19 dezembro 2019

NATAL N0 COLMEAL, 2019


Celebrou-se, no dia 15 do corrente, o Natal no Colmeal. Como constava do convite da União Progressiva da Freguesia do Colmeal (UPFC), a festinha visa os mais pequenos e os mais idosos, proporcionando “o (re)encontro de gerações, uns aguardando com expetativa o seu brinquedo, outros recordando tempos idos”. Na véspera, a UPFC esteve na Unidade Residencial Sagrada Família, na Cabreira, “para levar uma palavra de carinho e entregar uma prendinha aos seus utentes, alguns dos quais nossos associados.”




Acompanhados pelos pais e outros familiares, aguardavam e receberam brinquedos: a Margarida, a Sofia, o Tiago, o Miguel, o Mikael, o Salomon, a Maya, o Diniz, a Ambar, o Ulisses, o André, o Loan, a Frida, o Iúri, o Kiva e o Martim. Lindos, os mais pequenos parecendo anjos benfazejos, todos expressando a magia do Natal. Qual Menino Jesus, no berço, dormia tranquilo o Francisquinho, vigiado pela família atenta e carinhosa.










No que aos adultos se refere, havia gente de todas as idades e de várias localidades da freguesia. Falando apenas dos octogenários, uma emoção, a rijeza e a disponibilidade para estar junto de Carlos de Almeida e José Domingos (Ádela), Conceição de Jesus (Sobral), José H. Santos (Soito), Júlio Barata (Aldeia Velha), Maria Luísa Almeida, Maria Augusta e Jaime F. Almeida (Colmeal). A comparência – que agradecemos – de um grupo do Góis Moto Clube, que também presenteou as crianças, acrescentou partilha, juventude e garridice pai-natalícia ao evento.




Presentes, apoiando a iniciativa e a todos desejando boas-festas, o vereador municipal Dr. José Rodrigues, os membros do executivo da Junta da União de Freguesias de Cadafaz e Colmeal Sofia S. Oliveira e Jorge de Almeida, o Dr. António Duarte, em representação dos Compartes do Colmeal e da Comissão de Melhoramentos do Soito. Associando pessoas às respetivas coletividades, ocorrem-me, ainda, a participação da Associação Amigos do Açor, do Grupo de Amigos de Sobral, Saião e Salgado e da Liga de Amigos de Aldeia Velha e Casais, representados, respetivamente, por Amilcar Almeida, Carlos de Jesus e José Brás Vitor.



Enfim, um convívio transgeracional, cultural, institucional e territorial notável! Assim fora em tantas outras circunstâncias em que a inclusão, a interação e a complementaridade são necessárias e fariam a diferença!

Sentiram-se faltas? Sem dúvida. Desde logo, dos que não vieram, por impossibilidade ou outra razão justificável. Quanto a outras, o Dr. António Domingos Santos, presidente da UPFC, mencionou algumas, a todos nós ocorreram várias que assim se tornaram presentes, no íntimo dos corações e no devir incessante do tempo e da vida.

Como já terei dito noutras ocasiões, a tradicional festa de Natal da UPFC é uma celebração de que gosto particularmente. Pela multidimensionalidade convivial a que já aludi, mas também por se tratar de uma iniciativa solidária - agora adaptada à realidade social e demográfica da freguesia - que a UPFC organiza desde os finais dos anos quarenta, início dos cinquenta do século passado. As razões explica-as a Dr.ª Deonilde no assinalável trabalho com que acaba de nos presentear. Espalhados um pouco por toda a parte, quantos jovens, adultos e agora pais, incorporarão nas suas memórias o fascínio deste dia diferente?! Como eu, a lembrança dos livros que a UPFC me fez chegar, quando há mais de sessenta anos fiz a 4ª classe e a admissão ao liceu. Os livros desapareceram porque alguém precisou deles para os ler, a emoção e o contentamento persistem indeléveis. Possivelmente, devido à então raridade das prendas, da própria literatura infantojuvenil e dos conceitos de prémio e reforço positivo!

Depois desta divagação própria da idade pelas memórias distantes, volto às recentes para fazer dois agradecimentos muito sentidos, pessoalmente e em nome da mesa da assembleia geral da UPFC: a todas e todos pela participação, à direção da UPFC pela organização do evento, ambas expressão do espírito natalício que anima e do afeto que une.

No terceiro domingo do advento, em que a liturgia nos propõe um certo alívio no rigor da preparação para a Natividade, o celebrante chamou-lhe domingo da alegria e sublinhou a importância da mesma, sentida e proporcionada, para a concretização do mandamento maior do amor a Deus e ao próximo. No aconchego do calor humano e ardente da lareira, foi de alegria, amor e partilha que se tratou na tradicional de Natal da União Progressiva da Freguesia do Colmeal.


Desejo a todos um Natal muito feliz e um ano novo repleto do melhor.

Texto: Lisete de Matos
Fotografias: Leonor Martins e António Santos

14 dezembro 2019

Mais "Fragmentos da História do Colmeal"


Eram moços…

         Lembro-me de os ver, em criança, nas esquinas da baixa de Lisboa. Eram muitos, em grupos de dois ou três, muito empertigados, grande rolo de corda ao ombro e boné de pala brilhante, encimada com uma chapa metálica.

         Eram moços, “moços de fretes”, moços de nome, mas de idade… nem tanto! Também havia quem lhes chamasse “moços de esquina” ou até mesmo “galegos”.

         De tempos a tempos, lembrava-me deles, bem como de outras figuras da Lisboa da minha infância. Varinas, ardinas e tantos, tantos outros… vendiam sardinha “vivinha da costa”, carapau “de gato”, “figuinho da capa rota”, jornais com notícias frescas “Sécl’ó Diário e Bola!!!”, ainda a cheirar à tinta que sujava os dedos … vendiam alimentos, do corpo e do espírito.  Porém, os tais “moços” eram figuras intrigantes, pois não entendia o que eles tinham para vender. Pois se eles não apregoavam, que venderiam? Porque andavam em grupos?

Tantas perguntas sem resposta, até que, há tempos, por acaso, um dos seus descendentes – Artur da Fonte – me mostrou uma curiosidade documental, que desencantara numa antiga mala, que por lá andava esquecida: a caderneta profissional do “Moço” Manuel da Fonte, seu pai e, com ela, a chapa numerada que terá usado no boné e ainda um cartão, um “cartão de visita”, que o apresentava aos seus clientes, com uma certa elegância profissional. Objetos resgatados do esquecimento e que agora estavam expostos, amorosamente preservados, no seu museu de memória familiar e comunitária, que generosamente partilha com quem o visita, no Colmeal.




          Caderneta Profissional, crachá, cartão de visita… Moços de Fretes… ou seria “de esquina”? mas também lhes chamavam “galegos” … Aquela curiosidade antiga despertava de novo – tinha de procurar, tinha de descobrir mais sobre a vida daqueles homens, muitos (muitos mesmo!) nascidos na freguesia do Colmeal.

         Até ao início do século passado, quem lá nascia, tinha como certa uma vida de trabalho duro, numa agricultura muito pobre, que mal dava para sobreviver. As condições de vida eram de uma dureza atroz. Uma nova criança, mais do que uma bênção, era uma boca a mais para alimentar.

         Por volta dos seis anos, já poderia ser enviado para servir, como pastor, em casa de alguém mais abastado, provavelmente noutra aldeia. «O meu pai, o “Ti Hermano”, como era conhecido, contava que foi enviado para servir, com a idade de 6 anos, para Vale de Asna. Foi lá que teve o acidente que depois o deixou inválido, por isso depois foi moleiro»[1].
  
         A escola era privilégio de alguns. «Gostaria de ter estudado, ser alguém. Mas vim da província sem instrução” seria o desabafo de Alfredo Marques da Costa, um dos últimos “Moços de Fretes” colmealenses, em notícia publicada na imprensa da capital[2]. “Estudar” e “ser alguém” era o sonho que todos acalentavam…

         Sem estradas, sem telefone, sem posto de correio, o isolamento era quase total. Bem o recorda António Lopes Machado, nas suas “Crónicas e Memórias”[3], «pertencemos à Beira Litoral, mas o mar fica-nos longe, na Figueira da Foz e havia muita gente que nascia e morria de velho sem nunca ter visto o mar e andado de comboio».

A imensidão da “beira-serra” e do seu isolamento, captada pela objetiva do fotógrafo Jorge Barros [4]

As coisas só começaram a mudar com a nova Lei do Recrutamento Militar [5], sobretudo a partir de 1916, quando são chamados a prestar serviço militar todos cidadãos entre 20 e 45 anos. Esta saída forçada das suas aldeias, privou as regiões de grande parte da mão-de-obra ativa, mas mostrou aos homens que havia muito mais mundo do que imaginavam, para lá daquela barreira natural de montanhas que era o seu mundo. A partir daí, recusaram-se a continuar uma vida de sobrevivência e isolamento, a que pareciam condenados. E partiram[6]. A maioria rumo a Lisboa «em colónias, que é o grande tipo de emigração beiroa, o irmão a chamar o irmão, e o primo a chamar o primo, não há sítio no mundo onde não chegue o seu braço. Qualquer trabalho lhe serve»[7].

         Manuel da Fonte, com 22 anos, foi um desses migrantes do início do século XX. Seria “Moço”, Moço de Fretes, mas muitas vezes lhe chamariam “Galego”. A vila de Góis tem hoje um acordo de geminação com o município de Oroso, na Galiza, mas, naquele tempo, nenhuma ligação havia! O apodo de “Galego”, que lhes era atirado em tom provocatório, depreciativo, tinha origem antiga, associada à profissão.

Os primeiros galegos, fugindo da fome e da miséria, chegaram a Lisboa, no início do século XVIII, para trabalhar na construção do Aqueduto das Águas Livres. Terminada a construção, foram-se ocupando de todos os trabalhos pesados que ninguém queria fazer. A Câmara de Lisboa concedia-lhes licença para serem aguadeiros e Lisboa não vivia sem eles. Enchiam os seus barris de água nos chafarizes e iam apregoando pelas ruas da cidade – os clientes chamavam-nos e eles subiam as escadas dos prédios, para despejar o barril nos recipientes existentes nas cozinhas.


A falta de água em Lisboa era frequente e, com o século XX quase a chegar, ainda era motivo de caricatura de Raphael Bordallo Pinheiro[8] - os galegos são o amparo de uma Lisboa a desfalecer, enquanto o deputado e fundador da Companhia das Águas de Lisboa, Carlos Seferino Pinto Coelho, lhe apresenta a “Falta de Água”.

           Em troca da licença concedida pelo Município, os aguadeiros comprometiam-se a acudir imediatamente aos incêndios, com os seus barris cheios, reforçando a ação dos Bombeiros. 
 
         Mas seriam todos galegos? Em 27 de Abril de 1884, encontramos António Antão das Neves, “aguadeiro em Lisboa”, a testemunhar, como padrinho, o batismo, no Colmeal, da menina Maria da Piedade Gaspar das Neves, que há-de crescer, casar e, aos 19 anos, ser mãe do nosso “Moço” Manuel da Fonte[9].

Até ao início do século XX, muitos aguadeiros também eram moços de fretes – Joshua Benoliel, fotógrafo da “Ilustração Portuguesa”, regista a sua imagem[10], de corda ao ombro, enchendo os barris. Eram galegos, na sua maioria, eram aguadeiros e moços de fretes.


A regularização do abastecimento de água canalizada deixou-os sem clientes. Uns, regressaram à Galiza com as suas poupanças; outros, bons cozinheiros que eram, abriram os seus negócios, desde a tasca/carvoaria até aos restaurantes mais chiques. Poucos terão continuado na “arte” – as “esquinas” de Lisboa ficaram ao cuidado dos homens da Beira-Serra.

         Aguadeiros e Moços, eram profissões duras, dos que não podiam fazer mais nada, por não terem habilitações, mas que queriam ganhar o seu sustento com dignidade.

         Num dos contos de Vergílio Ferreira[11], deparamos com a seguinte passagem: «(…) Tirou um bilhete de terceira e veio para Lisboa. (…) Como tinha sido já moço de fretes, pareceu-lhe útil arranjar uma boina, com uma chapa e um número (…)». Dito assim, parecia ser coisa simples, mas não o era!

         O Governo Civil de Lisboa, onde se iniciava o processo de inscrição, era a garantia da idoneidade do candidato. Quantos valores lhe seriam confiados? quantos documentos importantes lhe passariam pelas mãos, fazendo-os chegar ao seu destino? O “peso da responsabilidade” nem sempre se media em quilos transportados às costas… O cliente podia confiar nestes homens!

A caderneta profissional do “Moço” Manuel da Fonte comprova a sua inscrição no Governo Civil de Lisboa em 31 de julho de 1935 e, com a garantia de cadastro limpo, iria agora inscrever-se na Câmara Municipal. Pagava uma licença, e recebia a sua placa numerada[12], que prenderia ao boné.


          Umas boas braçadas de corda resistente e um chinguiço, completavam o equipamento do “Moço” que se estreava na “arte”, como eles próprios designavam o seu trabalho. O chinguiço, iria fazê-lo com trapos velhos, enrolados, como uma rodilha bem amarrada, mas aberta, como uma ferradura.

Moços de Fretes em 1908 . Fotografia de
Joshua Benoliel (Arquivo Municipal de Lisboa)

           Se a carga fosse muito grande ou muito pesada, o frete era dividido entre dois ou quatro “Moços”, com carga suspensa num pau, ou mesmo em padiola - o chinguiço seria a almofada de proteção, dos ombros e do pescoço, naquele transporte “a pau e corda”.
 
          Muito cuidado teria de ter pois, em caso de acidente, ficaria por sua conta! Não havia seguro nem segurança social, não havia subsídio de doença nem de acidente, nem reforma[13]… apenas o regresso à terra, à família, na esperança de poder voltar à “arte”, quando (e se) recuperasse.

                                              
         O “Moço nº 2716”, devidamente licenciado, já poderia agora mandar imprimir os “cartões de visita”[14], exigidos pelo Regulamento. Seria a sua apresentação aos clientes.

O telefone era ainda pouco mais que novidade. Era um luxo reservado aos hotéis, aos ministérios e às casas comerciais, bem como às famílias mais abastadas. O contacto era a “esquina” que a Câmara lhe atribuíra, por isso também eram conhecidos como “moços de esquina”. A sua, seria a esquina da Rua da Conceição com a Calçada de S. Francisco, ali à na Rua Nova do Almada, tal como ficara averbado na sua licença profissional. O Regulamento era nisso muito claro, proibindo “Estacionar fora dos locais para que tenham obtido a respetiva licença”.



Aí ficaria, todos os dias, com o seu boné de pala e molho de corda ao ombro, atento ao freguês que aparecesse. Por agora, ao calor abrasador do verão de Lisboa, mais tarde seria ao frio, ao vento, à chuva…
         No ano anterior, o Governo tinha reafirmado a jornada de oito horas de trabalho e viria mesmo a autorizar, uns anos depois (1942), o aumento da jornada, com horas extraordinárias pagas a 50%[15] . Nada disso lhe dizia respeito – era patrão de si próprio, não tinha horário – se não trabalhava não ganhava. Eram contas simples de fazer!

         Sem horário de trabalho, sem abrigo que não fosse, por gentileza e caridade, o umbral da porta mais próxima, aquela seria a “sua esquina”. Zona de casas bancárias, o próprio Banco de Portugal ali ao lado – a sua esquina ficava entre a Lisboa chique do Chiado e o coração empresarial e bancário de Lisboa.

         Na véspera, a 4 de agosto de 1935, tinha sido inaugurada a Emissora Nacional – talvez tenha ficado à escuta, para ouvir essa maravilha, junto de algum estabelecimento comercial… Apesar da novidade, o aparelho custava 300 escudos pois, percebendo o seu potencial de comunicação, o governo pretendia que, mesmo as famílias com menos recursos, tivessem acesso à rádio[16]. Um dia… quem sabe? Mas muito teria de suar, até juntar tanto dinheiro!

         Da sua esquina, talvez tenha visto passar Fernando Pessoa, poeta solitário e plural, já muito fragilizado pela doença[17], descendo do Chiado, a caminho do Terreiro do Paço. Não era cliente… que interesse tinha?

Como terá sido o seu primeiro dia de trabalho? Bem sabia que os “Moços” faziam de tudo.  «(…) Desde levarem malas de viajantes com coleções[18], colchões à cabeça, máquinas de costura às costas, armários ao ombro, latas com produtos químicos, sacas com géneros alimentícios, até mudanças de mobiliário, transportada a pé, em carroças e, mais tarde, em camionetas, sempre com a preocupação de não partirem os espelhos, não riscarem o verniz ou a pintura dos móveis. Igualmente tinham, previamente, de desmontar as mobílias, caso de camas, guarda-fatos, etc. que depois, com esmero e paciência, voltavam a montar no diferente endereço. Eram especialistas no transporte de pianos de cauda e mais pequenos, cofres, despachos marítimos e terrestres de mercadorias.

(…) Também era usual verem-se os «moços de esquina» nos jardins dos palacetes a «baterem» carpetes, ou, quando o freguês não possuía tais condições, as levarem para fora de portas, aí, suspensas com a corda que usavam, entre duas árvores, e, um de cada lado, aquilo é que era bater! (…) No entanto, também lhes apareciam serviços leves, que por vezes eram de extrema responsabilidade ou mesmo confidenciais. A estes homens, nossos conterrâneos e não só, confiavam as mais valiosas peças de arte, ouro ou prata para irem empenhar e, depois de conseguirem em qualquer penhorista o empréstimo desejado (indicado previamente e aproximadamente pelo interessado), lá iam levar o dinheiro e a cautela de prego ao «enrascado» freguês. (…)»[19]

Tabela que fazia parte da caderneta profissional dos “Moços”

          O trabalho de que ninguém gostava era o transporte dos mortos, do Banco do Hospital de S. José para a Morgue, ou da rua, onde quer que estivessem. A Polícia ia chamar dois “Moços” para transportarem a maca, ao custo da tabela. E não podiam recusar, pois perdiam a licença – estava no Regulamento.
 
Naquele tempo, em que ter telefone era um luxo, havia um “frete” que todos os “Moços” cobiçavam – obrigava a grande discrição e era, por esse motivo, especialmente bem pago: entregar cartas confidenciais.

Os “Moços” eram homens de rosto erguido, sérios. Os clientes é que nem sempre… «Sabe como nos defendemos?», dizia um deles ao jornalista, no final dos anos 60[20] «Quando, por qualquer razão, desconfiamos de um freguês, retira-se do frete uma peça que valha pouco mais ou menos o preço do nosso trabalho. Entregamo-la depois numa esquadra de polícia. Guardá-la nós é que não, podia pensar-se que roubávamos. Então o freguês vai lá, paga o serviço e fica com o que é dele. É justo, não acha?» 
 
Era a escola da vida… em que o “Moço” Manuel da Fonte era caloiro.
Do outro lado da “baixa”, noutra esquina um pouco mais longe, da Rua da Prata com a Rua de S. Nicolau, estacionava o Moço nº 787, seu pai, também Manuel da Fonte, veterano da primeira leva de registos que a Câmara fez, em 1922. Talvez tenha entrado na “arte” pela mão do padrinho da sua esposa, o tal aguadeiro António Antão das Neves. Era comum encontrar pai e filho a trabalhar juntos, por vezes na mesma esquina[21].


Terá sido o pai quem descobriu o lugar vago e lhe recomendou a mudança? O certo é que, no final desse mês, passou a estacionar na esquina da Rua dos Douradores com a Rua da Assunção[22], uma ativa zona comercial, menos cosmopolita, mas com mais garantia de trabalho – que ele não estava ali para ver passar as meninas do Chiado, nem poetas melancólicos ou cavalheiros da finança! Além do mais, ficava mais perto de casa, da “casa da malta” onde morava com o pai, no 16 da Rua João do Outeiro, ali à Mouraria.


No final do dia, depois de uma jornada de 12 ou 14 horas em pé, quantas vezes num esforço desmedido, iria saber bem chegar mais depressa a casa – as pernas agradeciam. Felizmente, era no 2º andar do prédio, podia ser pior… que os havia por lá bem altos! Precisava de se lavar, mas não queria ir aos balneários públicos da Mouraria (que saudades do rio lá da terra!). Talvez ainda tivesse de “ir à água”, ao chafariz, e subir de novo com o cântaro, mas todos tinham de contribuir para as tarefas da casa – eram as normas das “casas da malta”.

Um chafariz… isso é dava jeito lá na terra, em vez daqueles charcos, aquelas “fontes de chafurdo” onde mergulhavam os cântaros! A União bem andava a lutar por isso…[23]
 
Já havia muitas casas com água canalizada, mas não nos bairros pobres, como a Mouraria. Lá para meados da década seguinte, já alguns prédios teriam esse luxo – uma torneira no patamar da escada e uma pia para despejos. Todos os despejos! O saneamento básico ficava à porta, no patamar de cada andar, sob uma janela que faria o arejamento[24].

Paul Descamps, descreve-as, nesse mesmo ano de 1935: «as casas operárias são com demasiada frequência mal iluminadas; há uma simples pia no pátio, onde se despejam as águas sujas e o resto». E, regista ainda, que embora nas principais cidades já houvesse água canalizada, «os bairros populares frequentemente só são servidos por chafarizes»[25] 
 
A casa onde vivia com o pai, era partilhada com mais homens “lá da terra”. Era normal naquela época – um alugava a casa e nela viviam todos os que lá coubessem, dividindo as despesas, cumprindo as regras e partilhando tarefas. Por isso eram conhecidas como “casas da malta”. O pai já ali morava, quando se registou como “Moço” e, com ele, moravam mais oito, todos “Moços de Fretes”[26]. Lá na Mouraria havia várias dessas casas: na mesma rua, João do Outeiro, no 1º andar do nº 27, moravam 18 Moços!
E, mais acima, no 52, só no 2º andar moravam 17!

Nesse mesmo prédio da Rua João do Outeiro, nasceu por essa altura uma menina – Maria Argentina. Talvez a tenham visto brincar na rua ou mesmo, por alturas de junho, armar o seu altar e pedir, com outras crianças «um tostãozinho para o Stº António…»  O fado corria pelas ruas, tão natural como os pregões e aquela menina, que por ali viram brincar, viria a ser uma grande fadista!

Logo ali ao lado, no 16 do Beco do Jasmim, viviam seis Moços – outra “casa da malta”. Esta mais pequena, à dimensão do espaço. O “dono da casa” (que não era proprietário) era o “Moço nº 981”, o Senhor João Almeida. E muitas, muitas outras, espalhadas pelos bairros populares de Lisboa. Tudo gente lá da freguesia – do Colmeal, do Carvalhal, do Soito, da Aldeia Velha…

Beco do Jasmim, 16 (em 2019)

           Assim, gastando pouco, todos poupavam dinheiro. Uns sonhavam comprar mais uns palmos de terra, umas oliveiras, uns castanheiros… ou melhorar a casa da família, para seu descanso na velhice; outros, ir ao mato e à lenha, voltar para a enxada… nem pensar! O seu sonho morava em Lisboa – haviam de alugar uma parte de casa, ou talvez mesmo uma casa, e trazer a mulher e os filhos, que tinham ficado na terra.

 
Em Lisboa teriam vida melhor – aqui ninguém andava descalço! Havia alguns anos já que o Governador Civil o proibira. E como, de repente, os muitos pobres de Lisboa se viam, por Lei, obrigados a andar calçados, as atrizes do Parque Mayer costuraram e ofereceram alpercatas à população[27]

Voltariam à terra no verão, claro! todos os anos, pela festa! Se tudo corresse bem, talvez conseguissem ir lá também pelos Santos e pelo Natal…. Voltar de vez? Só na velhice!

As diversões eram poucas, pois havia que poupar – saíram da terra para lutar por uma vida melhor, para eles e para a família! Não podiam perder o rumo… Um jogo de sueca, uma visita aos conterrâneos e o domingo estava passado.

Os ensaios para as “Marchas dos Bairros de Lisboa” [28] animavam a Mouraria. Será que o bailarico atraiu os “Moços” mais jovens? Ou as pernas, cansadas, pediam tréguas?

Nas “Casas da Malta” as refeições eram simples – talvez umas batatas cozidas com uma posta de bacalhau, que compraram já demolhado e que, naquele tempo, era comida de pobre. Quando fossem à terra, ajudar nos trabalhos agrícolas, haviam de trazer alguns mimos - uns enchidos, uns queijitos…


Teriam já trocado o velho fogareiro a carvão, pelo outro, muito moderno, que a propaganda da revista “Ilustração Portuguesa” garantia que cozinhava “um jantar completo em menos de duas horas, gastando apenas meio litro de petróleo”?

A ideia era bem atraente, mas viviam-se tempos muito conturbados.

No ano seguinte, começava a Guerra Civil Espanhola e as nuvens da 2ª Grande Guerra formavam-se já no horizonte… Portugal, não participando diretamente, sofreria o efeito da “onde de choque” de ambas – haveria racionamento de bens alimentares e de combustíveis líquidos.

As filas imensas que se formavam, para a obtenção de senhas de racionamento[29], tornaram-se focos de descontentamento e protesto da população mais pobre.

Pensando melhor… nem sempre as novidades são boas! Afinal, o velho fogareiro, a lenha ou a carvão, não os deixaria sem jantar!

Com a acalmia do fim da Guerra, a vida ia retomando a normalidade, mas, com ela, vinha também o princípio do fim, da carreira dos “Moços”.

Quando os bagageiros terrestres pediram a revisão do seu Regulamento (comum aos Moços de Fretes), nomeadamente da Tabela de Preços, o parecer do Ministério do Interior[30] (1945) apontava já para o fim da “arte” , prevendo que “quando se normalizarem as condições de vida na cidade, (…) o transporte de bagagens deverá fazer-se, provavelmente, por forma diferente da prevista na aludida proposta, dado que o fácil uso de transportes automóveis deverá pôr de parte o sistema actualmente usado.”

Atentos aos ventos de mudança, três “Moços” colmealenses aventuraram-se arrojadamente no mundo empresarial dos transportes de mercadorias e mudanças, com camionetas. Ao longo dos anos 60, foram desaparecendo das ruas as mudanças “a pau e corda”. No início dos anos 70, as esquinas foram ficando mais e mais vazias, até deles só restar a memória.



Publicidade inserida no “Boletim do Colmeal”, Julho/1971 e Julho/1981


O “Moço” Manuel da Fonte (filho) não ficou muito tempo “à esquina” … – se o sonho era mudar de vida, ele lutou e conseguiu! A memória da esquina e das cordas ficariam guardadas, junto com a sua caderneta profissional, a chapa metálica e o resto dos cartões de visita, numa mala que por lá andava e que foi ficando antiga…

Eram “Moços”, naquele tempo que parece tão longínquo.

Parece coisa de outro tempo… mas não é – era o tempo dos pais e dos avôs, dos homens que hoje são, eles próprios avôs. Homens que não renegam as suas origens humildes, as suas raízes. Não as branqueiam nem douram, antes as alimentam e homenageiam, na sua verdade, reconhecendo que foi a determinação e os valores, desses pais e avôs, que lhes moldou o caráter e lhes permitiu ser quem são.
 
Deonilde Almeida


P.S. (em 25/01/2022) - Na pesquisa efetuada ficaram algumas interrogações, para as quais não foi possível obter resposta. 

Uma delas, sobretudo, intrigava-me  – Quem tratava das roupas nas Casas da Malta?  Era-me difícil imaginá-los, no lavadouro público, desempenhando o que, naquele tempo, se considerava "tarefa de mulher".

Recentemente, obtive a resposta, pela partilha de um conterrâneo de Ádela. Sua mãe contava como, desde tenra idade (6/7 anos), ia entregar aos conterrâneos, nas Casas da Malta da Mouraria, a roupa lavada e engomada pela sua avó. 

Naquele tempo, a responsabilidade e o valor do trabalho aprendiam-se na prática, desde muito cedo, partilhando tarefas da economia familiar.



[1] Testemunho de Anibal Santos
[3] I vol, Ed.Autor,Arganil,2008,pp.29-31
[4] Rocha-Trindade, Maria Beatriz, “A Serra e a Cidade – o triângulo dourado do regionalismo”, 2009, Ed.Âncora
[5] A Lei do Recrutamento Militar (1911), estabelecia o princípio do serviço militar obrigatório e, com ela, termina o sistema da remissão (pagamento de um substituto)
[6] Começava assim a grande “sangria” demográfica da região: só em 25 anos (meados da década de 40 e final dos anos 60), o concelho de Góis perdeu 60,5% da sua população
[7] Miguel Torga, “Portugal” (1986), p.78
[9] Caetano, Fernando Pinto, “Gentes e Famílias da Freguesia do Colmeal”, 2ª edição, 2016, edição de autor
[10] Fonte de imagem: Arquivo Municipal de Lisboa
[11] Contos, Quetzal Editores, 2018, p. 114
[12] Imagem de António Domingos Santos
[13] Em 1935, o Estado Novo fizera aprovar o chamado «Regime Geral de Previdência». (…) A criação das caixas sindicais de previdência dependia da «vontade dos interessados», ou seja, da celebração de contratos coletivos de trabalho, e o patronato opunha-se, denodadamente, à sua assinatura. (…) Não há, como regime geral, pensões de sobrevivência, de desemprego, assistência clínica ou médica completa ou assistência materno-infantil, (…). Para o geral dos trabalhadores desse tempo, o desemprego, a doença prolongada ou a velhice significavam morte e miséria.
Rosas, Fernando, “História de Portugal” (dir. José Mattoso), VII vol., Círculo de Leitores, 1994,p.98-99

[14] Imagem de António Domingos Santos
[15] Rosas, Fernando, “História de Portugal” (dir. José Mattoso), VII vol., Círculo de Leitores, 1994,p.97
[16] Em 1940, segundo dados oficiais, estão registados em Portugal 100.000 aparelhos de rádio, em 1957 serão já 534.063. “Os Anos de Salazar – O que se contava e se ocultava durante o estado Novo” (Vol.2), António Simões do Paço (Editor-coordenador), Centro Editor PDA, 2008, p.119
[17] Fernando Pessoa faleceu em Lisboa, no final desse ano (30 de novembro de 1935), vítima de cirrose hepática.
[18] Os armazéns reuniam, em pesadas malas, uma amostra de cada artigo (por ex. se o negócio eram tecidos, amostras de cortinados, estofos, confeção de vestuário, etc) – eram as “coleções” - e os seus “caixeiros viajantes” iriam de terra em terra, junto dos comerciantes a retalho, mostrar as novidades e receber as encomendas
[19] Extrato da descrição, primorosa e muito bem informada, do cronista “DANIEL”,  in Boletim “O Colmeal, nº 184, Maio de 1982, republicado em https://upfc-colmeal-gois.blogspot.com/2009/09/figuras-e-factos-3.html
[20] “Restam poucos moços-de-fretes em Lisboa”, Reportagem de Carlos Plantier, Século Ilustrado, 19/10/1968
[21] O “Moço Daniel” (Marques da Costa), a quem o cronista homenageia, tomando-o como pseudónimo, também trabalhou com seu filho Alfredo Marques da Costa.
[22] Imagem de António Domingos Santos
[23] Dois anos depois, em 1937, o tão desejado abastecimento de água potável, chegava ao Colmeal, através de chafariz, ao Largo da Fonte e à Cruz da Rua
[24] Testemunho do Senhor Joaquim Luis Pinto, profundo conhecedor da Mouraria, onde vive
[25] P.Descamps, 1935, pp.376 e 467, citado por Rosas, Fernando, “História de Portugal” (dir. José Mattoso), VII vol., Círculo de Leitores, 1994,p.99

[26] Livro de Inscrição de Moços de Fretes, livros I e II, 1922-1936, Arquivo Municipal de Lisboa
[28] “Em 1932, Leitão de Barros propôs pela primeira vez a realização de um concurso de ranchos folclóricos dos bairros antigos de Lisboa. A ideia das Marchas dos Bairros de Lisboa surgiu como resposta a um desafio que lhe foi lançado por Campos Figueira, na altura diretor do Parque Mayer”.  António Simões do Paço (Editor-coordenador), “Os Anos de Salazar – O que se contava e se ocultava durante o estado Novo” (Vol.2),Centro Editor PDA, 2008, p.165
[30] Arquivo histórico do Ministério da Administração Interna, ANTT