(Continuação)
3. DA
EVOLUÇÃO
3.1. O
RELIGIOSO E O SECULAR
Com o passar do tempo, a estrutura
organizativa de O Colmeal vai
sofrendo alterações, mantendo durante anos as áreas temáticas, e mantendo-se
jornal paroquial e da freguesia. As alterações começam por traduzir a
prioridade atribuída a um determinado assunto, para mais tarde se processarem em
sintonia com as mudanças sociais e politicas que foram tendo lugar no país e nas
freguesias. O religioso-paroquial e o secular continuam a sobrepor-se,
indiciando uma visão abrangente da vida, na multiplicidade das suas valências.
Progressivamente, porém, vão surgindo artigos
e rubricas que reforçam a dimensão histórica e social do jornal, logo, a
vertente secular. Constituem exemplo: Centenário
da Fundação da Freguesia (nº 11, 1960); Colmeal
e os seus Problemas (nº 24, 1962); Figuras
e Factos (nº 51, 1964, mantendo seguidamente uma certa regularidade); Cepos e a sua História (nº 63, 1965); Postal de Cepos (nº 74-75, outº-novº
1966); Freguesia do Colmeal. História
(nº 101, dezº 1969). Contemplando, embora, artigos sobre a atividade religiosa
e paroquial, encontram-se números marcadamente seculares. É o caso dos 92 e 93
(1968) alusivos à nomeação de Marcelo Caetano como Presidente do Conselho.
Similarmente, a tendência para a secularização
pode ver-se na rubrica Das Coisas E… das
Pessoas [i],
que emerge em 1966, para reportar encontros e situações do quotidiano. Em
estilo de crónica, poderia ter representado uma valorização do local, não fora
a sua efemeridade, pois só integra os números 68, 69, 72. Na sua primeira
aparição, teve-se a grata surpresa de encontrar mencionada a conhecida
hospitalidade dos nossos avós paternos, Leopoldina e José Martins. Mas, num outro
exemplar, a triste notícia da morte do último, na sequência da queda de uma
oliveira.
Em interação com aquelas, acrescem as mudanças que vão ocorrendo no próprio plano religioso-paroquial. Avultam: o desaparecimento já mencionado das vidas de santos e das tarjetas formativas da primeira página; o maior relevo dado à ação da União Progressiva da Freguesia do Colmeal e das comissões de melhoramentos das diversas povoações; a divulgação dos aniversários. Uns tantos números antes e depois do centésimo, verifica-se, mesmo, o desaparecimento dos textos de apostolado e catequese, persistindo os relativos à atividade paroquial sob os títulos Vida paroquial e Notícias paroquiais. Estando em questão um período muito concreto (1968-1972), é difícil não relacionar este desenvolvimento com um provável perfil específico da equipa responsável pelo jornal.
A sugerir o respetivo percurso, muito mais
tarde, em 1981, falando do boletim sob a sua orientação, o então diretor
afirmava:
(…)
Foi denunciada muita situação injusta, fraudes, foram apresentadas carências do
povo, etc., etc.. Como fruto deste trabalho várias situações foram corrigidas e
as entidades viraram-se mais realisticamente para os interesses coletivos. (… )
[ii].
E, quando da sua despedida, no ano seguinte:
(…) O
jornal O Colmeal, com uma nova dinâmica, ajudou a aclarar ideias e alertou para
os reais interesses do povo, ao mesmo tempo que servia de elo de ligação da
freguesia com os emigrantes (…) [iii] .
A propósito, recorde-se o apelo da Terra Natal, quando em carta aberta aos
filhos que a visitaram no verão de 1968 [iv],
lamenta o afastamento das verdades da fé nela aprendidas, pedindo-lhes que se
interessem pela vida espiritual do mesmo modo que se interessam pelo bem-estar
próprio e da família.
No que toca à população residente, na
sequência de um inquérito nacional, diz-se, em meados de 1978: A freguesia do Colmeal tinha na altura do
inquérito 535 pessoas e assistiram à Missa no domingo do inquérito 263 pessoas,
sendo 72 homens 191 mulheres [v]. Comparando com os participantes de
hoje, uma multidão, em que as mulheres representavam 72,6%! De acordo com dados
resultantes do mesmo inquérito, 75 a 85% dos portugueses autoidentificava-se
como católica, mas a maioria considerava-se não praticante.
A tendência para a secularização do jornal, que se enquadra na secularização social geral, é legitimada no Estatuto editorial do número 131 (julho-setº 1975), onde se retoma a ideia de carta e salienta as dimensões informativa e interventiva, concluindo: (…) Periódico confessional, sua missão é estar ao serviço da fé cristã e de toda a vida dos homens, de que a mesma fé é força dinamizadora.
3.2. COM UM
PÉ CÁ E OUTRO LÁ
Conforme exposto e decorre dos objetivos
definidos pelo seu fundador, O Colmeal
sempre existiu e funcionou com um pé cá e outro lá, nas aldeias e na cidade. Ou
seja, no vai e vem das próprias pessoas que, nessa altura, e por pouco tempo
mais, ainda partiam para regressar. Era o tempo da dupla inserção das famílias,
que se distribuíam entre as duas localizações, nas terras ficando as mulheres,
as raparigas e os filhos pequenos, para Lisboa partindo os homens e os rapazes
depois de feita a escola. Uns vão outros
vêm. É sempre assim. O mal (ou o bem!) é que vão mais do que vêm [vi].
Daí que o boletim aluda a terras que entretanto ficaram vazias, já nem se sabendo
onde eram: Coiços, Marmoiral, Porto-chão e Safredo.
Nesta ambivalência e com a partida de cada vez
mais população para a cidade, o jornal acaba por acompanhá-la e refletir a
progressiva ascendência da inserção e da identidade urbanas. Enquanto no número
4 (1960) se diz que as visitas a Lisboa
são necessárias para maior e mais estreita união das famílias (…) [vii]
e se vê, nas fotografias da excursão, que a maioria são mulheres, em números ulteriores,
fala-se de senhoras, com ou sem filhos, que partem para juntarem-se à família [viii].
Entre outras, permitem aquela leitura as
seguintes ocorrências.
Os batizados e casamentos noticiados, que passam
a ter lugar sobretudo na Grande Lisboa, embora, nas aldeias continuem a
realizar-se alguns de residentes e/ou já nascidos na cidade. A opção pela terra
revela a profundidade dos laços que a ela prendem, associada à permanência de
familiares na mesma. Os padrinhos e convidados vão e vêm.
Os exames,
mais tarde, Exames e passagens, que
começam por ser de crianças residentes nas freguesias, e relativos à 4ª classe,
para passarem a ser de ausentes, e respeitantes a níveis de ensino mais
elevados. Embora surja antes, esta evolução é visível nos números 50 (agosto-setº
1964) e 62 (outº 1965). Aliás, o facto de a notícia passar a ter o título de Os nossos estudantes é em si próprio
elucidativo da mudança. O estudante era o que frequentava estudos superiores à
escolaridade obrigatória [ix] que só
existiam nas capitais de distrito. Na época, como me diziam conterrâneos num
outro contexto, o costume era os rapazes fazerem a 4ª classe e irem
para Lisboa trabalhar, às raparigas, que se destinavam ao trabalho no campo,
bastava saber ler e escrever ou fazer a 3ª classe.
A rubrica Marco
do Correio passa a acumular com Notícias
da Capital, que aparece com o número 53 (dezº 1964), para ficar até ao 67
(março 1966), a noticiar eventos pessoais e das coletividades, na cidade. No
número 87, o Marco do Correio foi substituído
por Pela nossa Terra e Por quem os sinos tocam. Com a
primeira, o local ganha autonomia, mas perde espaço. O Marco do Correio dará mais tarde pelos títulos Notícias das nossas terras, Terras da nossa
terra, Por Terras da Freguesia do Colmeal, Correio do leitor … Não se
encontrando outra explicação, por vezes, tem-se a perceção de alguma
volatilidade dos títulos (e secções) em função de gostos e opções momentâneas.
Uns chegam para logo partirem, outros partem, mas regressam!
As secções Pelo
Mundo (curiosidades, informação geral) e Notícias do Mundo, de finais dos anos sessenta, apontam no sentido
de uma perspetiva mais universal e a própria publicidade, que é significativa,
nomeadamente em boletins de 1966, espelha o peso da diáspora, no jornal.
Por fim, a orientação para a comunidade ausente transparece do facto de o boletim não incluir uma secção agrícola, ao contrário de outros jornais paroquiais rurais contemporâneos, que focavam esse setor de atividade. Involuntariamente ou não, neste aspeto, O Colmeal evita a valorização da ruralidade pobre que caraterizava o regime em vigor.
4. ESPAÇO DE
VISIBILIDADE E PROTAGONISMO, FERRAMENTA CULTURAL, FATOR DE IDENTIDADE E COESÃO
SOCIAL
Em vários momentos, O Colmeal evoca o agrado com que era lido. Na certeza do seu
interesse enquanto órgão de comunicação social, resta sublinhar a sua
importância enquanto espaço de visibilidade e protagonismo, ferramenta
cultural, fator de identidade e coesão social.
Espaço de visibilidade e protagonismo, porque
a elaboração do boletim exigia colaborações e uma vasta rede de contatos, que
assim se envolviam, direta e indiretamente, beneficiando das mais-valias dessa
participação. Acresciam as iniciativas individuais, traduzidas em cartas e
outras comunicações que tornavam os leitores simultaneamente consumidores e produtores
do jornal.
Espaço de visibilidade e protagonismo, ainda,
porque nele os paroquianos e leitores podiam ver o seu nome inscrito, desse
modo o registando para memória futura. Num mesmo boletim, as possibilidades
eram várias: notícia específica; inclusão em Marco do Correio, na Vida de
O Colmeal ou nos Aniversários;
presença nas listas de donativos ou nos Mordomos
e mordomas. Nesta matéria, talvez mesmo existisse alguma emulação, como nos
leilões. Para além dos nomes habituais, nos números 98 e 100 (1969), os
donativos para a residência paroquial apresentam-se listados por terras [xii].
Naquelas listas, com exceção para as mordomas,
os nomes são maioritariamente masculinos, o que evidencia a pouca visibilidade
e a subalternidade das mulheres. Apesar de o protagonismo da dupla ou tripla
jornada de trabalho que normalmente faziam, vivendo na aldeia ou na cidade!
Por fim, espaço de protagonismo para
instituições, em que avultam as coletividades e o regionalismo, em geral. Só mais tarde as autarquias.
Ferramenta educativa e cultural, pela
informação que veiculava e pelo estímulo à leitura e à escrita que constituía.
Estimulo à leitura por inerência e uma leitura que não seria fácil, tendo em
conta os baixos níveis de escolaridade e a pequenez do corpo da letra, que
apenas o entrelinhamento compensava. Estímulo à escrita, porque exigia a
iniciativa de escrever para prestar uma informação ou sugerir uma notícia. Recentemente,
alguém lembrava o fantástico exercício de criatividade que foi, para ela e uma
amiga, munidas de um dicionário, fazer uns versos sobre a sua terra. O desafio fora
lançado pelo Pe. António Diniz, e ao mesmo responderam paroquianas e
paroquianos praticamente de todas as terras servidas pelo jornal. Esta participação
é muito enriquecedora e o fomento da mesma deve ser enaltecido.
Ferramenta educativa e cultural, ainda, porque
ao divulgar as formaturas e o sucesso
escolar de uns, estava a encorajar os de outros, conhecida que é a importância que as populações em causa atribuíam
à educação e aos estudos.
Fator de identidade e coesão social, na medida
em que contribuiu para manter viva a ligação entre as aldeias, aproximando
Cepos e Colmeal e alimentando uma visão de conjunto. Em articulação com a
família, o regionalismo e o vai e vem
recorrente, o boletim reforçou seguramente a pertença à terra, às freguesias e
à região, ao mesmo tempo que a urbana se ia impondo por força das
circunstâncias.
A este propósito, diz-se sobre o boletim, no
número 44 (Fev. 1964):
Mais
do que porta-voz da terra mãe, ele tem sido o elo de união entre todos os
filhos da mesma terra, entre os presentes e os ausentes. A cada um tem levado a
palavra carinhosa e amiga, o conselho benfazejo, as notícias, aguardadas com
ansiedade [xiii].
Um elo de união! Que assim persista O Colmeal, no exercício do seu atual
papel de narrador e fonte inesgotável de memória, informação e reflexão.
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, novembro de 2020.
[i] O Colmeal
nº 68, abril de 1966.
[ii] “Padre Manuel Pinto Caetano”, O Colmeal, nº 175, julho-agosto de 1981. Este número especial, em
formato diferente, comemora os 50 anos da União Progressiva da Freguesia do
Colmeal.
[iii] Pe. Pinto, “Na hora do adeus”, O Colmeal, nº 187, agosto de 1982.
[iv] “Carta aberta”, nº 41, novembro
de 1968.
[v] “Quem vai à Missa?”, O Colmeal, nº 144, abril-maio-junho, de 1978.
[vi] “Marco do Correio”, O Colmeal, nº 66, fevereiro de 1966.
[vii] “A nossa excursão”, O Colmeal, nº 4, 15 de maio de 1960.
[viii] “Marco do Correio”, O Colmeal, nº 13, 1961; nº 52, 1964; nº 54, 57,
59 e 64, 1965; nº 67, 1966.
[ix] Depois de avanços e recuos anteriores, a escolaridade
obrigatória passou a ser de quatro anos para os rapazes em 1956 (Decreto nº 40
964, de 31/12) e, para ambos os sexos, em 1960. Passou a seis anos em 1964
(Decreto-Lei nº 45 810, de 9/7), assim se mantendo até 1986.
[x] “Cartas de Longe”, O Colmeal, nº 14, março de 1961.
[xi] Exemplos:
“Uma Lágrima do Soldado”, O Colmeal, nº
23, janeiro 1962; “Carta de soldado para a mãe”, O Colmeal, nº 69, maio de 1966; “Espera-me”, O Colmeal, nº 102, fevereiro de 1970.
[xii] “Residência Paroquial”, O Colmeal, nº 98 e 100, julho e novembro de 1969.
[xiii] “No limiar do quinto ano”, O Colmeal, fevereiro de 1964.
3 comentários:
Parabéns, Lisete Matos e bem-haja por este trabalho tão minucioso e de grande rigor. A análise que nos oferece, deixa muito espaço de reflexão sobre o Colmeal - o que recordamos e como se chegou ao ponto em que estamos.
Deonilde Almeida
Parabéns, Lisete, pela interessantíssima abordagem que faz deste "jornalinho". A propósito da sua vertente secular, numa das últimas vezes que estive no Colmeal, tive ocasião de mais uma vez percorrer exemplares de 1974, 75, 76, e verificar a modernidade e alguma heterodoxia de artigos nele publicados, de tal forma que até o meu filho mais novo se admirou.
Obrigado, mais uma vez, pela partilha!
Rui Ferreira
Bem hajam. Confirma-se, assim, a hipótese que sugiro.
Em relação à coleção que o senhor Eduardo reuniu, fico contente que exista e seja usada. Eu, por exemplo, tenho números da "Fagulha" e até da "Menina e Moça" (valiosos para a história e a sociologia), mas nenhum de "O Colmeal". Para além da coleção da UPFC, só conhecia a da Casa Paroquial, que, em tempos, foi generosamente organizada por Fernando Costa. Espero mesmo que tenha sido devidamente preservada, quando da recente requalificação do espaço. É uma preciosidade.
Tudo de bom.
Lisete de Matos
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