14 outubro 2021

Férias no Colmeal

 

Ao longo do tempo, tenho procurado divulgar e enaltecer os talentos criativos dos colmealenses, mas acredito que muitos permaneçam ocultos, por discrição ou desvalorização dos seus detentores. Partilhá-los, porém, contribuiria para o enriquecimento do património cultural da freguesia, e para a visibilidade de grupos populacionais menos favorecidos, em matéria de reconhecimento social e interesse científico.

Neste processo, observável no blogue ou na reedição do artigo de Fernando Costa “A Verdade e a Lenda de António d’Almeida Freire – Cirurgião” (Ass. Amigos do Açor, 2008), tenho deparado com autênticas surpresas e tesouros, nomeadamente no campo da escrita. Foi o que agora se verificou, ao folhear com cuidado uns lençóis amarelecidos do Jornal de Arganil, cujo desgaste resulta do tempo e das dobras que o reduziam, para caber na caixa do correio dos assinantes, na diáspora. Como à Comarca de Arganil e, progressivamente, a outros media locais e regionais, o semanário era esperado com expetativa e lido de fio a pavio, funcionando como elo de ligação às origens. Para muitos, os jornais configuravam, ainda, o principal material de leitura e contexto de escrita, visível nas notícias que se percebe emanarem de uma vasta e ativa rede de correspondentes locais.




Descrito o suporte, voltemos à surpresa em si própria. É constituída pela crónica de umas “Férias no Colmeal”, publicada em quatro partes, no último trimestre de 1959. Trata-se do trabalho de um jovem lisboeta de dezasseis anos, que foi estimulado a escrever pelo pai. É uma peça muito interessante, tanto do ponto de vista do conteúdo, como da forma. Nela, o cronista narra as suas férias no verão daquele ano, começando pela viagem de Lisboa para o Colmeal e terminando com a de regresso. Entretanto, passeia pela povoação e arredores, refresca-se no rio, participa em desfolhadas e festas, farta-se de dançar. Grande bailarino era o nosso cronista! E andarilho, dando razão aos que assinalam as jornadas a pé pelos caminhos ínvios da serra, como um dos temas favoritos dos naturais e oriundos da região. O estilo é surpreendentemente maduro para a idade, permitindo-nos, por um lado, visualizar as situações que descreve, por outro, sentir a emoção às mesmas inerente. Encantaram-me a descrição dos ambientes, as metáforas, a graça de algumas alusões, um ou outro recurso próprio da época ou da idade.



Enquanto documento autêntico e testemunho de uma época, “Férias no Colmeal” é um artigo de leitura imprescindível para quem queira recordar ou conhecer a aventura das viagens naqueles tempos de vai e vem anual atribulado entre a aldeia e a cidade ou o inverso, a perspetiva face à aldeia de um jovem da segunda geração, a entreajuda nas colheitas, as festas dos santos padroeiros, que representavam o expoente máximo do divertimento possível. Subjazem as inacessibilidades e o isolamento e, apesar deles, a coesão social e territorial, que promovia os intercâmbios festivos entre localidades da freguesia e outras.

Com agradecimentos ao saudoso Jornal de Arganil, segue-se o texto. Orgulhosos ficarão, também, os nossos ausentes sempre presentes.

Lisete de Matos

Açor, Colmeal, 5 de outubro de 2021.

 

“Acabaram-se as aulas! Passou mais um ano letivo cheio de trabalho e de canseiras e as férias tão desejadas chegaram finalmente.

Estáva-se em meados do mês de junho e portanto com três meses e meio de férias à minha frente, para poder descansar e preparar-me para o novo ano que começou há poucos dias.

Antes de ir gozar as minhas férias àquela aldeia tão querida, escondida ao fundo dum vale, entre montes cobertos de árvores que dão um aspeto agradável e acolhedor à região, passei uns infindáveis quarenta e cinco dias tristes e monótonos, na cidade, com o seu barulho tão característico, a que já todos estamos acostumados e sem o qual nos parece impossível viver.

Os dias passavam, mas tão lentamente que pareciam anos, até que por fim as últimas folhas do calendário do mês de julho tombaram para sempre e surgiu o primeiro dia de agosto, um sábado radioso de sol, parecendo convidar-nos a abandonar a cidade e a procurarmos o ar puro dos campos

Então começou a azáfama do arrumar das malas, com grande alegria para mim, pois era sinal de que a viagem estava próxima. O dia ia quase ao fim, mas a hora de abalarmos nunca mais chegava.

Fomos finalmente para a estação. Digo, fomos, porque não ia só eu. Os meus pais também iam comigo. A muito custo conseguimos subir para o comboio com a nossa bagagem, que não era pouca e lá nos instalámos. Nem nos podíamos mexer, tal era a avalanche, não só de pessoas, como de malas, cestos, cabazes, etc.

E o comboio começou a deslizar, a princípio lentamente mas depois “a toda a mecha”, como se costuma dizer. A boa disposição reinava entre todos e a aragem fresca da noite, ao entrar pelas janelas abertas, mantinha a carruagem numa temperatura amena. À medida que o comboio devorava quilómetros e o tempo passava, o sono começou a invadir-nos. Fomos então obrigados a utilizar como “Wagon-Lit” aqueles macios e confortáveis bancos de madeira de terceira classe. Mesmo assim, com este conforto todo, dormitámos qualquer coisa.

A viagem decorreu da melhor maneira, quase rápida e às duas e meia já estávamos em Coimbra, a cidade universitária. Mostrava-se-nos toda iluminada, dando-nos uma ideia, mais ou menos, do que é, se a observarmos de dia. Os seus jardins, as suas casas antigas, o Choupal, a Sé Velha, e muitas outras coisas que a tornam bela, sem esquecer o Mondego, as tricanas e os estudantes com as suas serenatas.

Depois de longa espera, o comboio recomeçou a sua marcha, mais lenta, agora, do que fora até aqui.

As estrelas iam desaparecendo no céu, uma espessa neblina cobria os campos e os montes e o frio da manhã, que se fazia sentir, obrigou-nos a vestir alguns agasalhos. Já se podiam observar melhor aqueles campos à beira da linha. Vinhas aqui, árvores de fruto ali, milharais e hortas viçosas acolá, davam um aspeto bonito à região, que já de si é bela.

Às seis e pouco chegávamos à Louzã, onde estava um automóvel à nossa espera, para nos conduzir às proximidades do Colmeal.

Agora os assentos já eram mais confortáveis que os do comboio e fomos melhor instalados. O automóvel seguia pelo meio do arvoredo, enquanto nós, ora olhando para um lado, ora para o outro, não perdíamos aquelas paisagens, tão dignas de serem apreciadas.

Víamos casinhas alvas como a neve sobressaírem da verdura dos campos, dos vergéis próximos, dos campos de cultura; enfim, de todos os lados se viam casas, a dar uma nota de vida e alegria, em contraste com solidão dos montes. À beira da estrada viam-se apesar da hora matutina, os camponeses cuidando uns das suas terras e outros dos animais.

A paisagem é idêntica em todo o percurso. Como no comboio pouco dormira, aproveitei a comodidade do automóvel e … só acordei passada a Catraia do Rolão já na estrada que nos ligará, em breve, à nossa aldeia tão querida e à vista da aldeia do Carvalhal, aglomerado de casas onde àquela hora se elevavam umas colunas de fumo, a indicar que o café se estava a fazer e…, a tomar, é claro.

Aldeia Velha fica-nos ainda mais acima, e já víamos o Soito, com a sua eira verdejante e o Colmeal lá ao fundo, com o rio Ceira a beijar-lhes os pés.

Entretanto o automóvel parava indicando o términus, não da viagem, mas da etapa. Agora, a última etapa era mais difícil, pois tinha de ser feita a pé.

Ultrapassámos o Rossaio e daí a instantes estávamos à Ponte a olhar as águas límpidas do rio, onde eu iria tomar umas banhocas.

O Colmeal estaria à vista dentro de momentos.

O cemitério, onde repousam os restos dos nossos antepassados e a Igreja, que dentro de meses entrará na casa dos quatrocentos anos de existência, foram os primeiros sinais da aldeia a mais uns passos andados …

… Já eu estava no largo da Fonte.

Eram umas nove horas. Pouca gente se via; decerto tinham ido à missa dominical, que àquela hora se estava a celebrar; mas depois o largo começou a animar-se com os que iam chegando, ora dum lado, ora doutro.

Entretanto, eu ia tomar o pequeno almoço. Só à tarde é que vim até à “baixa”, onde alguns rapazes se entretinham a jogar o fito.

O meu primeiro dia no Colmeal estava quase no fim. A sombra cobria tudo com o seu manto e o sol já há muito se tinha escondido por detrás das cercanias distantes.

Ao outro dia, ainda fatigado da viagem, comecei com a minha série de passeios, que se prolongaram quase até ao fim do dia do regresso e que apenas foram interrompidos pelas chuvas arreliadoras, que por vezes caiam do céu cinzento, cor de chumbo.

Da parte da manhã ia para as Seladas, para aquele sítio maravilhoso no meio do espesso arvoredo, com a capelinha do Senhor da Amargura, onde nós vamos, por vezes, fazer as nossas preces. Passeava por entre os pinheiros, jogava à bola no terreiro fronteiro à capela, lia um romance ou fazia jogos com uns primos que geralmente me acompanhavam, para onde quer que eu fosse. À hora do almoço vínhamos para casa, porque era … horas de almoçar.

Da parte da tarde, íamos umas vezes para o rio, ou então passeávamos pelos mais diversos lugares, desde a Cortada, lá no fundo junto ao Ceira, até aos pinhais que circundavam o Ribeiro.

Fomos algumas vezes ao rio, onde tomávamos as nossas banhocas, naqueles dias de muito calor. Nem apetecia sair da água. Era tão agradável estar debaixo das bicas, à Ponte, com a água a cair, límpida e cristalina, sobre as nossas costas … Depois comíamos o lanche que sempre levávamos, pois sabíamos que a água nos abria o apetite.

Um dia, de passeio, fomos até aos Cavões. Depois de colher e saborearmos alguns frutos, viemos para a Cortada, onde nos demorámos até à hora do almoço, a pescar. Éramos três, os pescadores, e fizemos uma grande pescaria; nós somos bons! ...

Ao outro dia era a festa da Malhada e nós não pudemos faltar. Levantámo-nos cedo para irmos pela fresca e percorremos o caminho que separava as duas povoações, sem nos custar nada. Caminhávamos alegremente, pois “íamos para a festa”.

A princípio estava fresco, mas à medida que o sol subia no horizonte, o calor começou a apoquentar-nos.

Os foguetes, estralejando no ar e o desusado movimento nas ruas enfeitadas, davam a indicação de que a aldeia estava em festa.

Subimos até à capelinha de Nossa Senhora de Fátima, onde assistimos às cerimónias religiosas e donde pudemos estender os nossos olhos pelos montes distantes, com povoações e estradas por aqui e por ali.

O baile começava daí a pouco e nós lá fomos, como não podia deixar de ser, dar umas voltinhas. As pernas principiaram-nos a doer mas já o dia ia quase no fim. Assistimos ao fogo de artifício e depois viemos todos embora em cima de uma camioneta até ao Rossaio. Fazia frio, tal como acontecera de manhã. Quando chegámos a casa, cada um caía para seu lado, pois “vínhamos da festa”.

Alguns dias mais tarde, eles vieram-se embora e eu …

… Lá fiquei sozinho.

Sozinho, é como quem diz, sem companheiros para os meus passeios; mas eles não tardaram muito, pois a festa ia-se aproximando e quase todos os dias chegavam ao Rossaio automóveis com colmealenses que iam visitar a sua terra natal.

Quinze dias iam passados desde a minha chegada. Quando, por semana, não tinha nada para fazer, ia até junto dos pedreiros que trabalhavam na ampliação do largo, passar uns momentos de distração a vê-los trabalhar. (é mais agradável ver do que trabalhar) e eles ao verem-me já diziam – “Lá vem mais um engenheiro”.

Aos domingos, da parte da tarde, havia bailarico e então passava um bocado bastante animado. Começávamos o baile cerca das quatro horas e só parávamos depois da meia noite, quando as pernas já não podiam mais. Com a ida dos lisboetas, os bailes tornaram-se mais animados. A mocidade d’outros tempos parecia querer rivalizar com a de agora e diga-se a verdade, eram muito mais alegres e sabiam divertir-se muito melhor do que os de hoje.

Um domingo os “veteranos” fizeram um baile e foi sem dúvida o melhor de quantos lá vi. Pulavam e cantavam como se fossem vinte anos mais novos. As suas danças eram muito diferentes das de hoje. O verde-gaio marcado, o ladrão, o vira balsado, e outras que só eles sabem dançar levavam a palma comparadas com as de agora.

Os dias passavam. A festa dos Cepos chegou por fim. Eu e mais uns rapazes e raparigas combinámos ir e não faltámos. Chegámos àquela aldeia por volta das nove horas e fomos assistir à cerimónia religiosa, depois da qual viemos comer qualquer coisa, pois a caminhada abrira-nos o apetite. Um passeio pela aldeia serviu para fazer horas para o almoço. A seguir a este, fomos para o largo onde estavam a leiloar as fogaças. Findas estas, iniciou-se o baile, o qual só terminou quando viemos embora às duas da madrugada. Ao som dos discos toda a tarde bailámos e regressámos ainda com vontade de ficar. Pelo caminho, mesmo às escuras e aos tropeções, sempre cantámos e descansando aqui e ali chegámos ao Colmeal quase às quatro horas.

Uma semana depois era a nossa festa.

Ainda não rompera a manhã, a alvorada fez-se ouvir com os seus vinte e um tiros e daí em diante os foguetes e os morteiros não mais deixaram de estalar. O dia apresentava-se-nos enevoado com o céu bastante cinzento. O autocarro com a música que abrilhantaria a festa chegava daí a pouco à ”estação” (Rossaio). Em seguida dirigimo-nos a caminho da Ponte, onde recebemos a “Filarmónica Lousanense”, que depois acompanhámos na sua volta à povoação, como que a cumprimentar todos os colmealenses.

A procissão a caminho das Seladas fazia-se mais tarde e com o Senhor d’Amargura voltámos à igreja. Entretanto começava a chover e com a chuva chegava também um numeroso grupo de cepenses, que veio dar uma grande animação, principalmente ao baile, pois traziam toda a espécie de instrumentos.

Enquanto se celebrou a missa e pregou o sermão, sempre choveu, mas depois estiou. Foi só para apagar o pó dos caminhos e o sol mesmo a custo apareceu por entre as nuvens pesadas. A seguir ao sermão reorganizou-se a procissão, agora acrescida com os santos existentes naquela igreja. Com o guião vermelho à frente dirigimo-nos outra vez p’rás Seladas onde ficou o Senhor d’Amargura. Regressámos à igreja e depois a nossas casas onde o almoço nos esperava.

O relógio da torre já tinha dado as quatro horas quando fui até ao largo da Fonte. Este encontrava-se completamente cheio de pessoas que naquele momento dançavam o fado ao som das guitarras, das concertinas e das violas. O baile esteve sempre muito animado e prolongou-se até às cinco horas da manhã, quando já rompia a aurora.

Ao outro dia só para nos contrariar, sempre choveu. E o baile que estava destinado fazer-se …

… Não se fez.

O tempo estava incerto. Nunca se sabia se chovia ou se fazia sol. Logo num dos primeiros dias de setembro caiu uma grande tromba de água sobre a serra da Louzã, a qual fez subir o nível das águas do rio e estas, que até aqui tinham estado sempre límpidas, tomaram uma cor barrenta, cancelando assim os banhos que habitualmente lá ia tomar. Os colmealenses, entretanto, começavam a abandonar a sua terra e a regressar à capital, pensando já no verão de mil novecentos e sessenta, altura em que a igreja comemorará o seu 4º centenário.

Os dias, agora mais pequenos, passavam mais rapidamente.

O tempo das debulhas e das esfolhadas aproximava-se. As terras de milho já tinham perdido a sua cor esverdeada e apresentavam-se agora com uma cor dourada, onde por vezes se viam pequenos grupos de raparigas a colher as espigas.

Nas esfolhadas e nas debulhas juntava-se a mocidade da aldeia e então passavam-se uns momentos bastante animados; mas um dia ia acontecendo precisamente o contrário.

O milho tinha-se apanhado da parte da tarde e a esfolhada combinou-se para essa noite. Tinha-se falado à rapaziada nova e esta não faltara. Um pouco depois de todos já estarmos instalados, sentiu-se o soalho dar um estalido. Ficou tudo alarmado; o peso era muito, a casa era velha e o sobrado também e este não estava escorado.

Verificou-se, então, que três caibros se tinham partido. Passado o pior e depois deste ser escorado voltámos outra vez ao trabalho, o qual se prolongou ainda por algum tempo.

Depois, as chuvas outonais vieram interromper estes momentos de boa disposição, pois não havendo sol o milho não se podia secar.

A primeira quinzena do mês de setembro passara e o dia do regresso ia-se aproximando, com grande tristeza para mim, pois via as minhas férias acabadas.

O derradeiro dia chegou finalmente. Eram umas quatro horas quando eu comecei a fazer as despedidas e a abandonar a aldeia.

Quando embarcámos no Rossaio, eu ao olhar para trás, senti as saudades de deixar aquela aldeia hospitaleira, mas tinha que ser, pois as obrigações assim mo determinavam.

O carro pôs-se em andamento e às sete horas chegámos à Louzã, onde três horas depois tomámos o comboio que nos conduziria a Coimbra. Ainda não era meia noite já nós lá estávamos, mas apenas às quatro da madrugada, depois de muito esperar, conseguimos apanhar lugar no último comboio com destino à capital.

Outra vez a cidade com o seu bulício. Que diferença! … agora que eu vinha tão habituado ao sossego da aldeia, da aldeia que trazia no coração.

Adeus Colmeal! Até à vista. P’ró ano lá estarei a fazer-te mais uma visita.

A.S. “

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[1] A. S.: in: Jornal de Arganil, ano 34º, 1 686, 15 de outubro de 1959; 1 687, 22 de outubro de 1959; 1 688, 29 de outubro de 1959; 1 689, 5 de novembro de 1959.


3 comentários:

Anónimo disse...

Belo texto ! Emocionante até ! Pois nele me revejo, nas férias que passei, não no Colmeal, mas em Ádela. Passava todos os anos três meses, e, embora eu ajudasse os avós e tia nos trabalhos do campo, não perdia as festas dos Cepos, Colmeal e Açor, assim como os bailes de Domingo, usuais na época. Tempos vividos, partilhados, e que foram felizes ! ❤️

Deonilde Almeida disse...

Muito obrigada, Lisete, por esta incrível viagem no tempo...
Lembro-me de acordar de madrugada, nessas viagens cheias de peripécias, com a corneta do guarda da estação, gritando «ALFAREEEEELOS!!!»
Lembro-me da expectativa da miudagem, pelo impacto sofrido pela "carruagem de Serpins", onde viajávamos, quando a automotora lhe era atrelada, em Coimbra, levando-nos até à Lousã;
Lembro-me do prazer de espreitar pela janela, cabelos ao vento, e da cara e dentes enfarruscados, com o fumo do comboio a carvão;
Lembro-me da camioneta de caixa aberta, do meu padrinho Arménio, que nos levava da "Ti Martinha" até um pouco antes da ponte do Colmeal, novamente os cabelos ao vento e à poeira da estrada, que ainda não era alcatroada;
Lembro-me da sopa deliciosa (ainda lhe sinto o cheiro!) da prima Hermínia "da Eira", com que nos recebia carinhosamente, como galinha a proteger os seus pintos debaixo da asa...
Lembro-me do primeiro mergulho no rio, para lavar toda aquela sujeira...
Lembro-me das colegas em Lisboa que, em Outubro, no recomeço das aulas, me diziam tristemente, «...eu fiquei cá, não tenho terra...» e eu tinha tanta pena delas!

Maria C. Costa disse...

Gostei muito de ler. Apreciei a grande sensibilidade deste jovem. Relembrei a minha juventude, os bailaricos, as caminhadas. As idas à praia da Cruz Quebrada, a pé desde a Amadora. O regresso nas camionetas do Chora. Belos tempos em que o tempo corria mais lento e eu sentia pena de não ter uma terra longe para visitar.

14 outubro, 2021