09 janeiro 2021

O COLMEAL E A HISTÓRIA DO COLMEAL (1º)

 

Nota prévia

São dias inusitados e tristes os que vivemos. Pelo sofrimento e a tragédia das vidas perdidas, pela dependência e fragilidade em que estamos, numa afronta impensável à arrogância convencida em que vivíamos. Dias, igualmente, de generosidade e entrega, de solidariedade e altruísmo, que agradecemos a todos os que prestam auxílio às vítimas de doença e da crise generalizada em que mergulhámos. Para tanta dádiva de uns e gratidão de outros, não há palavras.

Nesta situação de tempo que conta tanto mais quanto começa a (des)contar, por razões que os especialistas saberão explicar, dei comigo a rever leituras antigas, entre elas a dos primeiros cem números de O Colmeal. Embora por alguns, nomeadamente seguintes, apenas tenha passado os olhos, foi uma leitura muito interessante, simultaneamente aprazível, penosa e pensativa, por estar em questão a narrativa essencial da freguesia, cruzada com as da região, do país e do mundo.

Funda esta convicção o facto de a história antiga constar de artigos e de a moderna transparecer, explícita e implicitamente, das problemáticas e temas que são (ou não) abordados. Embora as caraterísticas geográficas e as dinâmicas sociais sejam anteriores, os longínquos anos sessenta e setenta do século passado, a que o boletim se reporta, foram decisivos para a atualidade do território, em termos infraestruturais, demográficos, sociais, económicos e, mesmo, religiosos. Um desfecho recente foi a fusão com a limítrofe freguesia do Cadafaz, dando lugar à União de Freguesias de Cadafaz e Colmeal. De um outro ponto de vista ou na outra face da moeda, os mesmos anos que foram determinantes para o sucesso e a mobilidade social ascendente dos muitos conterrâneos e seus descendentes que, por toda a parte, ajudaram e ajudam a construir o desenvolvimento e as condições de vida a que os seus ascendentes ou eles próprios aspiravam.

Estes apontamentos são o produto da reflexão que a dita leitura me suscitou. Publico-os com o objetivo de contribuir para a valorização e a divulgação de um projeto e acervo documental que plasma a história da freguesia do Colmeal, em parte, também da de Cepos.

São apontamentos sobre O Colmeal enquanto testemunho e referem-se aos primeiros cem números e ao período 1960-1969. O recurso a números e conteúdos posteriores visa somente antecipar possíveis contornos do boletim, a caminho e na senda das mudanças socioculturais e políticas, entretanto ocorridas. Neles, depois de contextualizar o jornal e de o apresentar na dualidade religioso-secular que o informa, apontam-se tendências de evolução no campo da população-alvo e das matérias que contempla. Termina-se sustentando o seu papel como espaço de visibilidade e protagonismo, ferramenta cultural e fator de identidade e coesão social. Nem o próprio jornal sendo exaustivo, muito fica por dizer, a configurar desafio para outras leituras.

Preservar a memória individual e coletiva nunca será de mais, para que a palavra e a ação dos homens e mulheres tenha futuro. Repetindo-me, recordo uma vez mais o ensaísta Jorge de Sena, quando assinalava o risco de alguns permanecerem os insignificantes da história, enquanto outros se guindam ao estatuto de insignes ficantes [i].

 

1. CONTEXTO

  


 O boletim paroquial O Colmeal nasceu em 15 de fevereiro de 1960, por iniciativa do Pe. Fernando Rodrigues Ribeiro. Sempre que o pároco era o mesmo, o boletim englobava a freguesia de Cepos, hoje União de Freguesias de Cepos e Teixeira.

No que respeita à forma, que oportunamente foi objeto de tratamento minucioso [ii], O Colmeal é um caderno de 27X19 cm, com quatro páginas que, esporadicamente, passam a seis, oito, doze … A periodicidade começou por ser mensal, variando mais tarde em função de dificuldades ocasionais ou por decisão fundamentada. Deixou de publicar-se em agosto de 1982, depois de a despedida do então diretor fazer manchete no número 187, e de se informar que O Colmeal ia ter férias [iii].

Segundo o fundador, lembrando a existência de colmealenses, especialmente nesse grande mundo que é a cidade de Lisboa:

A finalidade é levar a todos, aos de longe e aos de perto um pouco de auxílio moral e espiritual, embora possamos dizer que foi o pensamento na colónia do Colmeal em Lisboa que nos levou mais facilmente a esta estranha aventura” (…). Com esta folha que acaba de nascer queremos nós pôr-nos mais em contacto com todos. Ela será afinal uma carta escrita para toda a família colmealense”.

  


O Arcebispo-Bispo de Coimbra, D. Ernesto Sena de Oliveira, autorizou e abençoou o jornal, pedindo que fosse em tudo eco da Voz do Evangelho [iv].

Embora o auxílio moral e espiritual possa assumir múltiplas formas, sendo sempre um eco do evangelho, aqueles dois enunciados remetem para preocupações algo distintas. Enquanto o fundador do boletim enfatiza a população-alvo e a vertente secular inerente ao conceito de carta, o Arcebispo-Bispo realça a mensagem e, nessa medida, a vertente religiosa e apostólica. A dualidade religioso-secular acompanhará a formulação dos objetivos do jornal ao longo do tempo [v], influenciando o peso dos diferentes conteúdos.

De qualquer modo, atendendo à época, diríamos que tanto o pároco como o prelado inscrevem o boletim num registo migratório e numa estratégia de recurso à imprensa como reforço e meio de evangelização privilegiado, para fazer face às mudanças sociais e aos processos de intensa secularização em curso. A medida remonta a Leão XIII [vi] e deu origem a uma panóplia de publicações, nacionais, regionais e locais [vii]. Apenas o Pe. Fernando - um jovem sacerdote -, o faz antecipando orientações que viriam a sair do Concílio Vaticano II, correspondendo a preocupações pré-existentes no seio da Igreja católica. O concílio teve lugar em inícios de 1962 e o decreto [viii] sobre as comunicações, em 1966. O próprio boletim menciona vários órgãos de comunicação congéneres, entre eles O Varzeense, ainda ativo, que o Pe. Fernando fundou, em Vila Nova do Ceira, depois de sair do Colmeal. A semelhança temática entre alguns leva-nos a pensar que existiria um guião para a elaboração destes jornais.

O acréscimo das migrações, por sua vez, vem potenciar o papel evangelizador da imprensa, para contrabalançar as consequências da mobilidade geográfica e social, no plano dos valores, crenças e práticas, designadamente religiosas. Nas palavras de D. José Policarpo:

(…) a curto e médio prazo, a mudança significa uma nova maneira de viver, de trabalhar, de pensar, de sentir, de entender o passado e o futuro, de ordenar os valores e as prioridades, de dar sentido à vida e à morte, ao casamento e à família, ao tempo e à natureza, a Deus e à religião. (…) [ix]

Nos anos de sessenta a oitenta, o fluxo (e)migratório foi muito elevado, devido a terem-se agravado as condições de pobreza, falta de trabalho e autoritarismo que explicam e continuam a alimentar o êxodo de populações. Perante o mesmo, a Igreja só podia reforçar a sua ação. A título informativo, refira-se a celebração do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado desde 1914 e, entre nós, a criação da Obra Católica Portuguesa de Migrações precisamente em 1962.

Fazendo uma rápida retrospetiva da evolução demográfica na freguesia do Colmeal, verifica-se que perdeu, na década de trinta, 7,8% da sua população, na de quarenta, 16,6%, na de cinquenta, 15,1% e, na de sessenta, 62,2% (quinhentos e noventa e três indivíduos). Confirma-se que a (e)migração se acentuou a partir da década de quarenta, estabilizando na de cinquenta, para atingir o seu auge na de sessenta, a acompanhar as tendências nacionais. Porém, contrariamente à relativa estabilidade que teve lugar no país, na década de oitenta, a freguesia continuou a perder população (-34,3%) [x], tal como o concelho e toda a zona do Pinhal Interior Norte. Contribuíram para o agravamento da desertificação humana a paragem do retorno, o envelhecimento da população, a quebra na taxa de natalidade, a estagnação económica e, sempre, as dificuldades de acesso [xi].



Lisete de Matos

Açor, Colmeal, novembro de 2020



[i] Jorge Sena, “Diário Popular”, 1 de junho de 1978.

[ii] Henrique Miguel Mendes, “Recordar O Colmeal”, http//upfc-colmeal-gois.blogspot.pt, 8 de março de 2008. Sequência: 11 e 29 de março de 2008; 6 e 16 de maio de 2008; 4 de junho de 2008; 16 de julho de 2008; 22 de agosto de 2008. A existirem outros artigos, não os localizámos.

[iii] “Na hora do adeus”, O Colmeal, nº 187, agosto de 1982.

[iv] “Porquê, para quê e quando?”, O Colmeal, nº 1, fevereiro de 1960.

[v] A formulação de objetivos mais global que encontrámos é a da manchete “Mais um Ano”, O Colmeal, nº 24, de 1962. Sob o lema servir, referem-se a pátria e a freguesia, os paroquianos ausentes e os presentes e, quanto ao conteúdo, as notícias, o apoio anímico e o caminho do céu, levando a todos a mensagem salvífica de Deus.

[vi] Carta, 25 de janeiro de 1882. Mas o L’Osservatore Romano, um dos mais antigos jornais do mundo, é de 1861 e, já agora, a Rádio Vaticano, de 1929.

[vii] Entre elas, o Novidades, fundado em 1885.

[viii] Inter-Mirífica, 4 de dezembro de 1966, na sequência do qual a Igreja instituirá o Dia Mundial das Comunicações Sociais (domingo antes do Pentecostes).

[ix] D. José Policarpo, “A religião”, Portugal Hoje, INA, Lisboa, 1995, p.81.

[x] Na década de setenta, deu-se um crescimento de 38,5%, mercê do regresso às aldeias de migrantes internos e de alguns emigrantes.

[xi] Lisete Paula de Almeida de Matos, Gente da Serra: Modos de Vida entre a Cidade e a Aldeia. Lisboa, FCSH/Universidade Nova, 2000.

3 comentários:

António Santos disse...

OBRIGADO Lisete de Matos por este extraordinário trabalho.
Uma nota prévia com um primeiro parágrafo de grande sentimento de humanismo e de reconhecimento.
Recordamos a coragem que teve Fernando Ribeiro, então pároco do Colmeal, quando lançou "O Colmeal" e causou enorme surpresa e regozijo entre os Colmealenses, especialmente naqueles que labutavam e viviam fora da sua aldeia.
Realçamos a coragem que teve agora Lisete de Matos em "se meter" a fazer este trabalho árduo de pesquisa, que face às condições de que dispõe no Açor, de tremenda dificuldade, se empenhou como se um Cabo das Tormentas enfrentasse.
Como refere "Preservar a memória individual e coletiva nunca será de mais" pelo que todos nós lhe devemos estar gratos e reconhecidos.
Bem haja Lisete.

Anónimo disse...

"O Colmeal" é uma preciosa fonte de informação para conhecer/recordar e compreender aquela época.
Muito obrigada, Lisete, por mais este excelente trabalho de investigação e divulgação.
Deonilde Almeida

Anónimo disse...

O meu pai foi assinante d'O Colmeal e colecionou todos os números. Quase sempre que regresso ao Colmeal, revejo, com muito interesse e , por vezes, com alguma nostalgia, algum exemplar.
Grato pelo seu trabalho e pela partilha.

Rui Ferreira