam o rosmaninho florido, as sardaniscas e as
cobras ariscas que dormitavam ao sol, os gafanhotos saltitantes e os passaritos
voantes que fugiam rindo a troçar dela. Exatamente como fizera aquela aventesma
da sombra de uma águia, que aparecia e desaparecia a desafiá-la dançando!
Embora
o tempo delas já tivesse passado, ainda se viam procissões lentas de lagartas
do pinheiro, a caminho da transformação mágica em borboletas formosas. Eram uma
tentação, mas ela sabia que são tóxicas. O companheiro que o diga: por causa delas perdeu parte
da língua, e só se salvou porque foi tratado a tempo!
Enquanto
isso, ele esperava pacientemente, perscrutando o horizonte com o nariz franzido
em busca do rasto que os atraíra. Não restavam dúvidas: estavam no bom caminho!
Se ao menos ela se despachasse! Por aquele andar não iam longe!
Mais
adiante, quando o coaxar duro das rãs verdes do poço de onde a levada provém já
se ouvia, embrenharam-se no mato, descendo para leste, pelo que parecia ser uma
antiga vereda íngreme e pedregosa. Alguém passara por ali recentemente, por
sinal um qualquer brutamontes que andou a deslocar pedregulhos, e a cavar por
toda a parte. À procura de quê? Talvez do minério de antigamente, cogitou ele,
enquanto ela chutava divertida as pinhas roliças e as pedras abaladiças que
encontrava.
Subitamente,
um outro odor intenso sobrepôs-se ao que perseguiam. Pé ante pé, coração aos
pulos, puseram-se à escuta, espreitando, primeiro por entre a rama verde de um
ervideiro carregado de medronhos miudinhos, seguidamente junto a um pinheiro.
Deitada ao sol estava uma raposa balofa de tão precisada que andava, a vigiar
umas bolinhas tontas que rebolavam aos trambolhões, lutando e mordiscando-se.
Aprendiam e treinavam assim a coragem e a astúcia que distinguem as raposas, e
de que aquelas bem precisavam para sobreviver em território tão adverso quanto
aquele.
-
Uma graça! Uma ternura! - exclamava ela, que não via a hora de ter filhos. – Um
encanto!
Que sorte encontrá-los! As raposas rareiam, e gostam de andar à noite!
Que sorte encontrá-los! As raposas rareiam, e gostam de andar à noite!
Mal
se apercebeu da presença do casal, a raposa fugiu apressada, com os pequenos
atabalhoados à frente. Sem necessidade, comentou ele. Afinal são parentes
próximos, e conheciam-se de longa data!
-
Olha lá … - perguntou ela - não estavas à espera que a matreira nos convidasse
para casa ou estavas? É uma ingrata! Já se esqueceu do silêncio que fazemos,
quando ela anda lá pela aldeia à coca de galinhas gordas descuidadas. Coisa que
não abunda, diga-se de passagem, desde que muitas pessoas partiram por causa do
esquecimento a que foram votadas.
Pelo
caminho, encontraram outros bichos que não souberam identificar, apesar de ela
ter insistido em os ver de perto. O mais misterioso deu-lhes que pensar!
Coelho
ou lebre não era, que esses terão desaparecido devido à caça furtiva, aos
incêndios e à falta dos alimentos que os humanos cultivavam. Papalva também
não, que para isso faltavam-lhe a cara de fuinha triste e o babete branco sobre
o peito. Seria gato toirão ou gineta? Não, não devia ser! O toirão é um bicho
garboso com uma cauda anelada comprida, a fazer lembrar o protagonista de Jorge
Amado no livro “O Gato malhado e a Andorinha Sinhá”. A ajuizar pela cor
desgostosa e pelo porte comprido e atarracado, devia ser um saca-rabos! Pena
que faltassem as crias em fila indiana, a agarrarem a cauda umas das outras
para não se perderem! Foi esta prática que valeu à espécie o nome que tem.
Sempre
a descer pela encosta agreste, atravessaram com os pés doridos das rugosidades
do chão áspero uma zona onde as árvores tinham sido abatidas. Parecia um campo
de batalha, tantos eram os destroços que atapetavam o chão e o lixo que o
sujava. Para além de ambiental e paisagístico, a floresta é um recurso
económico. Mas, haja Deus! Não poderia o espaço ser deixado minimamente limpo
para facilitar a regeneração e reduzir o potencial combustível? Não percebiam!
Assim era a exploração insustentada de um recurso que a natureza leva anos a
produzir.
Chegados
à ribeira, aí é que foi bom! Aparentemente, o sítio encontrava-se abandonado há
muito. Os lameiros de cultivo estavam cobertos de silvas, e de os moinhos de
água restavam apenas vestígios. Estavam parados desde o início dos anos setenta
do século passado, quando o êxodo levou o resto dos novos para Lisboa, e os
velhos deixaram de ter forças para cultivar milho, e ir ao moinho.
Parecia
uma floresta virgem fantasmagórica, devido às trepadeiras que pendiam e aos
líquenes e musgos que cobriam as fragas e os troncos velhos. Pela nesga
visível, as árvores ameaçavam furar o azul do céu em busca de luz. Entre muitas
outras, lá estavam as espécies que terão feito parte da flora original da
região, datando de há cerca de dois milhões de anos: o folhado florido e a
lentisca, o azereiro ainda sem flor, a aderneira também florida, o carvalho
alvarinho, o feto-real e outros …
Embora
não fossem muito sensíveis à delicadeza das herbáceas, repararam no amarelo
suave das flores de pão e leite e no azul estrelado das cilas que enfeitavam as
barreiras húmidas expostas ao sol.
Faltavam
as pessoas, mas sobravam o bulício e a vida!
Com
a cabecita a tombar de um lado para o outro, do alto da árvore onde se
refugiara, um pequeno esquilo preto observava-os curioso. Irritada com aquela
invejável mania das alturas de alguns bichos, ela gritou-lhe cá de baixo:
-
Insignificância! Atrevido! Gordo! Maluco! Rabudo! Patusco! – Mimoseava-o com
nomes familiares, tendo o cuidado de evitar os que lhe chamam quando se
entretém a espantar gatos! Satisfeito com a companhia, o esquilo ria-se,
airoso:
- hi, hi, hi ...; hi, hi, hi …
No
poço aberto pela água mole da cascata a bater na pedra dura do leito fundo,
viam-se rãs saltitantes - seguramente rãs ibéricas, que gostam de água corrente
- alfaiates flutuantes, peixes-cabeçudos na forma e no feitio, lesmas muito
lesmas, cobras-de-água onde antes, libelinhas asadas azuis, fuscas e
avermelhadas.
Embora
a tenham procurado por toda a parte, não viram a tímida lontra que lhes tinham
dito viver por ali. Das trutas e enguias de que falam os antigos, também nem
sinal. É provável que tenham abalado com as pessoas, em busca de terras e águas
mais promissoras! Havia dois pássaros a cantar, mas eles só conheciam os que
andavam na aldeia e proximidades.
O
desconforto que ambos começavam a sentir fê-los pensar que eram horas do
almoço, e que em casa iam dar pela sua falta com preocupação. Já agora, porém,
o melhor era continuarem! Almoçariam no regresso, depois do ralhete carinhoso
com que costumavam ser recebidos quando se atrasavam. Entretanto, iludiriam a
fome bebendo da água fresca e cristalina que saltava nas pedras, a
precipitar-se para o rio. Descansariam também, enquanto desfrutavam da harmonia
e da magia do lugar, e ela aproveitava para se refrescar, de papo para o ar
confiante, sentindo o ventre imberbe festejado pelos murmúrios que corriam.
-
Por mim, ficava aqui para sempre! Claro, se não tivesse fome nem saudades! - O
comentário só podia ser dela.
Pouco
depois, retomaram o caminho, agora a subir por entre a sinfonia indescritível
dos tons, sons e aromas que tocavam e cantavam naquele palco fascinante.
No
começo, gentil, ele continuou a esperar, sempre que ela se atrasava fazendo
incursões pelo mato ou rebolando deslumbrada. Mas deixou de o fazer, quando o
odor que procuravam se tornou tão intenso e irresistível, que largou a correr
pela encosta acima. Entretanto, também ela seguira um trilho diferente, no
regresso de uma das suas deambulações. Do mal, o menos, pensou, já que se
tinham perdido um do outro, aproveitaria para ver tudo bem!
E
foi o que fez, sem reparar que se encontrava numa zona de terrenos cultivados,
onde a presença humana recente era evidente. Desta vez, não precisou de se
desviar do caminho para encetar mais uma pesquisa compulsiva e demorada.
Passava-se
ali alguma coisa de estranho. O que seria? Parecia que alguém tinha andado a
desarrumar e a arrumar de novo as folhas e os galhos caídos das árvores durante
o inverno. Espreita daqui, espreita dali, esgravata, cheirica, tateia …,
rodopia, avança, recua, esgravata, cheirica, tateia …, cheirica, tateia … De
repente, sentiu-se enlaçada pela cintura:
-
Ai! Ui! Que violência …!
Atónita
e assustada, olhou para trás, mas não viu ninguém. Sem atinar com a causa ou a
autoria de um abraço tão fino e apertado, procurou libertar-se, puxando e
contorcendo-se …, puxando e contorcendo-se …, puxando e contorcendo-se …
Insistiu durante horas, mas só a dor e o desespero aumentavam com aquelas
tentativas vãs de libertação. Sufocava sob o calor intenso do sol a pino, tinha
fome, tinha sede …
Já
perto da noite, chegou-lhe de longe repetida pelo eco a voz triste e melodiosa
do dono, a chamar:
-
Ligeira… ! Ó Ligeira! Fui, fui, fuiiii … Ligeira… ! Ó Ligeira! Fui, fui, fuiiii
…! Ligeiraaa …
-
Aqui, aqui … - gritava ela calada, a fala sumida da garganta seca, as palavras
silenciadas pela angústia e pelo medo. – Aquiiii …, voltem, voltem …
No
desamparo da solidão escura e aterradora da noite, gemia de fome e dor, tremia
de frio e medo. Tinha saudades do dono, de casa, das resmunguices do
companheiro … Impotente, desatou a chorar. Por si própria e por todos os
outros, bichos bravios ou domésticos, que se veem sujeitos ao sofrimento atroz
e prolongado da captura por armadilhas covardes e traiçoeiras. Para se
libertarem, há animais que chegam a roer partes do corpo, livrando-se das
garras que os prendem, mas não da morte certa devido aos ferimentos. Tudo por
causa da intolerância e da ganância de alguns humanos.
Estoicamente,
resistiu ao desânimo e ao passar vagaroso do tempo, encorajada pelas estrelas
que lhe sorriam do céu distante e pela coruja que piava da árvore próxima, a
dizer:
-
hu, hu, hu, huuu… Coragem, não desistas, amanhã será outro dia!E foi!
Com
o raiar tardio da manhã, já depois de ter assistido imóvel e sofrida à rendição
dos bichos sonolentos da noite pelos madrugadores do dia, aproximaram-se,
afagando-a suavemente, o sol nascente e o chamamento incansável do dono. O sol
espreitava por entre as árvores esguias e ralas de folhagem, o chamamento estava
mesmo ali ao lado, no estradão poeirento que serpenteia a serra:
-
Ligeira … Ó Ligeira! Ligeira …! Fui, fui, fuiiii … Ligeira … Ó Ligeira ….!
Ligeira! Ligeeeiiiraaa …..
-
Estou aqui, aqui …, aquii…, aquiiii … Esperem …, não me abandonem …
Nada!,
não conseguia soltar a voz, nem soltar-se, por mais que puxasse, apertando o nó
do laço e aumentando a dor. Quando o chamamento se perdeu no rumorejar da serra
e dos seus moradores, despediu-se com lágrimas de aflição dos amigos e da vida
de cão feliz que levara.
Mais
tarde, ouviu pessoas a falarem do malvado do javali que dava cabo de tudo,
desmoronando paredes e caminhos, foçando os terrenos cultivados qual arado. Era
preciso abatê-lo, sob pena de não se poder cultivar nada!
Começava
a perceber: tinha sido apanhada nas malhas da justiça feita por mãos próprias!
A fome e a sede insuportáveis fizeram-lhe lembrar a infância desvalida e o modo
como sobrevivera, insinuando-se por aqui e por ali até ser adotada. Apesar de
exausta, não ia desanimar:
-
Tenho de resistir! Custe o que custar, tenho de resistir …!
Apareceu em
casa ao anoitecer, cansada e cheia de fome, sangrando do rasgão fundo que o aço
cortante do laço lhe abrira no corpo tenro. Feliz, não parava de saltar, abanando
o rabito curto e beijando as mãos comovidas que a tratavam. Não queria falar, mas
acabou por contar o sucedido ao companheiro, que continuava envergonhado por
não a ter sabido localizar. Fora libertada quando já não aguentava mais, por alguém
que chegou armado com um varapau e outros objectos contundentes que preferia
não mencionar.
- Mal me viu, começou a ralhar comigo carrancudo, porque inutilizei o laço que ele tinha montado para apanhar javalis. Ele a gritar e a brandir o pau, e eu ali indefesa e apavorada, à espera do pior. Morria de medo! Depois de tanto sofrimento, só queria que fosse depressa! Foi então que me lembrei de o olhar suplicante, e ele me libertou contrariado, ameaçando matar-me se repetir a proeza de cair no laço. Como poderei evitá-lo, se ele que é humano e racional não evita o crime da caça furtiva e do uso violento de métodos cruéis e arcaicos?
Ainda
assim, generosa, persiste na esperança de ver os direitos dos animais
respeitados e os laços apenas usados para embelezar ou para prender o afeto e a
solidariedade entre os homens, e entre eles e os restantes seres vivos. Bom
seria haver no mundo lugar para todos!
Autora:
Lisete de Matos
Ilustrações:
Catarina MatosAçor, Colmeal (Góis), Abril de 2012
1 comentário:
Embora tardiamente não podia deixar de expressar a minha opinião: muito obrigada pelos muitos "mimos" com que nos presenteia há já algum tempo e que esperamos vivamente se repitam não só porque gostamos e os vamos recordar, mas também porque são dignos do reconhecimento do trabalho que nos apresenta, sempre com tanto carinho.
Mais uma vez muito obrigada e muitos parabéns. Beijinhos
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