O terramoto
de 1755
A propósito de Fernando Costa li,
há tempos, em artigo de António Santos, na revista Arganília, que um amigo não morre, apenas parte antes de
nós. Achei a frase linda e associei-a aos versos de Camões, quando refere
que há pessoas que por obras valorosas,
se vão da lei da morte libertando. Não nasceu em berço de ouro nem andou na
faculdade dos calhamaços, de capa e batina, mas a universidade da vida, essa
aproveitou-a bem! E, mercê dessa aprendizagem, construiu obra que,
generosamente, partilhou com os leitores - fruto do seu trabalho, as suas
descobertas, o seu saber. De facto, Fernando Costa foi um amigo que partiu
antes de nós, mas deixou obra feita. Obra valorosa que o mantém vivo entre nós,
de forma inspiradora.
Uma das suas grandes paixões era
o regionalismo, esse apego à nossa terra e às suas gentes, gentes do xisto e da
urze, como li algures. Investigar e divulgar a sua origem, a sua história, o
desespero pelo desenvolvimento que tardava para minorar a angústia do seu
(sobre)viver.
A última vez que conversámos,
melhor, a última vez que tive o privilégio de o ouvir, pois ele tinha tanto
para partilhar e eu queria tanto ouvi-lo, foi algures em agosto de 2001 ou
2002. Doeu-me a sua fragilidade física, pois a sua força interior era imensa.
Disse-me que precisava da minha ajuda para uma pesquisa que andava a fazer.
Falou-me das origens do Colmeal, de como estava convencido, pelas pesquisas que
tinha feito, que a Eira terá estado em tempos unida ao Lombo das Vinhas, pois o
pequeno vale que agora os separa, terá resultado da exploração romana do barro
de boa qualidade aí existente para o fabrico de recipientes (ânforas) de
transporte de alimentos. Era fascinante ouvi-lo!
Todo o conhecimento que não é
escrito, que não é registado, perde-se em duas ou três gerações. É um facto. Era
contra esse esquecimento que ele lutava. Em alguma altura da nossa história, um
grupo de destemidos veio povoar esta região. Quem eram? quantos eram? Como
viveram? Que dificuldades enfrentaram?
Pelas encostas da serra, muito
devem ter penado a partir e a transportar a pedra com que haveriam de construir
as suas casas, mas, sobretudo, as paredes de sustentação da pouca terra de que
dispunham para cultivar as estreitas leiras de onde haveriam de comer “o pão
que o diabo amassou”. Os incêndios de 2017 deixaram a descoberto muitas dessas
paredes, desafiando-nos a recordar a técnica e o esforço imenso de quem as
construiu, com tal solidez que ainda hoje resistem.
O Fernando Costa, apesar da sua
já evidente fragilidade, continuava a investigar, empenhado em registar a
história e a memória do Colmeal e das suas gentes. “Tu deves poder consultar a
Torre do Tombo… preciso
de informações que lá existem nuns documentos”, disse-me. Mas a Torre do Tombo,
por essa altura, estava ainda em fase de instalação no novo edifício e, pelo
que me foi dito, apenas disponível aos investigadores de doutoramento, o que,
lamentavelmente, não era o meu caso. Fiquei triste, por não lhe poder ser útil.
Recentemente descobri, justamente
no site da Torre do Tombo, uns documentos que me trouxeram à memória o Fernando
Costa – seriam estes os documentos de que ele precisava? Aqui vos deixo estas
relíquias da história do Colmeal, como humilde homenagem que lhe presto.
Em 1755, como é sabido, ocorreu o
grande terramoto. O Secretário de Estado dos Negócios do Reino, Sebastião José
de Carvalho e Melo (mais tarde Marquês de Pombal) enviou, através da hierarquia
eclesiástica, a todos os párocos do reino, um questionário com o qual se
pretendia perceber o fenómeno ocorrido e avaliar o número de vítimas, os
estragos causados e as medidas tomadas. Aproveitava-se para fazer uma contagem
da população, discriminando o total de homens e de mulheres, existentes em cada
freguesia.
D. Miguel da Anunciação, Bispo de
Coimbra, divulgou esse inquérito aos párocos, através de um folheto impresso.
Cumprindo as ordens recebidas, o pároco do Colmeal respondeu, ponto por ponto,
em documento manuscrito, que é uma das preciosidades preservadas na Torre do
Tombo.
O primeiro documento é mais formal e institucional e as perguntas
formuladas refletem o espírito científico do ministro que viria a ser Marquês
de Pombal. O segundo, até pelo facto de
ser manuscrito, aproxima-nos do homem que o escreveu, da sua visão do fenómeno
ocorrido, da sua religiosidade e do seu papel no Colmeal da época. No conjunto,
são duas relíquias para a historiografia local, que vale a pena conhecer.
Lendo as respostas de Jozé da
Costa Gomes, Cura, que era pároco do Colmeal em 1755, pela sua caligrafia e
pelas respostas zelosas, mas de homem simples, ficamos mais próximos e quase lhe
conseguimos ouvir a voz, respondendo cuidadosamente a cada pergunta do Bispo de
Coimbra .
Diz ele que “Nesta freguesia de S. Sebastião do
Colmeal, pela suma bondade de Deus, não houve ruína alguma nas casas, pois nela
não há edifícios, somente algumas casas. Com o rumor do terramoto, se
descompuseram algum tanto nos telhados, porém não foi coisa de consideração.”
É muito curioso o modo como se
refere ao dano causado nos telhados. Tal como diz, ficaram “descompostos”.
Aqui, deve ter-se em conta que, naquela época, os telhados ainda eram de colmo
(palha do centeio), pelo que é de crer que as casas tenham ficado como que
“despenteadas”.
Face à pergunta “Que pessoas morreram, se algumas eram distintas?”, o
nosso pároco respondeu, esclarecendo que “Não
morreu pessoa alguma por causa do terramoto nesta freguesia, pois assim o permitiu
a divina providência.”
Pelo espanto que causou a onda
gigante (tsunami) que varreu Lisboa, na sequência do terramoto, eram colocadas
perguntas que permitissem avaliar o comportamento das águas em todo o
território: “Que novidade se viu no mar,
nas fontes e nos rios?”; “Se a maré vazou primeiro ou encheu? Quantos palmos
cresceu mais do ordinário? Quantas vezes se percebeu o fluxo, e refluxo
extraordinário? Se se reparou, que tempo gastava em baixar a água, e quanto em
tornar a encher?”; “Se abriu a terra algumas bocas, o que nelas se notou, e se
rebentou alguma fonte de novo?”
Ao que o pároco do Colmeal responde:
“Do mar e de suas novidades não sei dar notícia, pelo muito que esta
freguesia dele dista. Nas fontes não houve nesta freguesia novidade alguma, e
somente de um rio que pelo meio dela flui, no tempo que durou o terramoto se
observou que suas águas, ao parecer, retrocediam para trás.”
O mesmo fenómeno é também
registado pelo vizinho pároco do Cadafaz: “O
rio Ceira, que medeia nesta freguesia dizem-me que suspendera o seu curso à
força do tremor e a fonte donde bebe este povo se fez sua água como leite e
assim esteve por espaço de três dias”
Regressando ao Colmeal, ficamos a
saber que “Não abriu nesta freguesia a
terra bocas algumas, nem rebentou fonte alguma de novo.”
Quanto à pergunta “Que providências se deram imediatamente em
cada lugar pelo Eclesiástico, pelos Militares e pelos Ministros”, o pároco
do Colmeal esclarece que: “Não há nesta
freguesia militar, nem ministros, eclesiásticos, somente o pároco” e, à falta de conhecimento científico que
explicasse aquele fenómeno estranho e assustador, o pároco socorreu-se da sua
religiosidade para apoiar os paroquianos: “as
providências que entendi devia dar era excitar, exortar aos paroquianos ao verdadeiro
amor de Deus, ao ódio dos vícios, ao exercício das virtudes; principalmente a
fazer uma humilde, verdadeira confissão dos seus pecados, com que a divina
justiça se achava justissimamente enojada, eram a causa de tão grande aviso,
excitados assim, concorreram com muito fervor, e devoção a confessar-se”
Não estariam ainda refeitos do
susto, quando “No dia 11 de dezembro de
1755 conhecidamente repetiu o terramoto pelas 5 horas e meia da manhã, pouco
mais ou menos, porém não fez dano algum nesta freguesia, muitas vezes se
percebe, principalmente em casa, estar lentamente tremendo, porém sem ruído
algum.”
Tratava-se de um fenómeno
absolutamente desconhecido, pelo que afiançavam os mais idosos: “Não há memória alguma que nesta freguesia
tenha havido terramoto, como dizem as pessoas mais priscas que
nela há.”
O pároco informa depois que “O número de pessoas que há nesta freguesia
são 355. Homens – 168. Mulheres – 187”, não especificando idades, pelo que
não sabemos se inclui crianças e jovens. Já o pároco do Cadafaz é muito
preciso: “tem esta freguesia entre
pequenos e grandes do sexo masculino duzentos e trinta e do sexo feminino
pessoas entre pequenas e grandes duzentas e trinta e oito”
Termina o nosso pároco a resposta ao
questionário com a informação de que “Não
se experimentou nesta freguesia falta alguma de mantimentos.” e “Também não houve incêndio algum.”
É um momento histórico, na vida
das gentes do Colmeal, que encontrei documentado e que lamento não ter podido
entregar ao Fernando Costa, ficando depois à conversa, analisando, comparando… mas,
sobretudo, ouvindo-o, pois sei que aprenderia tanto!
Bem-haja, Fernando, pelo seu
contributo para o regionalismo e para a historiografia local.
Deonilde Almeida (Colmeal)
FONTES:
Santos, A.Domingos (2016).Fernando Costa – regionalista e jornalista
serrano. Arganília.série III,
nº29,p.155
Ramos, Mário Paredes(1999).Arquivo Histórico de Góis(vol.II,p.88).Góis:Câmara
Municipal de Góis