11 março 2019

BELEZAS E RIQUEZAS DA SERRA NA OBRA DE JORGE VILAÇA.




Era uma vez um pintor que andava a pintar a serra e disseram-lhe assim: pinta esta serra como se vê, e o pintor disse à serra: vou-te pintar! E a serra sorriu e pôs-se a dançar; vestiu-se de fogo e pôs-se a gritar; cobriu-se de folhas e foi-se deitar.
Dormiu com o pintor e pôs-se a chorar.
Contou-me um segredo e pôs-se a sonhar.
Ora então dizei-me como hei-de pintar.
A serra tem alma; ah, isso tem.
A serra fala, goza, faz-se bela.
A serra engravida; a serra dá à luz
A serra contou-me que me há-de levar.
A serra falou-me que me há-de guardar,
Que me há-de gerar.
Quem quiser ver a alma da serra, suba! E pergunte aos guardadores de gado, mas dizei-me meus senhores; valei-me olhadores: como hei-de eu pintar.
Como é que faz um monte a dançar? Como é que se pinta um ramo a abanar? Como hei-de eu pintar?
(…)
Obrigado ó serra por tudo o que me contaste nestas letras
Porque digo serra não sei pintar a serra a dançar. E assim fica dito
Que a serra é viva e que não se deve queimar.
Hoje, 26 de Maio de 1982, às 11 da noite, pintando a serra do Açor no
Lugar das Torrozelas, boa noite.
Boa noite.
(…)
Este bocado não foi semeado à data que eu falo. Guardado para quem o há-de comer. Bocado vou-te comer. Vou aqui pôr estas letrinhas para te enfeitar. É como se fosse um colar. E que dês muito feijão a quem te vier semear. E saúde e gozo e alegria a quem aqui cultivar. Longa e serena vida a quem aqui trabalhar. Bocado, que dizes mais? Já dormes? São 4 e um quarto da madrugada do dia vinte e seis de Maio de mil novecentos e oitenta e dois. Agora assino aqui: Ti Jorge do Açor (1)
Estes são alguns dos versos que fazem os bocados (cômoros) na obra acima incluída. É um mural de Jorge Vilaça existente numa sala da Câmara Municipal de Arganil. Já o mostrava no livro “Dos Objetos para as Pessoas” (2), por o considerar tão atraente e expressivo da beleza singela da serra. Vigia de um dos cantos superiores do espaço, como que a lembrar aos seus ocupantes o encanto da paisagem e o desencanto das suas gentes que, ao tempo, persistiam em partir.
A primeira vez que ouvi falar do “Ti Jorge do Açor” foi ao então presidente da Câmara Municipal de Arganil, Prof. José Dias Coimbra. Corria o início dos anos oitenta e o artista tinha acabado de pintar o painel que enriquece o salão nobre daquele município. É uma pintura alusiva à história do concelho, produzida pelo Jorge enquanto bolseiro da Direção-Geral da Educação de Adultos, organismo onde eu trabalhava. Daí a menção ao seu nome e talento, no âmbito de uma qualquer reunião de trabalho.

Sim, mas quem é o Jorge? Amante da serra e serrano do coração, Jorge Manuel Torres Vilaça (1940-2001) nasce em Barcelos. Devido à falta precoce dos pais, passa por internatos e seminários, estuda filosofia e teologia … Depois de ter estado em França, onde foi operário e frequentou os meios socio artísticos da época, regressa a Portugal em 1974.

Já com a segunda mulher, Ghyslaine Fritz, chega ao Colmeal e seguidamente ao Açor, em 1979, através do amigo Ricardo Reis, neto de Maria Adelaide Nunes e António Reis (Colmeal) e afilhado de Ilda Reis e José Saramago, prémio Nobel da literatura. Procura as raízes ancestrais, a liberdade, o silêncio, e uma vida comunitária em harmonia com os outros, com a natureza e com o universo. A partir do Açor, irradia a sua ação pela região.
Em 1984, quando o filho mais velho atinge a idade escolar, o Jorge regressa, digamos que definitivamente, a Vales de Baixo, Tomar, onde já tinha vivido. Porém, nos finais dos anos noventa, volta transitoriamente à serra do Açor. Na altura, já assinava “Bemaventuradojorge”, “por considerar uma bem-aventurança ter-se convertido à imaterialidade dos sonhos” (3). Trabalhou em Arganil, e manteve, no Piódão, um atelier/residência artística. De visita ao Açor, almoçou cá em casa, a convite do meu pai, que tinha pelo Jorge um grande apreço, depois de lhe ter comprado uns miniterrenos e vendido a “casa velha”, onde tinha nascido. Procurei diversificar a ementa, mas, por delicadeza ou não, apenas a filha que acompanhava o casal fez escolhas exclusivamente vegetarianas.
A viver da pintura desde o regresso a Portugal, Jorge Vilaça expõe individual e coletivamente um pouco por toda a parte, no pais e no estrangeiro, nomeadamente em França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça e Espanha.






Ao mesmo tempo, promove iniciativas de cruzamento e complementaridade artística, com destaque para as performances “sonzacors”, “Jazzacores” e “Poesia-a-cores”, onde, dito de modo muito simplista, se tratava de pintar a música ou a poesia e a palavra, tocando-as a elas e aos participantes. Era a pintura a interagir com outras linguagens, embora o Jorge, que privilegiava o papel da visão e do olhar para a perceção do essencial, considerasse que as palavras podiam desvirtuar os sentidos, razão pela qual as suas obras tendem para não ter título. Mas podem incorporar pinceladas de escrita e poesia, como vimos.


Multifacetado, Jorge Vilaça faz incursões na ilustração, na escultura, na instalação e no design, ao mesmo tempo que, apostado na partilha da arte, organiza ateliers e cursos formativos.


O legado público de Jorge Vilaça na região é significativo. Para além das obras já referidas, ocorrem-me: em Arganil, um mural na Santa Casa da Misericórdia, os painéis em azulejo no mercado municipal e na entrada do edifício da GNR, várias obras no Piódão; em Góis, Cadafaz, a restauração pictórica da capela e da igreja; no Buçaco, um mural no hotel Eden. Legado não menos importante é, de um outro ponto de vista, a memória que muitos guardam da autenticidade, desapego, delicadeza e sabedoria do “Ti Jorge do Açor”, Jorge Vilaça, “Bemaventuradojorge” ou simplesmente Jorge para os amigos e vizinhos. Em contrapartida, também a serra terá influenciado o conjunto da sua obra.





Em setembro passado, um grupo de amigos, em articulação com a família e com o apoio da Camara Municipal de Tomar, organizou a exposição retrospetiva “Jorge Vilaça. O dom de pintar o Invisível”, contexto em foi publicado o livro Bemaventurado Jorge, fonte a que tenho vindo a recorrer e que integrará o acervo da biblioteca da União Progressiva da Freguesia do Colmeal.


“Homem e artista acomodavam-se num único corpo pelo poder de uma sólida visão interior, e o todo era cerzido de forma tão coerente, intensa e poética que era difícil distinguir, a cada momento, quem era quem. (…) Que esta e outras exposições retrospectivas possam, enfim, fazer justiça – ainda que tardia, ao Bem Aventurado Jorge, resgatando do limbo do esquecimento a sua obra visionária, inspirada e poliédrica.” (4).
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 1 de março de 2019.


(1) Jorge Vilaça, in Raul Sousa (Coord.), Bemaventurado Jorge. Homenagem a Jorge Manuel Torres Vilaça, Artista plástico, Poeta e Visionário, Tomar, 2018. Com exceção para as memórias pessoais, a informação e a maior parte das imagens inseridas neste texto foram retiradas desse livro.
(2) Lisete de Matos, Dos Objetos para as Pessoas, Colmeal, ed. da autora, 2010, p. 103.
(3) Agostinho Costa, in Raul Sousa (Coord.), op. cit..
(4) Paulo Ramalho, idem.

1 comentário:

Anónimo disse...

A nossa biblioteca está cada vez mais rica!
Obrigada, Drª Lisete, pela sua persistência na divulgação do nosso património, nas suas diversas vertentes, enchendo-nos a alma em cada novo artigo. Não conhecia o pintor (mea culpa! mea culpa!) e fiquei cheia de curiosidade e sensibilizada pela poesia das palavras e dos temas que pinta. Muito, muito bom! Bem-haja!
Deonilde Almeida (Colmeal)