21 setembro 2019

BELEZAS E RIQUEZAS DA SERRA. EM RECUPERAÇÃO



Depois de os incêndios de outubro de 2017, que ceifaram vidas e destruíram bens materiais e simbólicos irrecuperáveis, por diversas vezes me referi às consequências nefastas dos mesmos e ao lento processo de regeneração da natureza. Antes de voltar ao assunto para um ponto da situação, faz-se uma síntese dessas referências.

Em dezembro de 2017, aludia-se à escuridão triste e generalizada do território, mostrando nua a sua geomorfologia e, em ruinas, as marcas da ação do homem ao longo do tempo, para nele sobreviver com parcimónia e esforço.



Seguidamente, em fevereiro de 2018, lamentava-se o agravamento das assimetrias inter e intrarregionais provocado pelo fogo, nomeadamente no campo das telecomunicações, infraestrutura essencial para viabilizar a sustentabilidade das regiões, especialmente das mais deprimidas em termos demográficos e socioeconómicos. Mais tarde, em março, assinalava-se a destruição adicional provocada pela chuva, que na ausência de prevenção e vegetação que a prendesse à terra queimada, devastou mais património natural e construído, beleza e potencialidades.





Na altura, a esperança ténue traduzia-se no despontar de umas tantas ervas e plantas mais corajosas. Da ação pública nada a dizer, tal como na nota de abril, que celebrava o demorado mas paulatino rejuvenescimento da natureza.




Entretanto, retomando aqui o que dizia num outro contexto, nunca tantos e tão responsáveis falaram tanto sobre o interior, como se os incêndios tivessem despertado as consciências adormecidas que estiveram na origem da situação. Afinal, o que aconteceu foi apenas uma trágica mas natural consequência do abandono de sempre a que muitos territórios têm estado votados, com as inerentes penalizações económicos e culturais, de qualificação e massa crítica, de ocupação e uso do espaço. De modo muito convincente, insistiram na necessidade: de promover a coesão social e territorial, a discriminação positiva, a igualdade de oportunidades e a sustentabilidade das regiões; de investir no interior, de repor serviços de proximidade e descentralizar, tendo-se até criado novas Secretarias de Estado, como a da Valorização do Interior; de criar incentivos fiscais e outros para fixar populações e empresas; de prevenir os incêndios, nomeadamente através do reordenamento da floresta, do reforço da limpeza à volta das povoações e das medidas previstas no programa Aldeias Seguras, Pessoas Seguras. Sem água suficiente e bocas-de-incêndio?

Enquanto residente, e apesar de as solicitações que fizemos, não dei conta de grande coisa acontecer, para além de umas ações de sensibilização que pressuponham pessoas e meios que não existem. Quase dois anos passados, as habitações que arderam ainda não foram concluídas e o que foi limpo foi-o exclusivamente por iniciativa privada! A fibra ótica não chegou, não obstante as promessas do senhor Alexandre Fonseca, a quem se ouviu dizer, na rádio, que a Altice cobriria, inclusive os territórios de baixa densidade populacional, até ao final do ano passado. Sem fibra, a dependência da rede móvel faz com os serviços faltem dias inteiros ou partes do dia, sendo sempre de insuficiente qualidade por défice de sinal ou condições atmosféricas desfavoráveis. Mas pagamos o pacote como se recebêssemos os serviços nas condições teoricamente previstas! Em alguns troços da estrada, que onde esburacou persiste esburacada, a junta de freguesia cortou as árvores ardidas, um pouco por toda a parte, estão lá, a ameaçar os transeuntes que temem pela vida mas, não têm alternativa. Para não me repetir mais, nem falo das restantes necessidades básicas anteriormente mencionadas.

Determinada, a natureza continua em lenta mas persistente recuperação, igualmente sobretudo por iniciativa própria. Apenas a madeira ardida foi retirada em algumas zonas, por vezes a lucro zero para os proprietários (os roços verticais abertos não virão a contribuir para agravar a erosão?) e a plantação de árvores ocorreu, por exemplo, na limítrofe freguesia de Cepos. Episodicamente, arrancaram-se eucaliptos e outras invasoras, num esforço hercúleo para repor a ordem na desordem instalada.


Em termos de paisagem, a evolução tem sido surpreendente, nomeadamente no que se refere às cores e tons de que a serra se vai revestindo. Depois da timidez inicial, as encostas mostravam esta primavera, de permeio com os chamiços negros de pé, um colorido mais intenso. O verde acentuou-se com a renovação da generalidade da vegetação, enquanto os fetos secos do ano passado e as clareiras abertas pela exploração madeireira pintalgam formas cuja cor varia com a luz.







Infelizmente, também na natureza reinando a lei do mais forte, a par com os eucaliptos e as acácias, as giestas multiplicaram-se exponencialmente, tal como um conjunto de herbáceas expeditas que teimam em substituir os matos, acrescentando risco em caso de incêndio. Contam-se entre estas, as gramíneas, a alface-do-monte e a samacalo (Anarrhinum belidifolium), uma planta de pé lindíssimo em rosácea. Ainda no que respeita aos matos, as carquejas, que são extremamente resistentes, vicejaram e floriram de amarelo contentes, mas as várias espécies de urze, de flor avermelhada, atrasaram-se.






Confirma aquela observação a cor do mel, produto quase inexistente em 2018, que regressou este ano ainda desmaiado, mas em vias de recuperar as propriedades organoléticas que o tornam único, qs Amuito escuro, viscoso e agradavelmente acidulado.


Entretanto, devido à erosão e ao empobrecimento da massa genética, há áreas onde as formas arredondadas da serra teimam nuas e fragosas, num ondulado grandioso de deslumbramento e sedução!



No campo dos insetos, regressaram as abelhas, que tão importantes são para a reativação da natureza através da polinização e, com elas, mau grado nosso, montes de vespas comuns, asiáticas e crabro. Matando os insetos polinizadores, a vespa asiática ou velutina destrói os apiários, contribuindo para desequilibrar o ecossistema. Todas chamam um figo aos morangos!



Também já se avistaram mais borboletas, besouros e escaravelhos, todos encantadores. Invisíveis permanecem os mamíferos e os répteis, espécies interligadas. Muito comilonas, reapareceram as pequenas aves, embora tenham diminuído, comparativamente com o passado, os efetivos de tentilhões, verdilhões, chapins e piscos. Perto de casa, por falta de alimento longe, vi pela primeira vez um peto (no caso, pica-pau-malhado) a libertar uma ginjeira das formigas que a afligiam. Muito engenhoso e bonito, pena ser tão arisco!


Como a intensidade e a abrangência da mudança!

Açor, Colmeal, julho de 2019.

Lisete de Matos