Em 16 de Setembro de 1914 nasceu nu, descalço, como todo o ser humano. Mas, ao contrário de muitos jovens da sua geração, somente aos 18 anos soube o que era andar calçado. E, de seu, não possuía telha nem um palmo de terra para cultivar.
Deus dá o frio conforme a roupa – diz o povo – e talvez por as suas vestes não serem as mais aconselháveis, em face das temperaturas rigorosas que no Inverno aqui se fazem sentir, ofereceram-lhe farda do exército, com galões e tudo… Praticamente, a partir daí perdeu o seu nome – Manuel de Almeida Neves – passando a ser tratado pelo epíteto de «Tenente».
O «Tenente», queiram ou não, é uma figura típica do Colmeal, que admiramos pelos rios de suor que deixou ficar na Serra durante mais de duas dezenas de anos a conservar a «malvada» da estrada do Rolão.
Não estamos a gozar, a entrar no campo do jocoso ou da ironia. Desafiamos, seja quem for, a tentar conservar uma via de terra batida, com 11 quilómetros de extensão, possuindo para o efeito somente o carro de mão, a pá, a enxada.
Manter uma via de comunicação em condições de transitabilidade, como já estava provado no final da década de sessenta, não é trabalho para um só homem. Quando acabava de limpar os últimos quilómetros de valeta já os anteriores se encontravam entulhados e quando ensaibrava a metade do percurso o trabalho anterior estava degradado pelo trânsito de viaturas ou pela enxurrada.
Recuando no tempo e mudando de tema: o Manuel de Almeida Neves, mais outros contemporâneos, foi assistir à festa da Malhada. Aí vendo actuar, pela primeira vez, uma filarmónica – a da Pampilhosa da Serra – logo se interrogou: porque não havemos de fazer a mesma coisa no Colmeal?
Transmitida a ideia, isto em 1923, e como autêntico líder apenas com 9 anos, logo mobilizou a malta da sua idade, passando a «banda» a «ensaiar» na «casa da música», aos Chães.
Como se calcula, os «instrumentos» eram rudimentares: pífaros, feitos de cana; os pratos, tampas de panelas; o saxofone, resultou da montagem de perna de candeeiro com um pedaço de cana e o bombo feito de arco de peneira e foles velhos.
Na «banda» chegaram a actuar 14 figuras, desfilando pelas ruas da nossa aldeia, tocando o ti_ri_ti_ti.
Tudo isto pode parecer anedótico, mas não o é. As coisas devem ser analisadas à luz da época (1923) e da idade dos promotores (8, 9, 10, 11 anos) que, talvez sem o saberem, ambicionavam para eles e para a sua terra formas de cultura que outros já possuíam.
Os anos passaram, os miúdos tornaram-se homens e desandaram para Lisboa. No entanto, em 1933 o Manuel Neves, então já «Tenente», pressionado, voltou a reorganizar a «banda». Aos velhos «instrumentos», guardados religiosamente, juntaram-se algumas inovações: cornetas de barro e pífaros de lata. Nesta segunda fase 16 jovens chegaram a compor a «banda».
Hoje que tanto se apregoa bairrismo, quem na nossa terra entre os que aqui vivem ou labutam na cidade, é capaz de mobilizar uma vintena de conterrâneos para darem o coirão ao manifesto, meterem ombros a qualquer empreendimento por modestíssimo que seja, como fez o «tenente» em 1923 e 1933?
Quantos, quantos colmealenses têm esse poder de mobilização que possuía o então jovem «Tenente»? Nós não os vemos!
FERNANDO COSTA
In “O Varzeense” Nº 173, de 15 de Fevereiro de 1987
Do espólio de Fernando Costa
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