19 janeiro 2022

Histórias de vida da nossa gente


JOSÉ JOÃO MIRANDA, 1º Cabo Enfermeiro do CEP


Foi por mero acaso, que descobri o curioso Boletim Individual do CEP (Corpo Expedicionário Português – 1ª Grande Guerra) do 1º Cabo Enfermeiro José João Miranda, natural do Sobral, freguesia do Colmeal.

Pela curiosidade que o seu conteúdo me despertou, tinha de descobrir quem foi este militar – a sua história merecia ser contada!


Fonte de imagem: https://arqhist.exercito.pt

Descobri Alberto Miranda, seu neto. Hoje com 88 anos, tinha 14 quando o avô faleceu. Pouco ou nada sabe da sua história. Dele, apenas ouviu contar que trabalhou muito, como “Moço de Fretes” em Lisboa e, com determinação, amealhou para comprar fazenda e fazer casa no Sobral, para onde voltou, logo que o conseguiu, garantindo aos seus uma vida melhor.

Aparentemente, a história nada tem de original… José João Miranda guiava a sua ambição pela sabedoria antiga, que recomendava ter “casa onde caibas e terra que não saibas”

Eram tempos muito duros – havia que lutar pela sobrevivência e a única garantia que tinham era o alimento que conseguissem arrancar àquele solo rochoso e ingrato. A produção não gratificava o esforço despendido e, se a fazenda cultivada não fosse sua, a magra colheita teria ainda de ser partilhada com o dono desse bem precioso que era “a terra”.

A fazenda era, de facto, um valioso património, cujos marcos delimitadores – o seu reposicionamento abusivo – geravam graves conflitos entre os proprietários envolvidos. Esses conflitos eram relatados em histórias divertidas ou trágicas, que na infância ouvi contar ao serão, ilustrando educativamente a gravidade do ato – mudar os marcos era coisa grave! – e a importância de proteger outro bem muito valorizado, naqueles tempos conturbados e duros – a boa vizinhança e a solidariedade que ela proporcionava. Eram valores muito apreciados e que era necessário preservar.

“Terra que não saibam”… naquele tempo, a terra nunca era demais! Hoje, passados 100 anos, a prioridade alterou-se – ambiciona-se casa grande e a terra fica ao abandono.

José João Miranda tinha um sonho – garantir alimento a si e aos seus – e cumpriu-o.

Na família, ficou uma memória apenas – foi Moço de Fretes, em Lisboa, como tantos conterrâneos da mesma época. Mas… não se sabe mais nada dele?!... Como um flash instantâneo e intenso, vem-me à memória um extrato de poema, aprendido e decorado na adolescência[i]

 

Quem é? Quem foi?

Anónimo, ignorado morreu

 e a morte o seu segredo encerra.

Tudo mistério, desde o seu passado

Ao nome e aos anos que pisou a terra.

Chora-o alguém? Amava? Foi amado?

Trevas tão densas nem o sol descerra.

(…)

 

José João Miranda não poderia continuar “anónimo, ignorado”!  O conteúdo do Boletim Individual deste 1º Cabo Enfermeiro, que silenciosamente me caíra nas mãos, gritava a injustiça do seu esquecimento.

Que história de vida guardava aquele silêncio? Que trevas o esconderam da memória dos seus? 

Filho de Manuel João Miranda e de Maria da Encarnação, nasceu no Sobral, em pleno verão de 1895, a 10 de agosto. Foi batizado no Colmeal.

Sem estradas que a ligassem a Góis ou a Arganil, era mais uma aldeia daquela freguesia perdida na beira-serra, entregue a si própria, perto e longe de tudo.

Mas as coisas estavam a mudar!

A estrada do vale do Ceira, que ligaria Góis ao Colmeal, estava começada ia para doze anos… e havia já seis anos que tinham iniciado a construção do caminho de ferro “Coimbra-Lousã-Góis-Arganil-Covilhã”. Tudo correndo bem, em breve a freguesia do Colmeal seria bem diferente! 

Mas não correu…

A crise financeira – a bancarrota em que Portugal caiu em 1890/92 – fez cair por terra todos os sonhos de progresso. Em 1903 ainda se retomou a construção da via-férrea, mas por pouco tempo. Só em 1930 seria construído o troço Lousã-Serpins e por aí ficou o sonho de desenvolvimento da região. A estrada do vale do Ceira, essa ainda teria de esperar muitos anos! Mais rápida foi a do Rolão[ii], concluída em 1969, por iniciativa da UPFC[iii].

Entretanto, o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, D. Luis Filipe, em 1908, abre as portas à mudança de regime e, dois anos depois, pondo-se fim a 800 anos de monarquia, é implantada a República. José João tinha 15 anos.

Lisboa ficava lá tão longe do Colmeal e das suas gentes… aparentemente, a mudança de regime pouco mudaria nas suas vidas, não fosse a novidade do Serviço Militar Obrigatório, introduzida pela nova Constituição republicana, aprovada em 1911.

Até então, os rapazes “iam às sortes” e, aqueles a quem coubesse a sorte, poderiam pagar a quem cumprisse por eles o serviço militar. Mas agora, esse serviço já não era remissível, pois teriam de o cumprir “pessoalmente”, tal como estabelecia o Artº 68º da Constituição –  “Todos os portugueses, cada qual segundo as suas aptidões, são obrigados pessoalmente ao serviço militar, para sustentar a independência e a integridade da Pátria e da Constituição e para defendê-las dos seus inimigos internos e externos” .

Foi assim que, cumprindo a Lei, em julho de 1915, José João Miranda foi alistado como “Recrutado”, para servir a pátria até aos 45 anos de idade. O novo recruta tinha pouco mais de metro e meio de altura e vinte anos amadurecidos no trabalho duro do campo. Terá percebido bem que, nos próximos vinte e cinco anos, não seria senhor do seu destino?

Em agosto do ano seguinte, passou a “Pronto” da instrução de recrutas, ficando no serviço ativo.



A próxima etapa seria a formação de especialidade e oito meses bastaram para transformar o recruta em enfermeiro.

Estava-se em abril de 1917 e José João Miranda era agora 1º Cabo Enfermeiro do 2º Grupo de Companhias de Saúde (Coimbra).

Embora Coimbra tenha sido pioneira na formação de enfermeiros[iv], a formação que recebeu pouco tinha a ver com a dos seus colegas civis pois “os enfermeiros do Exército só muito mais tarde começaram a adquirir uma formação específica capaz de rivalizar com a dos seus congéneres civis e da Armada (…) a sua instrução era rudimentar e limitada ao essencial para prevenir os curativos imediatos (…)[v]

Em tempo normal, a prática, o contacto e a observação dos mais experientes iriam completar a sua formação.

Mas… não se viviam tempos normais!

A Europa estava em guerra desde 1914, dividida entre dois blocos de alianças – de um lado a Inglaterra, do outro a Alemanha, cada uma com os seus aliados.

Havia que respeitar a aliança bem antiga – com mais de quinhentos anos! – que unia Portugal a Inglaterra.

Havia que defender os interesses portugueses em África, pois as colónias, ricas em matéria-prima, eram alvo da cobiça alemã.

Havia ainda que ter em conta, neste jogo de estratégia, a eventualidade de, no final da guerra, nas negociações de paz, Angola e Moçambique serem alvo de negociação entre aquelas duas potências.[vi]

Entrar ou não na guerra? Os políticos não se entendiam, as opiniões dividiram-se, mas, no ano anterior, a Alemanha tinha resolvido a disputa – declarou guerra a Portugal.

Havia, portanto, que “sustentar a independência e a integridade da Pátria e (…) defendê-las dos seus inimigos”, como estabelecia a Constituição de 1911.

Foi neste contexto de emergência que nosso 1º Cabo Enfermeiro, com outros colegas de curso, foram enviados para a frente de batalha, para o inferno que se vivia em França, “inexperientes, capazes de pensar um ferimento, dar injeções, colocar um garrote e pouco mais” [vii]. Eram 185 rapazes simples, modestos camponeses que, até há pouco mais de um ano, apenas se preocupavam com a terra e o gado, a chuva, a geada e a seca.

Embarcaram em 17 de novembro de 1917. 

Aproximava-se o Natal e, em 16 de dezembro, já ele socorre os camaradas atingidos na frente de batalha, como enfermeiro da Coluna Automóvel de Transporte de Feridos Nº 2.

A formação de Coimbra, preparou-o para a angústia de presenciar e não conseguir aliviar o sofrimento daqueles homens simples, como ele, estropiados no corpo e no espírito?

Como terá sido aquele primeiro Natal, longe dos seus, numa guerra que dificilmente entenderia? Terá escrito à família as suas angústias?

Por essa altura, Portugal era um país de analfabetos – mais de 75% da população não sabia ler nem escrever. Se não sabia escrever, o que era muito provável, pois a escola era no Colmeal, sede de freguesia, talvez tenha ditado a carta a algum camarada que soubesse, e esta poderia ser a sua carta:

«Queridos pais,

Espero que esta minha carta vos encontre a todos bem de saúde.

Eu e os meus camaradas desembarcámos em Brest, na França, no princípio de dezembro. Estava um frio de rachar! Depois, fartámo-nos de marchar, carregados que nem mulas, até chegar cada um ao seu destino. Uns tiveram mais sorte, porque o seu batalhão estava a dois dias de marcha, mas outros tiveram que aguentar cinco dias e outros foi pior – foram dez dias, até lá chegarem.


 Militar do CEP(1917) com todo o seu equipamento (Fonte de imagem: Arquivo Histórico Militar, Lisboa)

         

Disseram-me que muitos já cá estão desde o dia 4 de abril e que, logo nesse dia em que chegaram, morreu um dos nossos, coitado, com um tiro dos alemães[viii]. Deus tenha a sua alma…

Eu cá vou andando… a fazer o que posso pelos meus camaradas. Tenho a sorte de não estar nas trincheiras, mas ando na camioneta, para lá e para cá a trazer os feridos para a tenda que é o nosso hospital.



Revista Ilustração Portugueza, nº611,5/11/1917, Hemeroteca Digital de Lisboa



Maqueiros recolhem feridos (Fonte de imagem: https://centenariograndeguerra.defesa.gov.pt)


Tenho visto desgraças que nunca imaginei! São rapazes como eu… uns foram atingidos pelas balas alemãs, outros pela explosão das granadas ou por um gás venenoso que eles lançam para as nossas trincheiras e que destrói os pulmões… Quando ouvimos o toque da buzina e a voz do oficial dos gazes a gritar “Gás! Alarme!”, toca a correr pôr a máscara, a “chucha” na boca e a pinça a apertar o nariz! Como não podemos abrir a boca para nada só conseguimos falar com os outros por sinais, mas o vidro do respirador embacia com a humidade do ar e não conseguimos ver nada à nossa volta. Ali ficamos, com o coração a rebentar de medo, até que a buzina dê sinal de alto ao alarme.

O barulho dos bombardeamentos dá-nos cabo dos ouvidos e da cabeça. Quando disparam os canhões e acertam nas trincheiras, é o inferno! Aquilo fica tudo esbarreirado!


Militares nas trincheiras (fonte de imagem: https://ahm-exercito.defesa.gov.pt)

Uns morrem logo, aos pedaços ou enterrados. Outros, com sorte, os camaradas conseguem tirá-los de lá, daqueles buracos sempre cheios de lama peganhenta, com ratazanas por todo o lado, grandes como gatos. 

Quando pensamos que os bombardeamentos pararam, passam a voar os aeroplanos inimigos. Umas vezes lançam uns jornais a insultar os Aliados e a assustar-nos com ameaças terríveis, noutras ocasiões é bem pior – lançam bombas e torpedos.[ix]

Mas o pior é o frio, que nos desanima. Ouvi dizer que chegam a estar 30 graus negativos. Aí na terra não há frio como este! E depois, é a chuva que não pára e deixa tudo num lamaçal. Enregelamos até aos ossos, porque a nossa roupa deixa passar a água e não temos nada que nos tape do frio. Os camaradas ingleses têm botas e capotes untados e a água não entra. Nós não temos nada disso e o nosso calçado, ensopado, afunda-se na neve e na lama, que aqui é pegajosa e, como nunca seca, o calçado apodrece facilmente.

Às vezes chegam de Portugal uns caixotes com roupas e agasalhos, mas o frio é demais!



«Carroças conduzindo para bordo os 14 caixotes de roupas e agasalhos que constituem a 9ª remessa do Século»
Fonte de imagem: Revista Ilustração Portugueza, nº625,11/Fev/1918, Hemeroteca Digital de Lisboa


Quando cheguei, no princípio do mês, andavam a distribuir uma espécie de coletes de pele de carneiro, que tapam o peito e as costas – dizem que se chamam “pelicos” e são usados pelos pastores do Alentejo – e ainda uns “ceifões” da mesma pele, que se atam às pernas, para aquecer. Aquilo aquece, mas é um ninho para os piolhos e outra bicharada que se lhe agarra, porque gostam da lã.

Quando viram passar os nossos, assim lãzudos, os alemães começaram na galhofa, lá das trincheiras deles, a berrar como as ovelhas… Bé-é-é-é! Bé-é-é-e! Mas os nossos respondem-lhes bem: “Carneiro é o teu pai, grande filho da p…” e outras coisas piores. Só não sei se eles percebem, porque não falam a nossa língua.

Que saudades tenho da nossa comida. Aqui dão-nos “corned beef”, é uma carne empastada, que vem numas latas e nem se percebe o que é. Dizem que é carne de vaca e de cavalo e que remédio temos nós senão comer aquilo.


Ração de combate (cornned beef) fornecida pelos ingleses aos militares do CEP

(Fonte de imagem:www.militaryhistoryworkshop.co.uk)


Todos os dias peço a Deus que me proteja. Os bombardeamentos destroem tudo e nem as igrejas são poupadas. Encontramos imagens sagradas, martirizadas, espalhadas por todo este lamaçal. Chamamos-lhes “Cristos das trincheiras” [x]. É triste, mas dão-nos muito consolo.

       

Um dos "Cristos das trincheiras"
(fonte de imagem: https://ahm-exercito.defesa.gov.pt)


Se Deus quiser, estou aí na Páscoa, são e salvo, longe deste inferno! Não vejo a hora de tirar a barriga de misérias, com a nossa broa e o nosso cabrito!

Despeço-me com muitas saudades. Adeus e até ao meu regresso.

 

Sim, talvez tenha pedido ajuda a algum camarada, para enviar notícias à família, mas esta carta, se a tivesse escrito, não chegaria ao destino – a censura militar não permitia más notícias, para não desmoralizar a opinião pública!

Ao público, chegava uma versão dourada de entusiasmo e fervor patriótico. A revista “Ilustração Portugueza”, de grande divulgação, dava da guerra uma imagem quase de campo de férias, garantindo mesmo ser «indescritível o entusiasmo que lavra no front portuguez, onde os briosos serranos esperam de um momento para o outro a anunciada ofensiva alemã» (Nº626,18/Fev/1918, p. 133). Assim, tal e qual, como se de um encontro desportivo se tratasse.

Entretanto, na frente, os tais «briosos serranos», tremiam de febre e frio, muitos já infetados pela “pneumónica” ou “gripe espanhola”, que em todo o mundo ceifou mais vidas que a própria guerra. Pensa-se que essa terrível pandemia terá nascido ali mesmo, no ambiente insalubre das trincheiras, naquelas valas, onde os soldados viviam semanas a fio ensopados – ali comiam e lutavam e, esgotados, adormeciam enregelados.



Soldado aliado chora no campo de batalha
(Fonte de imagem: https://hstoriaschistoria.blogspot.com)


O Ano Novo trouxe-lhe um ligeiro afastamento da frente de batalha, pois a 18 de fevereiro de 1918 é colocado no Hospital de Sangue nº 2, um pouco mais na retaguarda.

Entretanto, os seus camaradas na frente de batalha, esgotados de cansaço, aguardavam em desespero a prometida chegada de tropas que os rendessem, permitindo-lhes algum tempo de recuperação.



Presidente Sidónio Pais 
(Fonte de imagem: www.presidencia.pt


Porém, com a chegada de Sidónio Pais ao poder, no ano anterior – em dezembro de 1917 – , tinha sido estabelecido um novo sistema de rotação, que além de impraticável, provocou um sentimento de injustiça e um grave abaixamento do moral das tropas – os oficiais vinham a casa de licença e muitos não regressavam, enquanto os restantes militares desesperavam na espera da sua vez. Os militares portugueses eram os que estavam há mais tempo na frente de batalha sem serem rendidos!

Em caso de ataque, seria uma tragédia… Os alemães sabiam disso e aproveitaram bem!

Na madrugada de 9 de abril de 1918, bombardearam as nossas posições de artilharia e postos de comando, durante quatro horas ininterruptas. Logo nas primeiras horas do ataque, milhares de portugueses foram mortos, feridos ou feitos prisioneiros – o campo ficou semeado de corpos, muitos já sem vida, muitos outros agonizantes. 



Cemitério militar português de Richebourg l'Avoué, norte de França
(fonte de imagem: www.rfi.fr/pt )

E que foi feito dos mais de sete mil, de quem nada se sabia? Uns foram levados como prisioneiros, outros terão fugido e ficado por lá, em terras de França. [xi]

Ao Hospital de Sangue não chegavam os mortos – esses já não sofriam… – mas quanto sofrimento terá presenciado José João Miranda naqueles dias? Mazelas do corpo e da alma, sem que lhes pudesse valer. E quanto terá sofrido pelos camaradas com quem não voltaria a confraternizar? Dos 185 rapazes do 2º Grupo de Saúde, que com ele tinham partido para a guerra, seis morreram, cinco ficaram feridos e nove foram feitos prisioneiros. [xii]

A guerra parecia arrastar-se, sem fim à vista, e com ela o sofrimento e a angústia… mas que grande alegria terá sentido quando, a 11 de novembro, foi assinado o armistício entre a Alemanha e os Aliados! Finalmente, voltaria a casa!

Aproximava-se o Natal de 1918. A família, a consoada, as filhós… como ele terá sonhado com o regresso!

Porém, a 14 de dezembro, o Presidente da República, Sidónio Pais, o “presidente-rei”, como lhe chamou Fernando Pessoa, foi assassinado na Estação do Rossio em Lisboa. Na confusão que se seguiu, quem se ia lembrar dos rapazes que permaneciam em França, aguardando o repatriamento?

Apenas no final de março do ano seguinte conseguiu embarcar no “Menominee”, um barco de transporte militar inglês, com destino a Lisboa. Este “brioso serrano” nem acreditava na sua sorte!




Fonte de imagem: Revista Ilustração Portugueza, nº688,28/Abril/1919, Hemeroteca Digital de lisboa


Poucos dias depois, já em abril, finalmente, voltou a ver Lisboa! No cais, Guarda de Honra, café, bolos, tabaco… como que a dizer «sejam bem-vindos a casa!».

Para trás de si, lá longe, no nevoeiro da Flandres, deve ter deixado as memórias tenebrosas desse ano terrível que lá passou, pois delas ninguém teve conhecimento – nunca as contou aos netos!

Qual seria o seu estado de espírito? Decerto muito amargurado, mas nunca o saberemos, pois não consta do seu registo militar.

O que sabemos – e isso é um facto! – é que, ainda na Flandres, na véspera de embarcar, encontrou uma bolsa de couro com uma quantia importante e imediatamente a foi entregar. A sua honestidade não tinha sido atingida ou fragilizada! Tudo o que ambicionava era amealhar, para comprar fazenda… A tal “quantia importante” poderia ter sido tentadora, mas não foi. 

 


Extrato do Boletim Individual do CEP de José João Miranda
(Fonte de imagem: Arquivo Histórico Militar)

Tal dignidade de procedimento, deste nosso “brioso serrano”, mereceu-lhe um Louvor que, embora conste do seu registo militar, também dele não deu conhecimento aos netos. Talvez o seu gesto – devolver o que não era seu – fosse tão natural que nem entendesse a necessidade do Louvor.

Em agosto foi-lhe dada licença, indo domiciliar-se no Sobral. Finalmente voltava à terra!

Mas queria amealhar dinheiro… terá tentado a sorte nas minas de volfrâmio, que por essa altura eram exploradas em Góis? Se o fez, não lhe deve ter agradado… ou talvez as minas lhe fizessem lembrar as trincheiras. O que sabemos é que, passados seis meses, já tem residência em Lisboa, onde vai tentar a sorte.

Porém, a Lisboa dessa época não era de modo nenhum o Eldorado que esperava. Vivia-se mesmo um clima de iminente guerra civil. O que terá sentido quando soube que, por cá, lá para o norte, também se escavavam trincheiras, como aconteceu em Mirandela[xiii]? Eram as forças monárquicas que tentavam derrubar a jovem república, logo um mês após a morte de Sidónio Pais – o Porto ainda foi, por 25 dias, a capital dessa “Monarquia do Norte”, até serem derrotados pelas forças republicanas.

José João Miranda percebeu que, em Lisboa, o dinheiro não valia nada, o aumento dos preços dos bens essenciais gerava frequentes revoltas populares. Muitos sobreviviam à custa da “Sopa dos Pobres”, uma prática caridosa antiga[xiv] que era retomada regularmente, em tempos de crise.



A sopa dos pobres do Jornal "O Século" - Ilustração Portuguesa nº-668, 28-Abril-1919, pág.328, Hemeroteca Digital de Lisboa

Por ali ficou apenas cinco meses. Em julho já estava de partida para a América do Norte, devidamente licenciado pelo Exército, pois, até aos 45 anos teria de lhe dar contas do seu paradeiro.

Dois anos e meio depois regressava a Portugal e de novo voltou ao Sobral. Talvez tenha conseguido cumprir parte do seu sonho, mas não todo, pois em novembro de 1926, com 31 anos, já casado e pai de filhos, regressa a Lisboa. Encontramo-lo a partilhar, com outros dezassete conterrâneos, uma “Casa da Malta” existente num 1º andar do nº 27 da Rua João do Outeiro, naquela “extensão” do Colmeal que era nessa altura a Mouraria. Com pouco mais de metro e meio de altura, contrariando a imagem tradicional que deles temos, foi Moço de Fretes – afinal os “briosos serranos” também não se medem aos palmos!

E depois?... depois, apenas sabemos que voltou ao Sobral, logo que o esforço do seu trabalho lhe permitiu cumprir o sonho – “Casa onde caibas e terra que não saibas”. E lá terminou os seus dias, no silêncio e na paz daquelas serras, tão longe dos horrores da guerra, que decerto não esqueceu, mas calou. Dela, os seus nada sabiam – nem tormentos nem louvores.


Deonilde Almeida



[i] Silva Tavares, poema “Inscrição” para o túmulo do Soldado Desconhecido, revista A GUERRA,nº1, 1/1/1926,ed.Liga dos Combatentes

[ii] Ver artigo publicado no blog da UPFC: https://upfc-colmeal-gois.blogspot.com/search?q=do+pouco+fizeram+tanto

[iii] Os seus filhos, Manuel Miranda e Carlos Miranda foram entusiásticos regionalistas e fizeram parte dos pioneiros que fundaram a União Progressiva da Freguesia do Colmeal, integrando os seus Corpos Gerentes.

 [iv] “A Escola Superior de Enfermagem Dr. Angelo da Fonseca reivindica hoje o privilégio de ter sido a primeira Escola de Enfermagem do País, fundada em 17 de Outubro de 1881, pelo Administrador dos Hospitais da Universidade de Coimbra, Senhor Professor Doutor António Augusto Costa Simões, sendo denominada por Escola dos Enfermeiros de Coimbra” (Graça, L.; Henriques, A. Isabel (2000) – “Evolução da Prática e do Ensino da Enfermagem em Portugal”, https://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos62.html

[v] Coronel da Força Aérea Luís Alves de Fraga “O Serviço de Saúde no Corpo Expedicionário Português em França 1916 –1918, pág.14 (https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/523/1/O%20Servi%C3%A7o%20de%20Sa%C3%BAde%20no%20Corpo%20Expedicion%C3%A1rio%20Portugu%C3%AAs%20em%20Fran%C3%A7a_2.pdf)

[vii] Coronel da Força Aérea Luís Alves de Fraga “O Serviço de Saúde no Corpo Expedicionário Português em França 1916 –1918, pág.14 (https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/523/1/O%20Servi%C3%A7o%20de%20Sa%C3%BAde%20no%20Corpo%20Expedicion%C3%A1rio%20Portugu%C3%AAs%20em%20Fran%C3%A7a_2.pdf

[viii] António Gonçalves Curado foi o primeiro soldado português morto em combate. A notícia desta primeira baixa do CEP é publicada em Portugal pela revista Ilustração Portugueza de 14 de maio de 1917

[ix] Dias, Costa, “Flandres”, Imprensa Libanio da Silva, Lisboa,1920, Hemeroteca Digital de Lisboa

 [x] Uma das imagens de “Cristo das Trincheiras”, amputado das pernas e de um braço, e com uma bala cravada no peito, será oferecido pela França a Portugal, em 1958, e colocado à cabeceira do túmulo do Soldado Desconhecido, no Mosteiro da Batalha. (http://www.mosteirobatalha.gov.pt/pt/index.php?s=white&pid=176&identificador=bt125_pt_rev_15_04_2021)

[xi] FRAGA, Luís Manuel Alves de, La Lys – a última batalha do exército português. Separata das actas do IV colóquio a História Militar de Portugal no século XIX, 1993, pág. 17

[xiv]  “1810, Outubro - devido às Invasões Francesas, cerca de 50.000 pessoas famintas entram em Lisboa levando os Governadores do Reino, o Senado da Câmara e diversos beneméritos a criar a distribuição quotidiana de sopas económicas em diversos pontos da cidade, sendo um dos principais em Arroios; 1893, 8 Dezembro - apresentação à sociedade do projeto das Cozinhas Económicas sob a iniciativa da Duquesa de Palmela, D.ª Maria Luísa de Sousa Holstein Beck, com a colaboração da Marquesa de Rio Maior; 1893, 9 Dezembro - abertura da primeira Cozinha Económica na Travessa do Forno aos Prazeres” (Fonte: http://www.monumentos.gov.pt )