Finalmente, reencontrei as pútegas, que já não via há uns anos. Foi o meu pai quem as descobriu, quando roçava mato numa encosta soalheira. Depois de muito as ter procurado em vão, ali estavam elas, airosas mas discretas, junto à raiz de uns sargaços jovens, umas já desabrochadas, outras ainda a despontar do solo. Mostravam-se a quem estava a fazer alguma coisa por elas, cortando o mato de que gostam viçoso, mas não a quem ociosamente as procurava, espreitando e esgravatando por baixo dos sargaços floridos!
Como referia numa outra oportunidade (“Recordando as Pútegas”, A Comarca de Arganil, 14 Julho 2007), as pútegas (Citinus hipocistis), também chamadas de “buxigas”, amareladas, coalhadas e outros nomes, são uma herbácea parasita da raiz dos sargaços, mato de folha esguia e viscosa.
Mas há quem diga que também parasitam a raiz das estevas, o que é bem possível, uma vez que o sargaço e a esteva são plantas da mesma família, distintas, mas parecidas. Desprovidas de clorofila, as pútegas são uma pequena planta amarelo-avermelhada, de folhas escamiformes densamente imbricadas, e flores masculinas e femininas em cacho. Quando colhidas, exalam um aroma suavemente acre. À semelhança de outras plantas parasitas, as pútegas hibernam na raiz do hospedeiro, e só são visíveis, geralmente em conjuntos de cachos, na altura da floração, que coincide com a daquele. Começando por ser umas manchitas avermelhados a emergir do solo tufado, levam mais ou menos três semanas a atingir a plenitude em tamanho e formosura, raramente ultrapassando 12 cm de altura, a parte oculta incluída. Seguidamente, acastanham e esmorecem secando, para reaparecerem no ano seguinte, se as condições ambientais lhes forem favoráveis.
As pútegas são comestíveis, espremendo o creme branco e pegajoso, tipo coalhada, que enche as tetinhas bojudas. Talvez por isso suscitem tão gratas recordações a quem com elas lidou na infância, como algumas das minhas amigas, que desculparão a inconfidência. Para a Catarina, que é de Penha Garcia, os “carrondos” eram o mimo com que os pais a presenteavam no regresso do trabalho no campo; a Célia, que é de Viseu, adorava comê-las, e dava-me beijos, contente com a oportunidade de as recordar; à Teresa riam-se os olhos, lembrando as sacadas de “putígas” que costumava apanhar! A Teresa, que é de Pendilhe, em Vila Nova de Paiva, a terra do demo de onde também partiu o jovem Aquilino Ribeiro para, a caminho do seminário, se defender da troça dos meninos do Sul, perguntando-lhes:
- E, ó amigos, vocês sabem o que são mostajos, o que são pútegas, e o que é um bom nabo pelo rabo dentro? (Aquilino Machado, Um Escritor Confessa-se, Lisboa, Livraria Bertrand, 1974, p. 55).
Curiosamente, reencontrei as pútegas na véspera do Dia Internacional da Biodiversidade, que se celebrou a 22 de Maio, no âmbito do Ano Internacional da Biodiversidade. Estas iniciativas das Nações Unidas visam travar a perda acelerada da diversidade biológica, e recuperar os habitats e sistemas naturais, como condição para o bem-estar humano e o progresso económico sustentado.
Por razões naturais, Portugal é ainda um santuário de biodiversidade, nomeadamente vegetal e animal. No campo da flora, por exemplo, é possível andar por aí, e avistar sem esforço dezenas de plantas diferentes, pequenas e grandes. Um assombro e uma riqueza que importa preservar e conhecer! Mas muitas outras espécies de toda a espécie já desapareceram ou apresentam-se ameaçadas de extinção (165, dizem), pelas alterações climatéricas globais, a poluição, os incêndios, a introdução de plantas e animais exóticos, o tráfico de animais, ovos, peles e outros derivados, os venenos, armadilhas e laços cobardes, que envergonham as pessoas e os bichos por elas. Avultam, ainda, a urbanização do território, a pressão imobiliária, o consumo exagerado e as práticas agrícolas ou a falta delas.
É precisamente a ausência de agricultura, de subsistência, nesta zona, que poderá estar na origem do progressivo desaparecimento das pútegas, que já pouco se vêem, e que estão cada vez mais magras e enfezadas. Segundo o meu pai, não se comparam às de antigamente, tão gordas, que davam para fazer “queijos”, espremendo e juntando a coalhada de várias! Mas ainda as há e isso é um bom sinal! Tanto quanto me tem sido dado observar, as pútegas gostam de sargaços viçosos e do sol filtrado através das folhas tenras, o que exige o corte periódico do mato. Ora isso pouco se faz, devido aos custos, mas sobretudo porque o mato já não é preciso como cama para o gado e estrume para a terra.
Apesar do muito que tem sido feito em matéria de protecção da biodiversidade, frequentemente por iniciativa de indivíduos e associações, as metas oficialmente previstas para 2010 estão longe da concretização desejada. Tão pouco se afiguram concretizáveis, a curto prazo, por motivo da crise económica instalada. Mais uma razão para uma maior participação de todos nós, reconhecendo, na sequência de S. Francisco de Assis ou Darwin, conforme as crenças, a irmandade, a igualdade e a interdependência de todos os seres vivos.
O que é isso da biodiversidade? Como é que eu posso contribuir para a proteger e renovar? Como é que eu a coloco ao serviço da sustentabilidade económica e do conhecimento, sem fazer perigar a sua própria sustentabilidade? Em concreto, aqui e agora, o que é que eu posso fazer, em relação aos seres vivos que me rodeiam, e aos que me chegam incorporados nos bens que consumo?
Como se diz no Guia de Campo, DIA B, por estar ao alcance de todos, e constituir uma responsabilidade de cada um, a participação na preservação e no estudo da biodiversidade pode considerar-se uma questão de cidadania. Biocidadãos são todos aqueles que, pelas suas acções e comportamentos, contribuem para construir um mundo mais sustentável (Bruno Pinto e outros, Coord., Universidade de Lisboa, 2010, p. 17).
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 2 de Junho de 2010
7 comentários:
Parabéns por mais este excelente trabalho.
Bom trabalho com boas ideias e metas...
Parabéns.Artigo impecável e rigoroso
Putegas !!! Também é coisa da minha infância.
Hoje tive a felicidade de ver imensas num terreno que estava abandonado há muitos anos e agora está a ser usado para gado em pastoreio livre.
Parque Natural Vouga Caramulo , Vouzela .
Beleza natural única
Quando eu era criança, nas minas de volfrâmio, arredores da exploração, eu saciava a minha fome comendo pútegas. Nunca mais as vi. Na cidade não há disso.
Muito obrigado por me recordart.
Rocha
Excelente artigo. Obrigado.
Comi muitas, na minha infância,em Pampilhosa da Serra. Não as encontro há mais de 30 anos.
Posso garantir-lhe que também "parasitam" as estevas.
Ola boas,Primeira vez que eu encontrei Buxigas aqui bem pertinho da aldeia.
Realmente nem sabia o nome,ate a pouco que alguém comentou no facebook.Por coincidência estavam mesmo a crescer junto as Estevas.
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