A mulher da “fava-rica”
– Ti Trindade, vou-me embora… vou para Lisboa!
– Vai, meu filho, vai, para aquela terra santa! Nunca mais me
esquecerei daquela morada sagrada – Travessa de Santa Quitéria, Pátio Sarmento,
nº8.
Este relato curioso[1],
mas comovente, deixou-me intrigada.
Soube depois que Maria da Trindade Gomes, nascida no Colmeal
em 1872, a Ti Trindade “Miguel”, como era conhecida – Miguel de quem era
já viúva – vivia junto à antiga escola, no adro da aldeia. «Nesse tempo, as
crianças vinham do Carvalhal, Malhada, Soito, Aldeia Velha, do Sobral… vinha
tudo aqui para a Escola… só não vinham os de Ádela e do Açor, que iam para os
Cepos»[2]
Em tempo de chuva ou neve, as crianças das aldeias vizinhas
conheciam bem aquela porta amiga e a lareira acolhedora, onde secavam a roupa
antes das aulas. No tempo do calor, nas correrias e brincadeiras do recreio, iam
pedir-lhe um pucarinho de água, para matarem a sede.
Ir-lhe buscar um cântaro de água, era o seu jeito ingénuo de
dizer «Bem-haja, Ti Trindade!», mas refletia também uma educação sólida, de
valores morais e sociais, onde a ingratidão e a futilidade não encontravam
espaço.
Quando estes rapazes conseguiam cumprir o sonho dourado de
“ir para Lisboa”, iam despedir-se. A Ti Trindade, além da bênção contida
naquela lengalenga, entregava uma moedinha de 2$50 ou mesmo de 5$00, como se
dissesse «que, por lá, ela se multiplique depressa nas tuas mãos!»
A gratidão dos rapazes explicava a visita de despedida. Mas,
“terra santa”… “morada sagrada”?!...que história de vida poderia explicar tal
veneração por Lisboa?
A Ti Silvina “da Eira” conheceu-a bem e, com
invejável memória e aquele encanto dos bons contadores de histórias, recorda
que a Ti Trindade foi para Lisboa quando casou, talvez na viragem do
século (XIX para XX). Normalmente não era assim, explica-nos, pois «naquele
tempo, os homens iam para Lisboa, mas as mulheres ficavam cá a trabalhar!»
- tratavam da “fazenda” e do gado, garantindo o sustento da família e ainda
cuidavam dos filhos e dos mais velhos, a quem a saúde ou as forças já faltassem
para trabalhar.
Nesse tempo, não havia abono de família, nem subsídios. Era
simples – comia-se o que a terra dava, à custa de muito trabalho, e todos os
braços tinham de contribuir, na medida das capacidades de cada um. As crianças,
quando entravam de manhãzinha na sala de aula, já tinham cumprido alguma tarefa
– um cântaro de água, o gado tratado, um molho de mato para “cama” das ovelhas
e das cabras, um saco de pinhas… e quantas vezes bem longe as foram apanhar! «Quando íamos todos juntos, ao mato e à
lenha, saíamos bem cedo, atrás uns dos outros, em fila, a chorar, porque estava
frio e chovia, pequenitos, enregelados, cada um com sua lamúria e forma de
chorar, era uma sinfonia! (risos)»[3].
Era a rotina familiar.
Com a Ti Trindade foi diferente – «Ela ia daqui
para Lisboa [com o marido] e havia uma senhora, a Joaquina Moreira, que era de
cá. Essa vendia fava-rica e, quando as pessoas iam de cá para Lisboa, ela
aconselhava-as a irem vender.» Mas
não era só ela… «Era ela e muitas –
havia cá muitas no Colmeal a vender fava-rica!», garante-nos a Ti Silvina: «A
Maria dos Anjos do Alqueve, também vivia em Campo de Ourique e também vendia
fava-rica. Aconteceu o mesmo com muitas outras mulheres do Colmeal - umas puxavam
as outras. A primeira terá sido uma Ana
Chamiça, que era irmã do Ti José Marques. Essa foi desafiando as outras.
Ensinava-as como deviam fazer.»
Era uma ocupação que não exigia escolaridade ou habilitações
específicas, apenas determinação e, isso, não faltava a quem tinha a coragem de
mudar de vida. As duas primeiras décadas
do século XX registaram um grande movimento migratório. Cerca de metade da
população de Lisboa era natural de outros pontos do país. Chegavam, em fuga da
miséria em que se vivia no interior, atraídos pelo sonho de uma vida melhor. O “Censo
Extraordinário de 1925” reflete essa condição em que viviam: «uma boa
parte dos analfabetos das duas capitais é constituída pelos indivíduos que das
províncias a elas afluem, para desempenharem serviços domésticos, exercerem a
sua profissão de operários ou outros mesteres para os quais não é exigida
instrução literária alguma; por isso, enquanto existir fundo em todo o país,
há-de ter sempre o seu reflexo nas grandes cidades»[4]
Os filhos, sobretudo os mais novos, muitas vezes ficavam “na
terra”, ao cuidado dos avós, pois a vida em Lisboa era dura e não havia espaço
nem tempo para cuidar deles. Não os queriam ver a alinhar naquele “imenso
exército de crianças descalças e andrajosas que, desde cedo, apregoavam jornais
ou trabalhavam por meia dúzia de tostões. Enquanto as raparigas abandonavam a
fome e o trabalho rural para se empregarem como criadas nas casas citadinas, os
rapazes, pelos oito anos, eram vistos nos andaimes das obras, ou nas
mercearias, onde trabalhavam, dia e noite, em troca de comida e dormida.” [5] Não! Ficavam melhor lá na terra, até terminarem
a escola.
As saudades eram muitas e o único contacto era o correio,
pois o primeiro telefone público só chegaria ao Colmeal no início dos anos 50.
Em Lisboa, n’“aquela terra santa”, como lhe chamava, muito
trabalhou a Ti Trindade, mas prosperou e regressou ao Colmeal, para uma
velhice confortável e tranquila. Estava explicada a imensa gratidão, que roçava
o sacrilégio. Foi a vender fava-rica que
conseguiu enganar o destino.
A vender “Fava-rica”… Saltam, ruidosas, as memórias – rodas de carroças, ferraduras a ecoar
na calçada e os pregões matinais que ressoavam no meu mundo de infância, de S.
Vicente de Fora ao Largo do Menino Deus. Entre elas, «Faaaava-Riiiica!!!» assim,
tal e qual, “a apregoar muito alto, mas num pregão muito lento”
como diz o poema[7].
Percebi, mais tarde, que o mesmo pregão soava por toda a
cidade, sobretudo nos bairros populares. Os melhores clientes eram, decerto, os
que madrugavam para um trabalho árduo, porque a estiva ou os fretes no Mercado
da Ribeira os aguardavam antes do sol nascer. Esses, talvez esperassem ansiosos
“até vir a mulher da fava”, que lhes fornecia uma refeição tão aconchegante.
Mas, quando é que ela ficou “Rica”?
O dicionário informa-nos que fava-rica é a “fava
seca que, depois de cozida e temperada, se usa na alimentação” [8]. Então, a sua “riqueza” poderá
vir tanto do seu valor nutritivo, como do facto de, sendo seca, se poder contar com ela ao longo de todo o ano
e não apenas na sua época própria de colheita.
O que não explica é a razão do seu consumo ao
nascer do dia e ao longo da manhã.
Hoje, na gulodice de um croissant ou de uns
cereais empacotados, mais dificuldade temos em descobrir essa razão.
É sabido que, durante séculos, o pão foi a base da
alimentação dos pobres – e é deles que falamos. O “milho grosso” ou “das
maçarocas”, hoje tão banalizado, ainda não era conhecido na Europa, pelo que o
pão era feito com os cereais conhecidos e cultivados, conforme as regiões – trigo,
centeio, cevada ou milho painço. Quando faltavam cereais no reino, porque uns
anos chovia demais e noutros nem pinga de água, pairava o fantasma da fome.
Nessas ocasiões, diz-nos o historiador Oliveira Marques que «importavam-se
muitas vezes favas do estrangeiro para ocorrer à penúria. (…) Moída para
fabrico de farinha, ou simplesmente cozinhada, a fava chegava para matar a fome
até ao regresso das boas colheitas.”[9]
A descoberta da América e o conhecimento e cultivo das novas
plantas que de lá trouxeram – milho grosso, batata, tomate, entre outros –
poriam fim ao pesadelo das fomes frequentes que devastavam a Europa, mas o pão,
esse continuaria a ser a base da alimentação dos pobres.
Nas cidades, o povo não podia cozer o seu pão, como na
aldeia, ficando à mercê das padarias.
Assim, em tempos de crise ou conflito, que foram frequentes ao longo do
século XIX e na primeira metade do século
XX, a subida do preço do pão ou a sua falta geravam revoltas, motins e assaltos
a padarias, como aconteceu, sobretudo em Lisboa, em 1915, 1916, 1917 (“revoltas
da fome”) e, de novo, em 1920, por todo o país.
Nesses tempos de crise, a fava-rica retomava o seu lugar,
matando a fome aos pobres. Depois, o
mercado foi invadido pelas farinhas prontas a usar e que prometiam saúde e
vigor “para o avô, para a neta e também para o atleta”. Esta mensagem sedutora
chegava a todos os lares, através da telefonia – a grande novidade tecnológica da
época.
A fava-rica que, já em 1885, Eça de Queirós, no romance “Os
Maias”, indicava como uma das poucas coisas “genuínas”, que restavam na paisagem
alfacinha[10], aos
poucos, foi caindo em desuso … que ingratidão! Terá sido porque a memória
popular a associava a tempos difíceis?
Eles, mantiveram-na na sua gastronomia. Por cá, a fava
continuou a ser consumida na sua época, fresca ou, mais recentemente, congelada.
Quanto à fava seca, base da fava-rica, várias razões poderão explicar o seu
esquecimento.
A principal razão, poderá ser o facto de ter sido sempre
cozinhada e fornecida por alguém exterior à família – o que hoje se chamaria “take
away” – nunca tendo chegado a entrar, de forma sistemática, na tradição da
cozinha familiar.
Mas existem outras razões… Para os séculos XIX e XX, o
contexto histórico poderá ajudar-nos a compreendê-las. Por outro lado,
conhecendo esse contexto, não podemos deixar de admirar aquelas “mulheres da
fava-rica”, pela determinação com que viveram e lutaram por uma vida melhor.
Recorde-se que todo o século XIX e primeiras décadas do
século XX, período em que estas mulheres viveram, foram tempos de insegurança e
sobressalto, por todo o reino, mas sobretudo em Lisboa – devastação deixada por
três invasões francesas, uma guerra civil, grave crise financeira de 1890 (bancarrota),
duas grandes guerras mundiais, guerra civil espanhola que gerou grandes
dificuldades e privações em Portugal, períodos de fome, várias epidemias (cólera,
peste bubónica, varíola, tifo e pneumónica, que foi a mais grave), carência e
racionamento de alimentos básicos, levantamentos militares, revoltas populares
seguidas de declaração de “estado de sítio” com recolher obrigatório, retaliado
com ataques à bomba[12],…
e Lisboa era o centro de todos os acontecimentos.
Entretanto, também os primeiros transportes públicos,
circulando a alta velocidade, espalhavam o terror nas ruas. Entre as rodas sobre
os carris e as ferraduras dos animais, a matraquear a calçada, podemos imaginar
o imenso ruído que produziam à sua passagem… Mas a população demorou a
adaptar-se a esta ruidosa novidade – os atropelamentos eram frequentes, como
refletem os registos de atendimento no Posto Médico da Santa Casa da
Misericórdia[13].
Esta era a Lisboa das nossas “mulheres da fava-rica”.
Ainda a cidade dormia e já elas estavam a pé, para acender o
fogareiro – é que «aquilo leva muito tempo a cozer!», como explica a Ti
Silvina «e, naquele tempo, era com carvão. As pessoas cozinhavam nuns
fogareiros – aí é que elas punham uma panela grande e faziam o comer. Levava
ali à volta de 3h a cozer…»
O problema é que, naqueles tempos conturbados, eram
frequentes as quebras de abastecimento do carvão, devido ao afundamento dos
navios que o transportavam, sobretudo de Inglaterra.
Por tudo isso, as pessoas preferiam comprar feito, em vez de
fazer em casa - «como elas faziam uma grande quantidade, compensava.»
António Santos, ainda
criança, muitas vezes ajudou sua avó na preparação da fava-rica. Na manhã
seguinte, bem cedo, ela iria descer os três andares da casa onde então morava,
na Rua do Benformoso e, tal como diz o poema…
«À cabeça a grande
cesta;
e dentro desta
a panela
envolta em alva
linhagem»
Iria percorrer a
Mouraria, Escolas Gerais, Sé, Castelo, Alfama e, pelas ruas… e o pregão
subiria no ar:
- «Fava rica… fava
rica!...»
Panelinha a fumegar,
entre a aragem,
na friagem matutina! »
«Panelinha… que era uma panelona», recorda o neto. «Eram muitos
quilos à cabeça. E descer a cesta para atender a freguesia e erguê-la vezes sem
conta, era um exercício tremendo para uma mulher tão franzina como era a minha
avó – tinha 1,56m de altura…».
A “avó” era Maria Inocência Neves, contemporânea da Ti
Trindade “Miguel”, tal como ela, nascida nos finais do século XIX.
Viúva aos 30 anos, filhos para criar e dívidas para saldar, resultantes
da doença do marido. Vemo-la na imagem[14],
envolta no seu xaile de lã, e quase sentimos a “friagem matutina”, que, no
inverno de Lisboa, enregela os ossos…
Mulher determinada, aceita a sugestão da prima e amiga
Adelaide Reis[15] –
com ela aprendeu os segredos do negócio e foi vender fava-rica. «Ela e a minha
avó viveram na mesma casa, na Rua do Capelão, nº 34 - 2º. O meu tio, António
Domingos Neves, tinha ficado no Colmeal para completar a 4ª classe. Adelaide Reis tinha 4 filhos - Armando, Ilda,
Horácio e Alzira e, mais a minha mãe, com 4 anos, tudo a fazer tropelias lá em
casa, devia ser o bom e o bonito», recorda António Santos.
Adelaide Reis (imagem cedida por António Santos)
A rotina era a mesma, todos os dias – a “mulher da
fava-rica”, alimentava os outros para alimentar os seus. Apenas o domingo era
respeitado como dia de merecido descanso. O seu dia começava bem cedo e, nele,
não havia espaço para diversões.
Naquela época, o fado ressoava das ruas da Mouraria, mas,
nesse tempo, era coisa de rufias e gente de má vida. Terá visto as primeiras
Marchas Populares[16]
ou assistido a uma cegada[17]?
O teatro de revista[18],
a novidade do Parque Mayer, era muito popular, mas os bilhetes custavam
dinheiro… Ainda se lembrava da procissão da Senhora da Saúde – era um dia de
alegria – mas os republicanos não gostavam dessas manifestações e, desde 1910,
a Senhora não saía pelas ruas de Lisboa.
Em 1940, quando a Senhora da Saúde voltou à rua, Maria
Inocência viu passar a procissão, na Rua do Benformoso, do 3º andar da nova
casa, na sua varanda engalanada com colchas.
A vida continuou… apenas com mais andares para descer com a
giga da panela à cabeça, equilibrada na rodilha. António Santos não esconde o
orgulho e o carinho com que emoldura a memória desses tempos…
«A minha avó comprava as favas secas num estabelecimento da
Rua dos Cavaleiros, que se chamava Celeiro (não o Celeiro de agora, onde as
senhoras vão comprar aqueles pacotinhos com coisas para manter a linha).
Quando se subia, ficava do lado direito, um pouco antes da Rua Marquês Ponte de
Lima.
Levava um saco de pano, daqueles que se atavam em cima e
trazia, se a memória não me atraiçoa, cinco litros de fava seca. As medidas
eram de madeira, quadradas ou retangulares e depois havia uma tábua, a rasa,
rasoura ou rasoira que eliminava o que estava a mais.
Em casa, estas favas ficavam em água, de um dia para o outro.
Ficavam a amaciar… Havia um tabuleiro em madeira (cerca de 1m X 0,5m), onde no
dia seguinte as favas eram colocadas. O tabuleiro ficava em cima de um banco da
cozinha, perto da janela, porque as favas eram vistas uma a uma. Despejavam-se
aos poucos num dos lados do tabuleiro, e uma a uma, eram vistoriadas e era-lhes
retirado, com uma pequena navalha ou canivete aquela parte que a ligava
à vagem e se havia sinal de bichinho, retirava-se também. Assim iam passando
para o outro lado do tabuleiro.
De madrugada, talvez duas horas da manhã, era colocada ao
lume uma enorme panela, para cozer as favas.
Antes das sete, saía para a venda. Cesto de verga com uma
grande panela de esmalte. Jornais à volta para não deixar arrefecer e ao mesmo
tempo aconchegar para não balançar. Toalha branca por cima, impecavelmente
branca. Uma concha, que servia ao mesmo tempo para dosear o pedido, uma pequena
bolsa para as moedas porque as notas eram escassas…»
A panela, pesa 2Kg. Dois pares de
pegas facilitavam a descida da cesta, em cada venda, e a sua elevação de novo,
para cima da rodilha.
Imagens cedidas por Manuela Costa
(neta de Maria da Assunção)
O fogão de Maria Inocência já era agora de ferro, recorda o seu neto, e «funcionava a carvão e com briquetes e, à volta, para fazer um pouco de altura, eram colocadas umas “bolachas”, feitas de ciscos, compradas na Rua do Terreirinho – havia lá uma carvoaria. Quando eu ia para a Escola Primária, ia por essa rua e, às vezes, agachava-me durante um tempinho a ver, por uma pequena janela rente ao chão, como um homem, enfarruscado, fazia os briquetes, com um molde de ferro. Eram rodelas de carvão amassadas com barro para conservar o calor nos fogareiros. Era o mesmo que fazer agora um hamburger…»
Seguindo o exemplo das suas antecessoras, também Maria
Inocência terá incentivado outras conterrâneas a tentar a sorte em Lisboa,
ensinando-lhes o que tinha aprendido.
Calou-se o pregão da “inesquecível Fava-rica”, como lhe chama
Afonso Batista de Almeida, mas o seu exemplo de mulher lutadora, que enfrentou
as amarguras da vida com trabalho, generosidade e doçura, ficou bem gravado na
memória de quem a conheceu, como garante o autor da homenagem publicada, em
jeito de epitáfio, no Jornal de Arganil[19]
Foram muitas… muitas as mulheres do Colmeal a alimentar, pela
madrugada e manhã, os trabalhadores dos bairros populares. Aníbal Santos,
recorda que “pelas 5h, quando eu ia para o Mercado da Ribeira – era Moço de
Mercado, até à hora de entrar no trabalho – encontrava as mulheres da fava-rica
já a vender”. Ouvindo o pregão da
mulher da fava-rica, as clientes vinham à porta da casa com um prato ou panelinha
e compravam uma refeição bem nutritiva e ainda “a fumegar”, como diz o poema.
Mulheres que madrugavam para cozinhar, que percorriam as
ruas, escadinhas e calçadas de Lisboa, equilibrando à cabeça o alimento de
tanta gente.
Mulheres que enfrentaram, com o seu trabalho árduo, as
adversidades da época em que viveram, para que fosse melhor o amanhã dos seus
filhos.
Mulheres que, no seu pregão, gritaram surdamente “Não somos
o que nos acontece – somos o que fazemos com aquilo que nos acontece”.
Mulheres inspiradoras! Avós das mulheres que agora são avós.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, como dizia
Camões num soneto. Lá vai o tempo do enorme e suculento “bife a sair do prato”
– as vontades agora são de comida saudável e, por todo o lado, surgem ofertas
de refeições vegetarianas. Em substituição da carne, procuram-se as proteínas
das leguminosas, mais amigas da saúde, da bolsa e do ambiente.
Um dia destes… quem sabe? um jovem, passeando pelos bairros
populares –
Mouraria…Castelo…Graça…Alfama… –, entrará num desses novos restaurantes
alfacinhas e escolherá na ementa um prato vegetariano, com nome e sabor bem
exótico – “ful mudammas” – sem suspeitar que, duas ou três gerações
atrás, uma sua antepassada calcorreou aquela mesma calçada, “a apregoar muito
alto, mas num pregão muito lento, «faaaava-riiiiica!!!»
[1] Relato
de Mário de Jesus Martins que, sendo ele ainda criança, a conheceu já bem
velhinha e a ouviu diversas vezes despedir-se, assim, dos jovens que partiam.
[2]
Testemunho de Silvina dos Santos Nunes (Ti Silvina)
[3]
Testemunho de Aníbal Almeida Santos
[4] Godinho, Vitorino (Director-Geral de
Estatística), Introdução ao relatório de
1926
[5]
Pimentel, Irene Flunser, Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial,
Esfera dos Livros, 4ª edição, p.157
[6]
Testemunho de Américo Santos
[7] “A
mulher da fava-rica”, Augusto de Santa-Rita, In Revista “Pim Pam Pum”,
Suplemento infantil do jornal “O Século”, nº 164, 30/Jan/1929 (http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/PimPamPum/1929/N164/N164_item1/P6.html
)
[8] Dicionário Ilustrado
Vol. 2, Porto Editora, Lda
[9]
Marques, A.H. Oliveira, A Sociedade Medieval Portuguesa, Ed.
Sá da Costa, Lisboa, 1974, p.11
[10] Ed. Círculo de Leitores, Lisboa,1975, p.458
[12]
Os livros de “Registo de
agressões, desastres e suicídios” do Posto Médico da Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa refletem bem esses tempos conturbados. Só no dia 9 de fevereiro de
1927, as vítimas de granada e estilhaços de bomba foram sendo socorridas ao
longo do dia e é curiosa a evolução da caligrafia dos registos – primeiro muito
cuidada, foi ficando cada vez mais desleixada, tornando-se quase ilegível ao
fim do dia.
[13]
Podemos apenas imaginar a quantidade de casos que terão sido socorridos no
Hospital de S. José mas, lamentavelmente, esses registos não estão tratados
arquivisticamente, pelo que não podem ser consultados.
[14]
Imagem de José Manuel
Vasconcellos, “Receitas à moda antiga”, Ed. Selecções do Reader’s Digest, 1ª
edição, Setembro de 1997
[15] Adelaide Reis, colmealense e “mulher da fava-rica”, viria a ser sogra de José Saramago, futuro Prémio Nobel da Literatura, por casamento deste com a sua filha, a artista plástica Ilda Reis.
[16]
“Leitão de Barros, fazendo uso do seu prestígio na cidade e no Diário de Lisboa,
percorreu as coletividades para que cada uma mostrasse o que tinha de
particular, com o objetivo de dar um cunho lisboeta às marchas, chamando mais
público. Em 1934, 300 mil pessoas assistiram ao desfile de 12 bairros e 800
marchantes, desde o Terreiro do Paço até ao Parque Eduardo VII” (fonte: http://festasdelisboa.com/marchas-populares/
)
[17]
“Representações teatrais de carácter amador e popular, na generalidade
representadas por homens, nas ruas (…) de franca adesão popular e muitas vezes
com um vincado carácter de intervenção, a regulamentação da censura em 1927
iria contribuir, de forma lenta mas irreversível, para a extinção deste tipo de
espetáculo.” (fonte: https://www.museudofado.pt/historia-do-fado
)
[18]
“Nas classes populares, o teatro de revista é do agrado geral. Importado de
Paris, este espetáculo era, na origem, uma espécie de revista do ano (daí o
nome de Revista do Ano) apresentando canções, apontamentos de sátira política e
números de dançarinas de cancan. (…)Para as camadas populares, a revista
constitui um tempo de transgressão, durante o qual é possível pôr os políticos
a ridículo e denunciar, ao som da música, escândalos e injustiças sociais.”
Couto, Dejanirah, História de Lisboa, Ed. Gótica, Lisboa, 2003 (p.238)
[19] Excerto da notícia publicada por Afonso Batista de Almeida no Jornal de Arganil, em 18/12/1969