São dias inusitados e tristes os que vivemos.
Pelo sofrimento e a tragédia das vidas perdidas, pela dependência e fragilidade
em que estamos, numa afronta impensável à arrogância convencida em que
vivíamos. Dias, igualmente, de generosidade e entrega, de solidariedade e
altruísmo, que agradecemos a todos os que prestam auxílio às vítimas de doença
e da crise generalizada em que mergulhámos. Para tanta dádiva de uns e gratidão
de outros, não há palavras.
Nesta situação de tempo que conta tanto mais
quanto começa a (des)contar, por razões que os especialistas saberão explicar,
dei comigo a rever leituras antigas, entre elas a dos primeiros cem números de O Colmeal. Embora por alguns,
nomeadamente seguintes, apenas tenha passado os olhos, foi uma leitura muito
interessante, simultaneamente aprazível, penosa e pensativa, por estar em questão
a narrativa essencial da freguesia, cruzada com as da região, do país e do
mundo.
Funda esta convicção o facto de a história
antiga constar de artigos e de a moderna transparecer, explícita e
implicitamente, das problemáticas e temas que são (ou não) abordados. Embora as
caraterísticas geográficas e as dinâmicas sociais sejam anteriores, os
longínquos anos sessenta e setenta do século passado, a que o boletim se
reporta, foram decisivos para a atualidade do território, em termos
infraestruturais, demográficos, sociais, económicos e, mesmo, religiosos. Um
desfecho recente foi a fusão com a limítrofe freguesia do Cadafaz, dando lugar
à União de Freguesias de Cadafaz e Colmeal. De um outro ponto de vista ou na
outra face da moeda, os mesmos anos que foram determinantes para o sucesso e a
mobilidade social ascendente dos muitos conterrâneos e seus descendentes que,
por toda a parte, ajudaram e ajudam a construir o desenvolvimento e as
condições de vida a que os seus ascendentes ou eles próprios aspiravam.
Estes apontamentos são o produto da reflexão
que a dita leitura me suscitou. Publico-os com o objetivo de contribuir para a
valorização e a divulgação de um projeto e acervo documental que plasma a história
da freguesia do Colmeal, em parte, também da de Cepos.
São apontamentos sobre O Colmeal enquanto testemunho e referem-se aos primeiros cem
números e ao período 1960-1969. O recurso a números e conteúdos posteriores
visa somente antecipar possíveis contornos do boletim, a caminho e na senda das
mudanças socioculturais e políticas, entretanto ocorridas. Neles, depois de
contextualizar o jornal e de o apresentar na dualidade religioso-secular que o
informa, apontam-se tendências de evolução no campo da população-alvo e das
matérias que contempla. Termina-se sustentando o seu papel como espaço de
visibilidade e protagonismo, ferramenta cultural e fator de identidade e coesão
social. Nem o próprio jornal sendo exaustivo, muito fica por dizer, a
configurar desafio para outras leituras.
Preservar a memória individual e coletiva
nunca será de mais, para que a palavra e a ação dos homens e mulheres tenha
futuro. Repetindo-me, recordo uma vez mais o ensaísta Jorge de Sena, quando
assinalava o risco de alguns permanecerem os insignificantes da história, enquanto
outros se guindam ao estatuto de insignes ficantes [i].
1. CONTEXTO
No que respeita à forma, que oportunamente foi
objeto de tratamento minucioso [ii], O Colmeal é um caderno de 27X19 cm, com
quatro páginas que, esporadicamente, passam a seis, oito, doze … A
periodicidade começou por ser mensal, variando mais tarde em função de
dificuldades ocasionais ou por decisão fundamentada. Deixou de publicar-se em
agosto de 1982, depois de a despedida do então diretor fazer manchete no número
187, e de se informar que O Colmeal ia
ter férias [iii].
Segundo o fundador, lembrando a existência de
colmealenses, especialmente nesse grande
mundo que é a cidade de Lisboa:
A
finalidade é levar a todos, aos de longe e aos de perto um pouco de auxílio
moral e espiritual, embora possamos dizer que foi o pensamento na colónia do
Colmeal em Lisboa que nos levou mais facilmente a esta estranha aventura” (…).
Com esta folha que acaba de nascer queremos nós pôr-nos mais em contacto com todos. Ela será afinal uma carta escrita para toda a família colmealense”.
O Arcebispo-Bispo de Coimbra, D. Ernesto Sena
de Oliveira, autorizou e abençoou o jornal, pedindo que fosse em tudo eco da Voz do Evangelho [iv].
Embora o auxílio moral e espiritual possa
assumir múltiplas formas, sendo sempre um eco do evangelho, aqueles dois
enunciados remetem para preocupações algo distintas. Enquanto o fundador do
boletim enfatiza a população-alvo e a vertente secular inerente ao conceito de carta, o Arcebispo-Bispo realça a
mensagem e, nessa medida, a vertente religiosa e apostólica. A dualidade
religioso-secular acompanhará a formulação dos objetivos do jornal ao longo do
tempo [v], influenciando
o peso dos diferentes conteúdos.
De qualquer modo, atendendo à época, diríamos
que tanto o pároco como o prelado inscrevem o boletim num registo migratório e numa
estratégia de recurso à imprensa como reforço e meio de evangelização
privilegiado, para fazer face às mudanças sociais e aos processos de intensa secularização
em curso. A medida remonta a Leão XIII [vi] e deu
origem a uma panóplia de publicações, nacionais, regionais e locais [vii].
Apenas o Pe. Fernando - um jovem sacerdote -, o faz antecipando orientações que
viriam a sair do Concílio Vaticano II, correspondendo a preocupações
pré-existentes no seio da Igreja católica. O concílio teve lugar em inícios de
1962 e o decreto [viii]
sobre as comunicações, em 1966. O próprio boletim menciona vários órgãos de
comunicação congéneres, entre eles O
Varzeense, ainda ativo, que o Pe. Fernando fundou, em Vila Nova do Ceira,
depois de sair do Colmeal. A semelhança temática entre alguns leva-nos a pensar
que existiria um guião para a elaboração destes jornais.
O acréscimo das migrações, por sua vez, vem
potenciar o papel evangelizador da imprensa, para contrabalançar as
consequências da mobilidade geográfica e social, no plano dos valores, crenças
e práticas, designadamente religiosas. Nas palavras de D. José Policarpo:
(…)
a curto e médio prazo, a mudança significa uma nova maneira de viver, de
trabalhar, de pensar, de sentir, de entender o passado e o futuro, de ordenar
os valores e as prioridades, de dar sentido à vida e à morte, ao casamento e à
família, ao tempo e à natureza, a Deus e à religião. (…)
[ix]
Nos anos de sessenta a oitenta, o fluxo
(e)migratório foi muito elevado, devido a terem-se agravado as condições de
pobreza, falta de trabalho e autoritarismo que explicam e continuam a alimentar
o êxodo de populações. Perante o mesmo, a Igreja só podia reforçar a sua ação.
A título informativo, refira-se a celebração do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado
desde 1914 e, entre nós, a criação da Obra Católica Portuguesa de Migrações
precisamente em 1962.
Fazendo uma rápida retrospetiva da evolução
demográfica na freguesia do Colmeal, verifica-se que perdeu, na década de
trinta, 7,8% da sua população, na de quarenta, 16,6%, na de cinquenta, 15,1% e,
na de sessenta, 62,2% (quinhentos e noventa e três indivíduos). Confirma-se que
a (e)migração se acentuou a partir da década de quarenta, estabilizando na de
cinquenta, para atingir o seu auge na de sessenta, a acompanhar as tendências
nacionais. Porém, contrariamente à relativa estabilidade que teve lugar no
país, na década de oitenta, a freguesia continuou a perder população (-34,3%) [x], tal
como o concelho e toda a zona do Pinhal Interior Norte. Contribuíram para o
agravamento da desertificação humana a paragem do retorno, o envelhecimento da
população, a quebra na taxa de natalidade, a estagnação económica e, sempre, as
dificuldades de acesso [xi].
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, novembro de 2020
[i] Jorge Sena, “Diário Popular”, 1 de junho de 1978.
[ii]
Henrique
Miguel Mendes, “Recordar O Colmeal”,
http//upfc-colmeal-gois.blogspot.pt, 8 de março de 2008. Sequência: 11 e 29 de março de 2008; 6 e 16 de maio de 2008; 4 de junho de 2008; 16 de julho de 2008; 22 de agosto de 2008. A existirem outros artigos, não os localizámos.
[iii] “Na hora do adeus”, O Colmeal, nº 187, agosto de 1982.
[iv] “Porquê, para quê e quando?”, O Colmeal, nº 1, fevereiro de 1960.
[v] A formulação de objetivos mais global que encontrámos
é a da manchete “Mais um Ano”, O Colmeal,
nº 24, de 1962. Sob o lema servir, referem-se a pátria e a freguesia, os
paroquianos ausentes e os presentes e, quanto ao conteúdo, as notícias, o apoio
anímico e o caminho do céu, levando a todos a mensagem salvífica de Deus.
[vi] Carta, 25
de janeiro de 1882. Mas o L’Osservatore Romano, um dos
mais antigos jornais do mundo, é de 1861 e, já agora, a Rádio Vaticano, de
1929.
[vii] Entre elas, o Novidades, fundado em 1885.
[viii] Inter-Mirífica, 4 de dezembro de 1966, na sequência do qual a Igreja instituirá o Dia Mundial das Comunicações Sociais (domingo antes do Pentecostes).
[ix] D. José Policarpo, “A religião”, Portugal Hoje, INA, Lisboa, 1995, p.81.
[x] Na década de setenta, deu-se um
crescimento de 38,5%, mercê do regresso às aldeias de migrantes internos e de
alguns emigrantes.
[xi] Lisete Paula de Almeida de Matos, Gente da Serra: Modos de Vida entre a Cidade
e a Aldeia. Lisboa, FCSH/Universidade Nova, 2000.
3 comentários:
OBRIGADO Lisete de Matos por este extraordinário trabalho.
Uma nota prévia com um primeiro parágrafo de grande sentimento de humanismo e de reconhecimento.
Recordamos a coragem que teve Fernando Ribeiro, então pároco do Colmeal, quando lançou "O Colmeal" e causou enorme surpresa e regozijo entre os Colmealenses, especialmente naqueles que labutavam e viviam fora da sua aldeia.
Realçamos a coragem que teve agora Lisete de Matos em "se meter" a fazer este trabalho árduo de pesquisa, que face às condições de que dispõe no Açor, de tremenda dificuldade, se empenhou como se um Cabo das Tormentas enfrentasse.
Como refere "Preservar a memória individual e coletiva nunca será de mais" pelo que todos nós lhe devemos estar gratos e reconhecidos.
Bem haja Lisete.
"O Colmeal" é uma preciosa fonte de informação para conhecer/recordar e compreender aquela época.
Muito obrigada, Lisete, por mais este excelente trabalho de investigação e divulgação.
Deonilde Almeida
O meu pai foi assinante d'O Colmeal e colecionou todos os números. Quase sempre que regresso ao Colmeal, revejo, com muito interesse e , por vezes, com alguma nostalgia, algum exemplar.
Grato pelo seu trabalho e pela partilha.
Rui Ferreira
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