16 dezembro 2009

A «Suíça portuguesa» (1)

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Visão optimista de um repórter de há setenta anos
Uma terra da Beira Litoral dotada de grandes belezas naturais e de valiosas potencialidades materiais aguarda ainda a concretização das suas justas aspirações. Não é já aquela terra de beleza e de ambicioso progresso que há três quartos de século foi descrita numa famosa reportagem publicada em A Capital, o mais lido vespertino português da época. Considerado o grande repórter da República, Hermano Neves, a quem devo, além da própria vida, as primeiras lições de jornalismo, visitou em 1916 as serranias da Beira Litoral e deixou, em páginas brilhantes e arrebatadoras, uma visão maravilhosa da zona em que se situa a aldeia onde nasceu, Alvares, uma das cinco freguesias do concelho de Góis. Região realmente encantadora, dotada de belos atractivos naturais, em que as vertentes da caprichosa orografia se apresentavam cobertas de densos pinhais e de vetustos castanheiros, com abundantes nascentes cujas águas alimentam os ribeiros que serpenteiam pelos vales profundos, o cronista procurava suscitar motivos que pudessem contribuir para a valorização do País. A sugestão das montanhas alpinas inspirou-lhe a designação da reportagem com que pretendia estimular o espírito adormecido dos seus compatriotas: a «Suíça Portuguesa». Não que o primitivismo atávico da terra beiroa permitisse aproximar a pátria de Guilherme Tell do quadro magnífico, embora estático, que se lhe deparava, mas na esperança de que as suas palavras entusiásticas pudessem despertar, a par dos aspectos convidativos da descrição, o interesse prático de promover o aproveitamento das potencialidades que ofereciam animadoras perspectivas para o progressivo desenvolvimento da região. Uma terra privilegiada A zona percorrida pelo repórter, além de privilegiada por admiráveis dons da natureza, só de si capaz de animar um rendoso movimento turístico, possuía também recursos materiais que, criteriosamente aproveitados, poderia fazer dela uma das mais ricas de Portugal. Não só Góis, a sede do concelho, oferecia condições excepcionais para atrair o forasteiro, como as vastas cercanias se mostravam dotadas de abundantes riquezas susceptíveis de serem vantajosamente utilizadas. Sabia-se que, em tempos remotos, se exploravam no vale do Ceira, que atravessa a localidade, aluviões auríferas cujos vestígios eram ainda evidentes; conheciam-se nas imediações jazidas de outros minérios que poderiam ter aproveitamento de importante significado económico; as águas provenientes das nascentes abundantes nas montanhas constituíam reservas de energia que aguardavam apenas nas gargantas rochosas do seu percurso a transformação em força motriz, numa produção hidroeléctrica capaz de determinar a poupança do carvão que importávamos com grave inconveniente para as finanças públicas; as excelentes madeiras de pinho e de castanho fornecidas pelas florestas poderiam ser boa matéria-prima para a indústria de mobiliário e para a construção civil, e a riqueza piscícola, que abunda de belas trutas e outras espécies muito apreciadas, bem podia, se devidamente explorada numa sistemática organização comercial, abastecer o consumidor dos grandes centros. Esforço de modernização Tudo dependia, porém, de um esforço de modernização que pudesse vencer o imobilismo dos poderes públicos e a inércia das populações, marcadas pelo estigma do fatalismo resignado em que viviam. Era reduzidíssima a rede de estradas, as povoações não passavam de tranquilos aglomerados de sombrias casas de xisto, cobertas pela ardósia, que abunda nas redondezas, sem água corrente, sem esgotos e sem luz eléctrica. As pessoas aceitavam pacientemente viver num triste isolamento, só cortado pelas veredas de difícil acesso que cruzavam as matas em que ecoavam ainda os uivos dos lobos, atemorizando os moradores, aferrolhados nas suas habitações desconfortáveis. Para além destas condições mínimas, que nada favoreciam o convívio entre as gentes serranas, o pouco contacto humano que existia determinava o embrutecimento e a ignorância, que não facilitavam os mais ínfimos resquícios da civilização. Desde meados do século passado, por exemplo, no Colmeal, uma das mais populosas freguesias do concelho goiense, vivia-se uma existência de alheado afastamento, em que só se destacava um ou outro residente menos conformado, entre os quais se distinguiam os caciques monárquicos, que apenas se evidenciavam, todavia, por ocasião de eleições. Outros, menos resignados, emigravam, mas não se afoitavam para longes terras, limitando-se, na maioria dos casos, a seguir para Lisboa, em busca de colocações mais favorecidas, embora em misteres humildes, como moços de fretes ou limpa-chaminés. Havia ainda os que se deslocavam periodicamente para as planícies alentejanas, incorporados nos grupos de ceifeiros, que deixaram a sua triste odisseia conhecida pela designação humilhante de «ratinhos». O «Professor de Sintra» Todos tinham um pequeno pé-de-meia, mas o seu acanhado espírito de iniciativa não lhes dava em geral para mais que o amanho temporário de exíguas courelas e o aproveitamento do milho, de que extraíam a farinha para cozer a broa, que era um dos poucos alimentos com que acompanhavam as febras de algum porquito que iam criando. De exigências muito limitadas, os colmealenses mal reagiam contra este fatalismo de uma resignação que dificilmente podiam combater. Um dos poucos que conseguiram fugir a este estado de coisas, mais afoito nas suas aspirações, foi um jovem colmealense que, no derradeiro quartel de Oitocentos, veio para a capital, disposto a experimentar um emprego de modesto marçano. Atraído pelo estudo, dotado de invulgar curiosidade intelectual, tirou o curso do magistério primário, adquirindo, assim, apreciável grau de instrução, que lhe permitiu trabalhar numa escola de Lisboa. Com essa bagagem, que o distinguia dos seus conterrâneos, decidiu regressar ao torrão natal, no propósito de contribuir para elevar o nível do povo, cujo atraso pretendia combater, tanto mais que se deixava, entretanto, arrastar pelos ideais republicanos, que começavam a florescer. Conseguindo ser nomeado professor da escola local, permaneceu algum tempo na aldeia, aonde se lhe foi juntar a esposa, também professora, que igualmente passou a partilhar da sua cruzada cultural. Talvez desanimado pela tacanhez do ambiente, António Joaquim das Neves, por sinal pai do jornalista que viria a exaltar mais tarde a sua terra como a «Suíça Portuguesa», obteve transferência para uma escola de Coimbra, que abandonou pouco depois por Sintra, onde viveu até morrer, em 1927, granjeado justa fama de professor competente e gozando de gerias simpatias de sucessivas gerações. A consideração de que usufruiu ficou patente numa comovedora homenagem que lhe prestaram os antigos alunos, cuja gratidão se encontra expressa em palavras de reconhecimento numa lápida que ainda hoje se vê afixada na fachada da escola em que leccionou: «Ao mestre que viveu ensinando – ao homem que ensinou vivendo», mas a fama que alcançou, durante o seu profícuo labor naquela aprazível estância de veraneio, não o fez esquecer os seus conterrâneos nem a sua aldeia de origem, onde a sua lembrança permaneceu sempre viva, embora sob o epíteto de o «Professor de Sintra». Lá voltou algumas vezes, para se desfazer de pequenas propriedades que adquirira e para rever os parentes e amigos da terra a que nunca deixou de estar ligado pelos laços do coração e a evocação dos tempos distantes da sua meninice. Mário Neves in Diário de Notícias, 29 de Agosto de 1988 Do espólio de Fernando Costa

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