28 setembro 2009

Figuras e Factos (3)

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O moço de fretes
Lenta e inexoravelmente vão desaparecendo as figuras típicas de Lisboa. É assim e, ainda bem, a evolução, a ordem natural das coisas. Entre essas figuras, podem-se incluir sem qualquer favor os moços de fretes, popularmente denominados «moços de esquina», visto, por táctica profissional, estacionarem em gavetos junto aos edifícios. A maioria destes honestos trabalhadores era (ainda o são os poucos que se dedicam a este trabalho) natural da nossa região. E, entre esses, uma boa parte nascidos na freguesia do Colmeal. Ainda recordamos haver um punhado de moços de fretes, naturais do Carvalhal, concentrados no Largo do Terreirinho, Rua do Crucifixo, nos vários gavetos das Ruas dos Fanqueiros, Prata, Correeiros e Sapateiros, onde, igualmente, estacionavam variadíssimos conterrâneos do Sobral, Aldeia Velha, Açor, Malhada, Soito e Colmeal, tal, como na antiga Rua do Mundo, Largo do Carmo, S. Roque, escola Politécnica, S. Pedro de Alcântara, Rato, Jardim do Tabaco e Constantino, Braamcamp, Camões, «Duas Igrejas», Calhariz, etc. Enfim, em todos os arruamentos da Baixa, de nascente a poente e da antiga Praça da Figueira ao Terreiro do Paço, havia centenas de robustos e possantes «moços de esquina», por todos os lados, com a sua tradicional corda ao ombro para, quando preciso, atarem os fretes. Também, descendo o Chiado, junto ao elevador de Santa Justa, faziam esquina adelenses. Igualmente desde o Rossio, Restauradores, Barros Queirós, S. Lázaro, esquina com a Rua da Palma, Intendente às «cinco esquinas» (hoje só quatro), encontrávamos moços de fretes da nossa freguesia, estacionados em alegre cavaqueira ou a desabafarem mutuamente as agruras da vida (que eram muitas…), enquanto não eram requisitados por um qualquer cliente de ocasião ou de longa data. Evidentemente, nessa época, era normal na mesma esquina haver muitos moços de fretes jovens juntamente com outros mais idosos e, mesmo com muita frequência, pais e filhos lado a lado no mesmo local de profissão. Era na verdade profissão bastante dura, nalguns casos até perigosa, e nem sempre tão bem remunerada como se apregoava… Alguns, bem poucos, salvaguardaram a velhice, acabando os seus dias no torrão natal; mas os restantes? Encarregavam-se de tudo. Desde levarem malas de viajantes com colecções, colchões à cabeça, máquinas de costura às costas, armários ao ombro, latas com produtos químicos, sacas com géneros alimentícios, até mudanças de mobiliário, transportada a pé, em carroças e, mais tarde, em camionetas, sempre com a preocupação de não partirem os espelhos, não riscarem o verniz ou a pintura dos móveis. Igualmente tinham, previamente, de desmontar as mobílias, caso de camas, guarda-fatos, etc. que depois, com esmero e paciência, voltavam a montar no diferente endereço. Eram especialistas no transporte de pianos de cauda e mais pequenos, cofres, despachos marítimos e terrestres de mercadorias. Tudo resolviam com eficiência estes nossos conterrâneos. Apesar de na maioria dos casos serem iletrados, ajudaram a fundar inúmeras agremiações regionalistas – a União Progressiva da Freguesia do Colmeal foi uma – e contribuíram, por qualquer forma, para nas nossas aldeias haver melhores condições. Também era usual verem-se os «moços de esquina» nos jardins dos palacetes a «baterem» carpetes, ou, quando o freguês não possuía tais condições, as levarem para fora de portas, aí, suspensas com a corda que usavam, entre duas árvores, e, um de cada lado, aquilo é que era bater! O pó a sair e os nossos homens a suarem por todos os poros, com a camisa encharcada, que acabava por secar no próprio corpo e contraindo muitas doenças, algumas incuráveis. Normalmente a sua especialidade eram serviços pesados. Por vezes dois homens utilizavam o pau e corda para facilitar nas cargas mais pesadas. Para não calejarem o pescoço e costas, usavam como «almofada» aquilo a que chamam o «changuiço». O «changuiço», que colocavam ao pescoço, tinha a forma de ferradura em ponto grande, todo ele arredondado. No entanto, também lhes apareciam serviços leves, que por vezes eram de extrema responsabilidade ou mesmo confidenciais. A estes homens, nossos conterrâneos e não só, confiavam as mais valiosas peças de arte, ouro ou prata para irem empenhar e, depois de conseguirem em qualquer penhorista o empréstimo desejado (indicado previamente e aproximadamente pelo interessado), lá iam levar o dinheiro e a cautela de prego ao «enrascado» freguês. Como serviços confidenciais eram procurados, algumas vezes, por senhoras que, sentindo-se, ou julgando-se, atraiçoadas pelo marido, solicitavam os seus serviços para irem espreitar o consorte. Para este trabalho «fino», que não exigia esforço físico, já as coisas tinham de se processar de outra forma. Tinha de haver outro requinte. Assim o exigia a missão a desempenhar. Com a fotografia do «traidor» e outros elementos em sua posse, lá ia o nosso conterrâneo ao seu quarto (a maioria vivia em «casas de malta»), guardar o boné, no qual obrigatoriamente figurava uma chapa com o número atribuído pelo Governo Civil, barbear-se, lavar-se (caso houvesse condições para isso na habitação), vestir o seu melhor fatinho e com gravata e chapéu de feltro, já bastante coçado, saía para averiguações, após de corar mais uma vez a fisionomia daquele que figurava no retrato que lhe tinham confiado. Igualmente as «meninas da vida» os utilizavam para os mais variados recados. Talvez pela «profissão mais antiga do mundo» que exerciam, pelos «fretes» que as circunstâncias obrigavam a fazer, as «moças da vida fácil» eram as clientes mais generosas a remunerar trabalho alheio. Depois desta dissertação, sobre factos concretos e nada, mesmo nada fictícios, perguntamos porque enveredaram no passado tantos colmealenses pelo caminho de «moços de esquina»? As razões foram várias. No entanto uma, se não mesmo fundamental, foi o não terem tido acesso à cultura (uma grande parte eram analfabetos) e, não o podemos esquecer, quando migravam deixavam na maioria ficar a mulher e os filhos na terra. Por estes factores dedicavam-se a esta profissão livre para periodicamente regressarem à aldeia, se possível com algum pecúlio para pagarem ao merceeiro aquilo que as «leiras» não produziam e efectuarem a sementeira ou a colheita, conforme a estação do ano. Efectuados que fossem esses trabalhos, novamente a pé, primeiro, de diligência e mais tarde na camioneta, ainda com pneus de «bandaje», deixavam para trás a terra natal a fim de procurarem na cidade meios de subsistência que a aldeia não tinha para lhes oferecer. Era mais um período de uns quantos meses a trabalhar no duro, a escreverem (ou sendo iletrados pediam a terceiros) uma vez por mês uma carta à mulher e a juntarem-lhe uma nota, normalmente nunca mais de vinte escudos, para comprar qualquer tecido para peça de vestuário, remédios, etc. Não era difícil conseguir-se licença de moço de fretes. Entregues os documentos, entre os quais o Registo Criminal, no Governo Civil, era concedida sem problemas de maior, porque, evidentemente, nada constava em desabono do requerente. Os «moços de esquina» não beneficiavam de regalias sociais (quem beneficiava?) mas, por outro lado, também não pagavam impostos ao fisco. A esses conterrâneos do passado e presente, figuras típicas de Lisboa, homens honestos e trabalhadores, dedicamos com o maior respeito esta nossa singela crónica. De um moço de fretes, com muita saudade por nós recordado, é o nome com que, como pseudónimo, sempre subscrevemos esta secção.
DANIEL
in Boletim “O Colmeal” Nº 184, de Maio de 1982
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Como refere DANIEL na sua crónica, havia um "local de estacionamento". Pelo documento que aqui vos trazemos verifica-se que na caderneta de "Inscrição de Moço de Fretes" o Comissário da Polícia em 13 de Janeiro de 1942 fixa o "Local de estacionamento Rua do Mundo esquina da Travessa da Espera". No dia seguinte, o filho de Daniel Marques da Costa teve que ir pagar 15$00 à Secção Administrativa da Polícia de Segurança Pública. Quando mudou a sua residência foi novamente à Polícia para outro averbamento. "Passou a residir na Rua João do Outeiro, nº 13" (Lisboa, 19 de Fevereiro de 1943).
Passados todos estes anos a Mouraria, o popular bairro de Lisboa onde tantos e tantos conterrâneos moraram, está desfigurada. Algumas casas desapareceram, poucas foram melhoradas e as pessoas das nossas aldeias que lá viviam foram-se mudando. O número 13 da Rua João do Outeiro é hoje uma porta e uma janela emparedadas como se pode ver nesta foto recente. Foi um número que teve vida e onde se falava de regionalismo e da União Progressiva da Freguesia do Colmeal. Ali viveu Alfredo Pimenta Brás e a sua família até que as origens os chamaram e volveram ao Colmeal, para sempre. Documento cedido por António Marques de Almeida Foto de Francisco Silva

1 comentário:

Anónimo disse...

O nº 13 ficava mesmo ao cantinho encostado ao prédio do lado, agora de amarelo.
Podemos apreciar como era um prédio estreitíssimo.