Era uma
vez um pintor que andava a pintar a serra e disseram-lhe assim: pinta esta
serra como se vê, e o pintor disse à serra: vou-te pintar! E a serra sorriu e
pôs-se a dançar; vestiu-se de fogo e pôs-se a gritar; cobriu-se de folhas e
foi-se deitar.
Dormiu
com o pintor e pôs-se a chorar.
Contou-me
um segredo e pôs-se a sonhar.
Ora então
dizei-me como hei-de pintar.
A serra
tem alma; ah, isso tem.
A serra
fala, goza, faz-se bela.
A serra
engravida; a serra dá à luz
A serra
contou-me que me há-de levar.
A serra
falou-me que me há-de guardar,
Que me
há-de gerar.
Quem
quiser ver a alma da serra, suba! E pergunte aos guardadores de gado, mas
dizei-me meus senhores; valei-me olhadores: como hei-de eu pintar.
Como é
que faz um monte a dançar? Como é que se pinta um ramo a abanar? Como hei-de eu
pintar?
(…)
Obrigado
ó serra por tudo o que me contaste nestas letras
Porque
digo serra não sei pintar a serra a dançar. E assim fica dito
Que a
serra é viva e que não se deve queimar.
Hoje, 26
de Maio de 1982, às 11 da noite, pintando a serra do Açor no
Lugar das
Torrozelas, boa noite.
Boa
noite.
(…)
Este bocado não
foi semeado à data que eu falo. Guardado para quem o há-de comer. Bocado vou-te
comer. Vou aqui pôr estas letrinhas para te enfeitar. É como se fosse um colar.
E que dês muito feijão a quem te vier semear. E saúde e gozo e alegria a quem
aqui cultivar. Longa e serena vida a quem aqui trabalhar. Bocado, que dizes mais?
Já dormes? São 4 e um quarto da madrugada do dia vinte e seis de Maio de mil
novecentos e oitenta e dois. Agora assino aqui: Ti Jorge do Açor
(1)
Estes são alguns dos versos que fazem os bocados
(cômoros) na obra acima incluída. É um mural de Jorge Vilaça existente numa
sala da Câmara Municipal de Arganil. Já o mostrava no livro “Dos Objetos para
as Pessoas” (2), por o considerar tão atraente e expressivo da beleza singela
da serra. Vigia de um dos cantos superiores do espaço, como que a lembrar aos seus
ocupantes o encanto da paisagem e o desencanto das suas gentes que, ao tempo, persistiam
em partir.
A primeira vez que ouvi falar do “Ti Jorge do Açor”
foi ao então presidente da Câmara Municipal de Arganil, Prof. José Dias
Coimbra. Corria o início dos anos oitenta e o artista tinha acabado de pintar o
painel que enriquece o salão nobre daquele município. É uma pintura alusiva à
história do concelho, produzida pelo Jorge enquanto bolseiro da Direção-Geral
da Educação de Adultos, organismo onde eu trabalhava. Daí a menção ao seu nome e
talento, no âmbito de uma qualquer reunião de trabalho.
Sim, mas quem é o Jorge? Amante da serra e serrano do
coração, Jorge Manuel Torres Vilaça (1940-2001)
nasce em Barcelos. Devido à falta precoce dos pais, passa por internatos e
seminários, estuda filosofia e teologia … Depois de ter estado em França, onde
foi operário e frequentou os meios socio artísticos da época, regressa a
Portugal em 1974.
Já com a segunda mulher, Ghyslaine Fritz, chega ao
Colmeal e seguidamente ao Açor, em 1979, através do amigo Ricardo Reis, neto de
Maria
Adelaide Nunes e António Reis (Colmeal) e
afilhado de Ilda Reis e José Saramago, prémio Nobel da literatura. Procura as
raízes ancestrais, a liberdade, o silêncio, e uma vida comunitária em harmonia
com os outros, com a natureza e com o universo. A partir do Açor, irradia a sua
ação pela região.
Em 1984, quando o filho mais velho atinge a idade
escolar, o Jorge regressa, digamos que definitivamente, a Vales de Baixo, Tomar,
onde já tinha vivido. Porém, nos finais dos anos noventa, volta transitoriamente
à serra do Açor. Na altura, já assinava “Bemaventuradojorge”, “por considerar
uma bem-aventurança ter-se convertido à imaterialidade dos sonhos” (3). Trabalhou
em Arganil, e manteve, no Piódão, um atelier/residência artística. De visita ao
Açor, almoçou cá em casa, a convite do meu pai, que tinha pelo Jorge um grande
apreço, depois de lhe ter comprado uns miniterrenos e vendido a “casa velha”,
onde tinha nascido. Procurei diversificar a ementa, mas, por delicadeza ou não,
apenas a filha que acompanhava o casal fez escolhas exclusivamente vegetarianas.
A viver da pintura desde o regresso a Portugal, Jorge
Vilaça expõe individual e coletivamente um pouco por toda a parte, no pais e no
estrangeiro, nomeadamente em França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça e Espanha.
Ao mesmo tempo, promove iniciativas de cruzamento e
complementaridade artística, com destaque para as performances “sonzacors”, “Jazzacores”
e “Poesia-a-cores”, onde, dito de modo muito simplista, se tratava de pintar a
música ou a poesia e a palavra, tocando-as a elas e aos participantes.
Era a pintura a interagir com outras linguagens, embora o Jorge, que
privilegiava o papel da visão e do olhar para a perceção do essencial,
considerasse que as palavras podiam desvirtuar os sentidos, razão pela qual as
suas obras tendem para não ter título. Mas podem incorporar pinceladas de
escrita e poesia, como vimos.
Multifacetado,
Jorge Vilaça faz incursões na ilustração, na escultura, na instalação e no
design, ao mesmo tempo que, apostado na partilha da arte, organiza ateliers e
cursos formativos.
O
legado público de Jorge Vilaça na região é significativo. Para além das obras
já referidas, ocorrem-me: em Arganil, um mural na Santa Casa da Misericórdia, os
painéis em azulejo no mercado municipal e na entrada do edifício da GNR, várias
obras no Piódão; em Góis, Cadafaz, a restauração pictórica da capela e da igreja;
no Buçaco, um mural no hotel Eden. Legado não menos importante é, de um outro
ponto de vista, a memória que muitos guardam da autenticidade, desapego,
delicadeza e sabedoria do “Ti Jorge do Açor”, Jorge Vilaça, “Bemaventuradojorge”
ou simplesmente Jorge para os amigos e vizinhos. Em contrapartida, também a
serra terá influenciado o conjunto da sua obra.
Em
setembro passado, um grupo de amigos, em articulação com a família e com o
apoio da Camara Municipal de Tomar, organizou a exposição retrospetiva “Jorge
Vilaça. O dom de pintar o Invisível”, contexto em foi publicado o livro Bemaventurado Jorge, fonte a que tenho
vindo a recorrer e que integrará o acervo da biblioteca da União Progressiva da
Freguesia do Colmeal.
“Homem
e artista acomodavam-se num único corpo pelo poder de uma sólida visão
interior, e o todo era cerzido de forma tão coerente, intensa e poética que era
difícil distinguir, a cada momento, quem era quem. (…) Que esta e outras
exposições retrospectivas possam, enfim, fazer justiça – ainda que tardia, ao
Bem Aventurado Jorge, resgatando do limbo do esquecimento a sua obra
visionária, inspirada e poliédrica.” (4).
Lisete
de Matos
Açor,
Colmeal, 1 de março de 2019.
(1) Jorge
Vilaça, in Raul Sousa (Coord.), Bemaventurado
Jorge. Homenagem a Jorge Manuel Torres Vilaça, Artista plástico, Poeta e
Visionário, Tomar, 2018. Com exceção para as memórias pessoais, a
informação e a maior parte das imagens inseridas neste texto foram retiradas
desse livro.
(2) Lisete
de Matos, Dos Objetos para as Pessoas,
Colmeal, ed. da autora, 2010, p. 103.
(3) Agostinho
Costa, in Raul Sousa (Coord.), op. cit..
(4) Paulo
Ramalho, idem.
1 comentário:
A nossa biblioteca está cada vez mais rica!
Obrigada, Drª Lisete, pela sua persistência na divulgação do nosso património, nas suas diversas vertentes, enchendo-nos a alma em cada novo artigo. Não conhecia o pintor (mea culpa! mea culpa!) e fiquei cheia de curiosidade e sensibilizada pela poesia das palavras e dos temas que pinta. Muito, muito bom! Bem-haja!
Deonilde Almeida (Colmeal)
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