Este ano a produção adivinhava-se farta, e o calor do Verão amadureceu as uvas mais cedo. Tão cedo que começaram a ser apanhadas quando ainda decorria, no Canal 1 da Televisão Pública, a “Festa das Vindimas”, um conjunto de programas que mostrou várias explorações vitivinícolas.
Vi esses programas muito parcialmente e até os considerei repetitivos e um pouco turísticos. Apesar disso, permitiram-me confirmar a pujança da produção vinhateira no país, situação que já intuía, através da simples observação da variedade de marcas e da própria apresentação das garrafas que enchem as prateleiras dos supermercados e os olhos do consumidor. Foram enunciados problemas, mas foi visível tratar-se de um sector de actividade que tem apostado na inovação e na qualidade, investindo em competência e modernização tecnológica, em “marketing” e na diversificação dos mercados e produtos. Tudo para se ajustar e competir no seio da concorrência nacional e internacional, que a conjuntura de crise económica agrava.
Entretanto, por aqui, terra pequena da serra, as videiras continuam a ocupar apenas as pontas das paredes, onde inicialmente foram plantadas para não roubarem terreno ao milho que constituía a base da alimentação. Muitas datam de infâncias longínquas, e as que já não têm quem lhes cuide dos forcões e varas rastejam tristes pelo chão, dando ainda assim cachos de bago miúdo, mas doce. Todas estavam carregadas este ano.
Na loja, a dorna esperava com a esmagadeira em cima e um degrau à frente para facilitar a tarefa de despejar as uvas directamente dentro da cuba. Despejado um carrego, esmagavam-se logo as uvas, dando à manivela. Contrariamente ao que eu pensava, afinal a maquineta não esmaga as grainhas que confeririam mau sabor ao vinho! Limita-se a soltar os bagos do cardaço, e a amachucá-los levemente.
Apesar da regra “cada um transporta o que apanha”, o Jaime transportou a maior parte da produção. Uma bênção, o Jaime! Mal cheia a primeira dorna, passou-se à segunda, esta já em plástico, uma das poucas inovações presentes!
Testada estabilidade do degrau, a colheita continuou até se encher aquela dorna e, ainda, uma terceira. Em menos de uma semana, a vindima estava feita. Não obstante a lentidão do processo, devido à necessidade de separar, sem os esbagoar, os cachos que cresceram imbricados uns nos outros, de os limpar dos bagos secos, “azarguados” e podres, de aproveitar os que o javali estragadão não abocanhou.
O Amilcar fez a vindima mais tarde, de modo a garantir a excelência da maturação das uvas que potencia a qualidade do vinho. Tranquilamente, pisou-as, deleitando-se com a frescura daquele lava-pés frutado, e contando com umas pernas bem mais esbeltas e saudáveis! Pena que aquela mostoterapia só aconteça uma vez por ano! Com a dorna cheia e o tecto baixo, inicialmente, pisava um pouco dobrado para não bater com a cabeça.
Esquerda, direita, esquerda, direita, até já não se verem bagos inteiros à superfície da massa pastosa e luzidia!
Dois ou três dias depois, o mosto já fervilhava, exalando um aroma avinhado que pairava pela casa toda, à medida que se transformava em vinho. O cardaço foi calcado todos os dias para não secar à superfície.
Quando a efervescência terminou, mais ou menos dez dias depois, o vinho começou a jorrar, impetuoso e tinto, pelo espicho da dorna em madeira e pelas torneiras das dornas em plástico.
Cântaro daqui, cântaro dali, dez litros desta dorna, dez daquela, ao todo contaram-se quinhentos litros. Uma fartura, de um vinho ligeiramente acidulado e de baixo teor alcoólico, mas muito agradável para os apreciadores! Pode-se provar, mas é sabido que carece do frio do Inverno para apurar as suas qualidades.
Distantes do “pequeno que é belo” de E. F. Schumacher [1], afinal, realidades sociais distintas sobrepostas e cruzadas, tempos diversos benfazejos e adversos, coesão social e falta dela, passado e futuro presente e ausente…
Açor, Colmeal, 16 de Outubro de 2010.
Lisete de Matos
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[1] E. F. Schumacher foi um conceituado economista inglês. Nos anos setenta, perante a emergência da globalização e a crise energética que então se verificou, o economista defendeu a necessidade da alteração dos modelos económicos ocidentais, de cuja sustentabilidade duvidava (Imagine-se, já então!), propondo, entre outras medidas, “o pequeno dentro do grande”, uma via para a descentralização e a desconcentração. A perspectiva do autor é visível no próprio título da obra a que me estou a referir: “O Pequeno é belo ou a Economia como se as Pessoas importassem” ou, mais apropriadamente, Small Is Beautiful: Economics As If People Mattered, Blond & Briggs, 1973.
2 comentários:
Excelentes fotos, da colheita das uvas à sua transformação e acondicionamento do vinho produzido, que juntamente com um belo texto retratam de forma ímpar as tradições, infelizmente quase extintas, das aldeias da nossa zona.
Parabéns Lisete Matos, também pela oportuna chamada de atenção para a actualidade da teoria defendida por E. F. Schumacher.
Quem sabe se esta crise que a todos nos afecta não será uma oportunidade para, sobretudo numa perspectiva de complementaridade, estimular algumas das pequenas economias locais.
Cada vez mais sinto a nostalgia dos tempos antigos.
Sinto-me até tentado a voltar para a agricultura!
Belas imagens, e os meus desejos de que os nossos amigos aqui apresentados, depois do arduo trabalho por si desenvolvido, bebam o belo nectar com saúde!
Cumprimentos de
Abel Neves
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