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"Estou aqui há quarenta e seis anos."
(Alfredo Marques da Costa - Colmeal)
"Das festas
Das seculares procissões
Dos populares pregões matinais
Que já não voltam mais.
Já não voltam mais, mas não são só os pregões matinais. Muitas outras coisas começam a ficar lá para trás, tragadas pela voracidade inexorável do progresso. Entre estas, também os moços de fretes, figuras típicas duma Lisboa que vive na saudade dos mais velhos, assistem impotentes e desaventurados, à agonia da sua profissão.
O pau e corda deixou de ser necessário ou, pelo menos, tornou-se perfeitamente dispensável, agora que tudo - ou quase tudo - tende a resolver-se mecânicamente. Anacronizado pela força do progresso, o moço de fretes, também chamado moço de esquina ou galego, naufraga nos resquícios de uma profissão acabada. Mas terá chegado a ser uma verdadeira profissão, este míster citadino? Em tempos, muitos o tomaram como tal, uma vez que nele procuravam - e conseguiam - o sustento da família.
... Virámos uma última esquina, abordando esta figura espectante de mais um entre os derradeiros. Um moço de fretes que gostaria de o não ter sido.
«Gostaria de ter estudado, SER ALGUÉM. Mas vim da província sem instrução, era preciso ganhar a vida, peguei no pau e corda. Má hora. Houve tempos bons, lá isso houve. Até fazíamos recados de segredo às meninas e às senhoras e olhe que então pingavam os cinco mil réis, os dez mil réis só por irmos levar um bilhetinho de amorios. E era um corropio a chamar por nós. Agora? Que lhe hei-de dizer? Isto está no fim. Os moços de fretes vão acabar, vem aí outro mundo. Só tenho pena de, quando chegar o dia, não ter um buraco onde descansar os ossos magoados de tanto carrego, de tanta chuva, de tanto frio. De noite, de dia, de Inverno, de Verão, nunca descansei. E estou aqui porque não sei fazer outra coisa e também porque... olhe, acostumei-me a ver a vida de uma esquina, que quer que lhe diga mais?»"
Do espólio de Fernando Costa
Excerto de uma notícia vinda na imprensa da capital, em data não apurada.
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