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15 outubro 2020

BELEZAS E RIQUEZAS DA SERRA. NO COMEÇO DO OUTONO

De manhã chovia miudinho. Uma chuva irritante que insinuava-se por toda a parte, tocada pelo vento que a ondulava. Ou encordoava, como ouvia dizer em pequena, sem perceber a alusão implícita ao torcido das cordas que atavam os molhos de mato, lenha e outras precisões.



A chuva parou, mas o vento intensificou-se. Fogoso, partiu pernadas de um castanheiro centenário, abriu janelas carentes de manutenção, fustigou oliveiras vergadas sob o peso da azeitona e da molha que as ensopava. Ao mesmo tempo meigo, tanto acariciou a espantalha que a despenteou, e zombou de um “tertulho” envergonhado que o despiu das ervas que o cobriam. Mas não o impediam de crescer, tal a energia com que o fazia, desafiado pelo parceiro que já brilhava, de chapéu aberto, vencedor. Vencedor, porque não é de todo fácil resistir em condições e circunstâncias tão adversas.



De repente, era como se o inverno frio tivesse chegado para revezar o verão quente, quando o outono mal tinha começado. O outono, uma estação de ocaso, por definição, que é suposto ser amena, de continuidade e transição e, nessa medida, calma e agreste, quente e fria, luminosa e sombria. Seguramente, tempo de plenitude, de juventude e velhice, de temporão e serôdio, de precoce e tardio. Propriedades evidentes, por exemplo, nos bandos de pais e filhos que esvoaçam por aí, agitados. Uns são residentes e veraneantes que ainda não partiram, como as felosas, outros, visitas precoces de inverno, como o pisco-de-peito-ruivo, que voltou mais melodioso que nunca.

Propriedades outonais materializadas, igualmente, nas flores e frutos primaveris e estivais que teimam em desabrochar, mais requintados ou desenxabidos, tanto na beleza como no aroma e sabor. Entre outros, é o caso das roseiras, da segurelha – tempero da chanfana de florinha azul minúscula -, das sécias e dálias, dos amores-perfeitos-silvestres, mais que perfeitos e encantadores! No campo das comestíveis sobressaem o fisális e os morangueiros e, no dos matos, a “magurice” (calluna vulgaris). Recém-regressada da destruição que sofreu, esta urze, também chamada ponteira, floresce tarde, avermelhada e agridoce, como o mel para que contribui, através do labor árduo das abelhas.




Finalmente, o outono, tempo maior de maturidade, generosidade e abundância. Refletidas nas colheitas que vemos pela janela da televisão e, por aqui, na infindável quantidade de mimos e promessa deles que ornamentam as espécies recuperadas do incêndio de há três anos. No campo das hortícolas destacam-se as várias aboboreiras, no das oleaginosas, os girassóis. Estes são plantas majestosas, de flores extrovertidas que, a determinada altura, abandonam o sol que as atraía, para se inclinarem cabisbaixas sobre o solo. Imagina-se que o façam para proteger as sementes deliciosas dos gulosos que as cobiçam! Debalde! Avidamente, os passaritos devoram-nas, usando para o efeito complexas e perigosas acrobacias. Nelas são exímios o chapim-real (o azul e o rabilongo ainda não reapareceram), o pintassilgo, o verdelhão e, este ano, até um pica-pau-malhado ou peto. Tendendo esta última ave para ser insetívora, sugeria um amigo que pode estar a tornar-se vegetariana, na senda da opção de muitos, por razões de saúde e ambientais.





No campo das árvores e arbustos, constituem exemplo de produção farta os castanheiros, as oliveiras, os diospireiros, os azevinhos e os ervideiros (medronheiros). Alguns dos primeiros já apresentam ouriços sorridentes, a um mês dos magustos que não vamos poder fazer, os últimos são de uma resiliência espantosa e comovente. Embora pequenos, muitos dos ervideiros que arderam no referido incêndio têm fruto, e flor, uma vez que a dão ao mesmo tempo. Por agora, mostram-se muito adequadamente temporões no fruto, serôdios, na flor para o próximo ano.





Enfim, uma enorme e fascinante diversidade em transformação, a natureza e a singeleza (também do texto) no seu melhor! Só falta mesmo revestir-se da sinfonia de cores que fará silêncio no inverno, para ressoar na primavera.

Não quis falar do outono da vida, da nossa. Mas, sobre ele, dizia o poeta e cardeal José Tolentino de Mendonça que (…) não é, portanto, o fim da história. Se o soubermos agarrar, é sim um ponto de partida avançado, que nos permite essa coisa urgente que é a "transfiguração" da vida, através de um paciente e esperançoso trabalho interior (https://www.snpcultura.org/paisagens_sonata_de_outono.html).


Lisete de Matos

Açor, Colmeal, outubro de 2020.


11 março 2019

BELEZAS E RIQUEZAS DA SERRA NA OBRA DE JORGE VILAÇA.




Era uma vez um pintor que andava a pintar a serra e disseram-lhe assim: pinta esta serra como se vê, e o pintor disse à serra: vou-te pintar! E a serra sorriu e pôs-se a dançar; vestiu-se de fogo e pôs-se a gritar; cobriu-se de folhas e foi-se deitar.
Dormiu com o pintor e pôs-se a chorar.
Contou-me um segredo e pôs-se a sonhar.
Ora então dizei-me como hei-de pintar.
A serra tem alma; ah, isso tem.
A serra fala, goza, faz-se bela.
A serra engravida; a serra dá à luz
A serra contou-me que me há-de levar.
A serra falou-me que me há-de guardar,
Que me há-de gerar.
Quem quiser ver a alma da serra, suba! E pergunte aos guardadores de gado, mas dizei-me meus senhores; valei-me olhadores: como hei-de eu pintar.
Como é que faz um monte a dançar? Como é que se pinta um ramo a abanar? Como hei-de eu pintar?
(…)
Obrigado ó serra por tudo o que me contaste nestas letras
Porque digo serra não sei pintar a serra a dançar. E assim fica dito
Que a serra é viva e que não se deve queimar.
Hoje, 26 de Maio de 1982, às 11 da noite, pintando a serra do Açor no
Lugar das Torrozelas, boa noite.
Boa noite.
(…)
Este bocado não foi semeado à data que eu falo. Guardado para quem o há-de comer. Bocado vou-te comer. Vou aqui pôr estas letrinhas para te enfeitar. É como se fosse um colar. E que dês muito feijão a quem te vier semear. E saúde e gozo e alegria a quem aqui cultivar. Longa e serena vida a quem aqui trabalhar. Bocado, que dizes mais? Já dormes? São 4 e um quarto da madrugada do dia vinte e seis de Maio de mil novecentos e oitenta e dois. Agora assino aqui: Ti Jorge do Açor (1)
Estes são alguns dos versos que fazem os bocados (cômoros) na obra acima incluída. É um mural de Jorge Vilaça existente numa sala da Câmara Municipal de Arganil. Já o mostrava no livro “Dos Objetos para as Pessoas” (2), por o considerar tão atraente e expressivo da beleza singela da serra. Vigia de um dos cantos superiores do espaço, como que a lembrar aos seus ocupantes o encanto da paisagem e o desencanto das suas gentes que, ao tempo, persistiam em partir.
A primeira vez que ouvi falar do “Ti Jorge do Açor” foi ao então presidente da Câmara Municipal de Arganil, Prof. José Dias Coimbra. Corria o início dos anos oitenta e o artista tinha acabado de pintar o painel que enriquece o salão nobre daquele município. É uma pintura alusiva à história do concelho, produzida pelo Jorge enquanto bolseiro da Direção-Geral da Educação de Adultos, organismo onde eu trabalhava. Daí a menção ao seu nome e talento, no âmbito de uma qualquer reunião de trabalho.

Sim, mas quem é o Jorge? Amante da serra e serrano do coração, Jorge Manuel Torres Vilaça (1940-2001) nasce em Barcelos. Devido à falta precoce dos pais, passa por internatos e seminários, estuda filosofia e teologia … Depois de ter estado em França, onde foi operário e frequentou os meios socio artísticos da época, regressa a Portugal em 1974.

Já com a segunda mulher, Ghyslaine Fritz, chega ao Colmeal e seguidamente ao Açor, em 1979, através do amigo Ricardo Reis, neto de Maria Adelaide Nunes e António Reis (Colmeal) e afilhado de Ilda Reis e José Saramago, prémio Nobel da literatura. Procura as raízes ancestrais, a liberdade, o silêncio, e uma vida comunitária em harmonia com os outros, com a natureza e com o universo. A partir do Açor, irradia a sua ação pela região.
Em 1984, quando o filho mais velho atinge a idade escolar, o Jorge regressa, digamos que definitivamente, a Vales de Baixo, Tomar, onde já tinha vivido. Porém, nos finais dos anos noventa, volta transitoriamente à serra do Açor. Na altura, já assinava “Bemaventuradojorge”, “por considerar uma bem-aventurança ter-se convertido à imaterialidade dos sonhos” (3). Trabalhou em Arganil, e manteve, no Piódão, um atelier/residência artística. De visita ao Açor, almoçou cá em casa, a convite do meu pai, que tinha pelo Jorge um grande apreço, depois de lhe ter comprado uns miniterrenos e vendido a “casa velha”, onde tinha nascido. Procurei diversificar a ementa, mas, por delicadeza ou não, apenas a filha que acompanhava o casal fez escolhas exclusivamente vegetarianas.
A viver da pintura desde o regresso a Portugal, Jorge Vilaça expõe individual e coletivamente um pouco por toda a parte, no pais e no estrangeiro, nomeadamente em França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça e Espanha.






Ao mesmo tempo, promove iniciativas de cruzamento e complementaridade artística, com destaque para as performances “sonzacors”, “Jazzacores” e “Poesia-a-cores”, onde, dito de modo muito simplista, se tratava de pintar a música ou a poesia e a palavra, tocando-as a elas e aos participantes. Era a pintura a interagir com outras linguagens, embora o Jorge, que privilegiava o papel da visão e do olhar para a perceção do essencial, considerasse que as palavras podiam desvirtuar os sentidos, razão pela qual as suas obras tendem para não ter título. Mas podem incorporar pinceladas de escrita e poesia, como vimos.


Multifacetado, Jorge Vilaça faz incursões na ilustração, na escultura, na instalação e no design, ao mesmo tempo que, apostado na partilha da arte, organiza ateliers e cursos formativos.


O legado público de Jorge Vilaça na região é significativo. Para além das obras já referidas, ocorrem-me: em Arganil, um mural na Santa Casa da Misericórdia, os painéis em azulejo no mercado municipal e na entrada do edifício da GNR, várias obras no Piódão; em Góis, Cadafaz, a restauração pictórica da capela e da igreja; no Buçaco, um mural no hotel Eden. Legado não menos importante é, de um outro ponto de vista, a memória que muitos guardam da autenticidade, desapego, delicadeza e sabedoria do “Ti Jorge do Açor”, Jorge Vilaça, “Bemaventuradojorge” ou simplesmente Jorge para os amigos e vizinhos. Em contrapartida, também a serra terá influenciado o conjunto da sua obra.





Em setembro passado, um grupo de amigos, em articulação com a família e com o apoio da Camara Municipal de Tomar, organizou a exposição retrospetiva “Jorge Vilaça. O dom de pintar o Invisível”, contexto em foi publicado o livro Bemaventurado Jorge, fonte a que tenho vindo a recorrer e que integrará o acervo da biblioteca da União Progressiva da Freguesia do Colmeal.


“Homem e artista acomodavam-se num único corpo pelo poder de uma sólida visão interior, e o todo era cerzido de forma tão coerente, intensa e poética que era difícil distinguir, a cada momento, quem era quem. (…) Que esta e outras exposições retrospectivas possam, enfim, fazer justiça – ainda que tardia, ao Bem Aventurado Jorge, resgatando do limbo do esquecimento a sua obra visionária, inspirada e poliédrica.” (4).
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 1 de março de 2019.


(1) Jorge Vilaça, in Raul Sousa (Coord.), Bemaventurado Jorge. Homenagem a Jorge Manuel Torres Vilaça, Artista plástico, Poeta e Visionário, Tomar, 2018. Com exceção para as memórias pessoais, a informação e a maior parte das imagens inseridas neste texto foram retiradas desse livro.
(2) Lisete de Matos, Dos Objetos para as Pessoas, Colmeal, ed. da autora, 2010, p. 103.
(3) Agostinho Costa, in Raul Sousa (Coord.), op. cit..
(4) Paulo Ramalho, idem.

05 abril 2018

COLMEAL - UNIÃO PROGRESSIVA PREPARA CAMINHADA



No dia 5 de Maio (sábado), iremos realizar a nossa já habitual caminhada pelos trilhos antigos. Este ano encontraremos uma envolvente bastante diferente das de edições anteriores, que desejamos seja irrepetível, resultante dos terríveis incêndios florestais que devastaram a nossa região no passado mês de Outubro.

A concentração dos participantes far-se-á no Colmeal, onde no Centro de Cultura e Convívio poderão tomar o seu pequeno-almoço. A partida será pelas 9 horas para um percurso que nos levará pela antiga estrada da Ribeira de Ádela, ao Açor e até Ádela.

Os participantes serão depois transportados de Ádela para a vizinha aldeia dos Cepos, onde será servido o almoço no Restaurante de Chão da Cabeça. No final do convívio está assegurado o transporte para o Colmeal e restantes localidades até Góis.

Contamos com a sua participação nesta saudável actividade e, como habitualmente, sugerimos e aconselhamos que leve protecção para a cabeça, sapatos confortáveis, roupa apropriada e também uma garrafa com água.

O valor da inscrição mantém-se nos 10,00 euros (almoço incluído) e os mais jovens, entre os 6 e os 10 anos, pagarão apenas metade.
Solicitamos que efectue a sua inscrição, o mais cedo possível, para um dos dirigentes: António Santos – 962372866; Maria Lucília – 914815132; Artur Fonte – 936049481; José Álvaro – 235761490 (noite) / 967546505; Catarina Domingos – 933344904; Tiago Domingos – 965344190. Ou, se preferir, para o endereço upfcolmeal@gmail.com

Esperamos por si e pelos seus amigos.
A Direcção                                                                         



26 fevereiro 2018

AINDA AS TELECOMUNICAÇÕES



A propósito de uma ocorrência triste verificada para os lados da Sertã, a Altice terá afirmado ter já reposto o serviço de telefone fixo, em mais de 99% do universo afetado pelos incêndios de outubro. Passados quatro meses, ainda assim duvido da afirmação, por experiência própria e pelo que me dizem. Mas, a ser verdade, resta saber em que condições. 

Em Açor e Ádela, na União de Freguesias de Cadafaz e Colmeal, apenas ontem, dia 22 de fevereiro, fomos visitados por um conjunto de brigadas da MEO. Chegaram de rompante, em vários carros, sem aviso ou simples contacto prévio, a propor aos clientes a instalação de telefone por satélite. De telefone, mas não de internet, mediante recuperação de uma solução tecnológica aparentemente em vias de extinção. O próprio equipamento – um caixotão enorme e, lá fora, uma antena gigantesca e um cabo grossíssimo, que muito desfeiam o que já não estava bonito - será uma reutilização de equipamentos substituídos, nomeadamente no Alentejo, onde serviam o povoamento disperso. Um investimento razoável, pelo menos em mão-de-obra, já que as equipas, gente muito simpática, vieram de Coimbra, mas sobretudo do sul do país. E a fibra ótica aqui tão perto, a 6 Km para o Colmeal e 10 para a Selada das Eiras!

Aceitei a proposta, mesmo sem informação sobre eventuais alterações contratuais. Tendo eu andado a reclamar da incomunicabilidade em que nos encontrávamos, inclusive para a ANACOM, não me pareceu legitimo recusar, tratando-se, embora, de uma resposta incompleta, face às minhas necessidades e ao pacote contratado. Mas com a intenção de rescisão, caso o fornecimento de internet não se verifique a curto prazo.

Serve esta narrativa simultaneamente pessoal e coletiva, para partilhar a preocupação com os indícios de agravamento das assimetrias a que estamos a assistir, contrariamente às expetativas criadas na sequência dos incêndios. Assimetrias entre cidadãos e territórios, inter e intraregionais e locais. Poderia dar vários exemplos, mas fico-me pelo aceso à internet, que é hoje um direito e um bem essencial, aliás apropriados, como agora se viu com a resistência das pessoas à aceitação do serviço de telefone sem internet. 

Quando se fala da cobertura do país com fibra ótica, mas depois há localidades que ficam a descoberto, como sem uma simples rede wifi, o que é se não promover a desigualdade de oportunidades e a discriminação de populações, a intensificação do isolamento e da descoesão social já existente? 

Por definição, as empresas são entidades que prestam serviços, visando o lucro, e contribuindo para o desenvolvimento dos países. Desde que no respeito pelas práticas e valores comummente aceitas, é o que delas se espera. Já dos poderes instituídos … Como é que fica o seu discurso sobre as medidas de discriminação positiva que é preciso tomar para revitalizar e dinamizar o interior, atrair e fixar residentes, superar o despovoamento, que sufoca os meios urbanos e provoca incêndios nos rurais? Quando não é fácil atrair e fixar empresas sustentáveis e profissionais qualificados, porque não começar por assegurar as condições infraestruturais para tanto necessárias, passando das palavras aos atos, paulatinamente, pouco a pouco acionando sinergias? 

Entre outros fatores, que aqui me dispenso de mencionar, o repovoamento e o futuro dos territórios socialmente deprimidos também passa pela possibilidade de trabalho a distância e interação global, bem como pela valorização do património material e imaterial suscetível de alavancar as diferentes formas de turismo. Sem telecomunicações aceitáveis, nomeadamente internet e redes móveis, como fazer isso? Quererá alguém vir viver para as aldeias? Sentir-se-ão os visitantes seguros e confortáveis? Continuarão os amantes da sua terra natal ou de origem a vir de férias e nos fins de semana? Quererão algum dia regressar? E os seus filhos e netos? 

Lisete de Matos 

Açor, Colmeal, 23 de fevereiro de 2018

23 dezembro 2017

INCÊNDIOS DE OUTUBRO. DOIS MESES DEPOIS


Ardeu a 16 de outubro, mas em aldeias próximas já tinha ardido no dia e na semana anteriores. Dois meses depois, persistem o luto e a tristeza da serra, das terras e das almas, sem tréguas ou fuga possível, ande-se para sul, norte, nascente ou poente. Perdas incomensuráveis, inenarráveis, irreparáveis, nomeadamente nos campos da memória, da biodiversidade e do património construído.


O território parece outro, na crueza das suas escarpas xistosas e na evidência do papel do homem na construção da paisagem. Desaparecido o denso manto verde que o cobria, veem-se por toda a parte penhascos novos (!), caminhos antigos, barrocos que desviavam as águas dos terrenos de cultivo, “combâros”, socalcos magros que protegiam da erosão e asseguravam mal o sustento frugal das pessoas, currais agora transformados em ruinas.



Nos olivais, a azeitona jaz no chão atormentada, sem ter dado ao mundo a luz que prometia. Nas zonas de pinhal, o chão e as estradas acastanham da caruma caída, uma ameaça escorregadia como gelo. As árvores de fruto ou continuam de pé desamparadas ou já foram decepadas, umas quase rentes para que renasçam vigorosas, outras mais por cima, tudo dependendo do método de recuperação defendido. Muitas não o farão, tão fundo o fogo cavou em seu corpo indefeso, jovem ou centenário. As feridas abertas lembram bocarras medonhas e frias.








Até agora, choveu muito pouco. Todavia, sem vegetação que retenha a água e a faça penetrar no solo ressequido, o suficiente para somar devastação à devastação. Apressados, negros e lamacentos, os caudais formados precipitaram-se serra abaixo, destruindo terrenos e atolando estradas e rios.

Mas há indícios de esperança! As ervas e os fetos que despontam pujantes a verdejar de diferença, o “tertulho” sem par desabrochado de um fungo que resistiu ao fogo e ao calor intenso, milhares e milhares de formigas amontoadas a manifestarem-se. Por serem assim ou em sinal de desagrado, apresentam o ventre vermelho. Lentamente, as aves que restaram – talvez 5% dos efetivos habituais – vão retomando as suas rotinas, umas usando a água gelada para se limparem da experiência, outas debicando no comedouro novo, criação em xisto com que o Valdemar as brindou. Não chilreiam, ainda mudas de incredulidade e pavor. Sobre os outros animais, há quem diga ter visto um esquilo à procura de castanhas cruas, uma mãe javali com as crias muito enfezadas, uma raposa morta na beira da estrada … Enfim, é a natureza a refazer-se, com o poder regenerador e a generosidade de que os homens ainda a não privaram. Para as cabras, a ADIBER tem trazido comida, de um produtor solidário chegaram dois porquinhos. Muito bonito.











De resto, no que dos humanos e das instituições depende, nada mais aconteceu. Falando apenas da nossa localidade de residência, onde ardeu até dentro de casa, mas apenas uma segunda habitação se perdeu: a água que faltou continua insuficiente; os tubos que arderam, entrapados ou disformes à vista; as bocas-de-incêndio, inexistentes; as telecomunicações ausentes; a floresta consumida, de pé, à espera de mão amiga que a lance à terra e remova, para que possa renascer.


Lisete de Matos

Açor, Colmeal 19 de dezembro de 2017.