22 abril 2020

BELEZAS E RIQUEZAS DA SERRA: A TRADIÇÃO DOS MASTROS EM HONRA DE S. SEBASTIÃO.


A Páscoa é a festividade mais importante das religiões cristãs, especialmente da católica, por celebrar a Ressurreição de Cristo, e consequentemente, a vitória da vida sobre a morte na cruz, por amor aos outros e para sua plenitude e salvação. Os outros - princípio fundador do Cristianismo - sem os quais a ligação a Deus não se faz, dizia D. Manuel Clemente em entrevista à RTP. 

Este ano, porém, tivemos uma Páscoa muito diferente, como diferente é a vida na multiplicidade das suas dimensões, por força do distanciamento a que nos obriga o poder imenso de um vírus ínfimo. Não obstante as perdas e o sofrimento, uma Páscoa repleta de inovação, entrega, generosidade e solidariedade. 

Na ausência de solenidades comunitárias, os rituais tiveram de se reinventar e os atos litúrgicos realizados sem a presença física dos crentes chegaram-lhes através de órgãos de comunicação social e plataformas digitais. As mesmas ferramentas que algumas famílias usaram para conviver, matar saudades e abraçar 



Deste modo, vimos: sacerdotes, como o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente ou o bispo do Porto, D. Manuel Linda, a celebrarem sem fiéis, carregando sobre os ombros o pesar e a solidão do mundo, qual Papa Francisco a atravessar frágil e depois a rezar na Praça de S. Pedro vazia; os mesmos cardeal e bispo, o primeiro a abençoar a população e a cidade da porta da Sé, o segundo a fazê-lo da Ponte D. Luís; sacerdotes que celebraram em igrejas cheias com fotografias de paroquianos, párocos e leigos que cumpriram a visita pascal (boas-festas, compasso …), transportando pelas ruas a cruz nos braços ou em carros; fiéis, caso do José Álvaro que fez chegar a boa nova por mensagem, com votos de santa Páscoa da equipa que costuma fazer a visita. 

Este é o dia que o Senhor fez 

Cantemos e exultemos de alegria. 

Aleluia, Aleluia, Aleluia! 


Uma manifestação concomitante com a Páscoa, foi o aparecimento de cruzes enfeitadas com louro, alecrim e fitas coloridas, nas entradas/saídas de povoações. Sem ter nada a ver com a sugestão de os cristãos assinalarem a Ressurreição e a alegria pascal com cruzes à porta: a sugestão remetia para cruzes sóbrias, místicas e familiares, as das terras adejavam exuberância, coletividade e tradição. 



Por ter sido objeto de notícia, pôs-se a hipótese de as cruzes serem uma réplica do Crucifixo milagroso que encimava a Praça de S. Pedro, no tal dia (27 de março) em que o Papa aí orou sozinho [1]. Nessa muito tocante celebração, o Santo Padre agradeceu a todos os que generosa e abnegadamente combatem a pandemia nas várias frentes que têm permitido à maioria sobreviver [2]


Nada disso. Não havia semelhança entre o crucifixo romano e as cruzes que acolhem vigilantes à entrada de povoações. Tratava-se, afinal, de mastros erguidos em honra de S. Sebastião, visando pedir a sua intercessão para combater a doença que tanto sofrimento tem infligido e vidas ceifado. E está para infligir, por razões sanitárias e de impacto social e económico. 

Como sabemos, S. Sebastião - o padroeiro da antiga freguesia de Colmeal, hoje parte da União de Freguesias de Cadafaz e Colmeal - é o santo protetor da fome, da guerra, da peste e das doenças contagiosas, em geral. São estes atributos que justificam o Bodo, em cumprimento da promessa feita ao santo para salvar as gentes da peste que as dizimava. A tradição terá começado em Roma, no século VII, quando os seus restos mortais foram levados para a cidade e fizeram desaparecer o mal. Já no século XVI, por sua intercessão, fala-se de curas generalizadas em Milão (1575), Lisboa (1599) e um pouco por toda a parte, uma vez que o Bodo continua a ter lugar entre nós, como em muitas outras localidades e regiões do país. 


Os mastros em honra do santo devem datar da mesma época, embora não se tenha localizado a origem da tradição em Portugal. No Brasil, onde os respetivos rituais conhecem uma grande adesão, data do século XVI, estando associada a um surto de varíola levado da Europa. (https://www.novanews.com.br/noticias/geral/). 

Conforme informação dos senhores Maria Alice Braz e Carlos Alves, da Sandinha, os mastros têm de ser em número impar e cada pessoa da localidade deverá contribuir com uma das fitas que adornam e animam a cruz. Dir-se-ia que simbolicamente a lembrar ao mártir os devotos por quem interceder. 

Tudo aponta no sentido de a tradição dos mastros corresponder à cristianização de um ancestral ritual pagão de fertilidade. Tal como verifica-se com as cruzes que eram/são afixadas a 3 de maio, dia de Santa Cruz, para proteger dos males e assegurar a fecundidade dos campos e animais. Não raro, o sagrado e o profano a interpenetram-se, por motivos históricos e outros. Na Sandinha, os mastros são cinco, no Açor um, colocado por iniciativa Maria Elsa e do Fernando. Solidariamente, a pedir a intervenção de S. Sebastião a favor de todos. 



Infelizmente pelas piores razões, a tradição também se reinventou, resgatando os mastros em honra de S. Sebastião do esquecimento em que tinham mergulhado, no quadro da fantástica evolução civilizacional da humanidade, apesar de as vulnerabilidades que explicam a atual conjuntura sanitária e social. Os últimos de que há memória remontam aos finais dos anos cinquenta do século passado, prendendo-se com a peste suína africana. Integrando o património cultural imaterial, são uma expressão da piedade e devoção com que alguns segmentos das populações enfrentam os limites humanos, o desconhecido e o transcendente. 

Finalmente, depois deste errático discurso sobre religiosidade e tradição, em que a cruz esteve sempre presente, na semana da pascoela, resta sublinhar a importância da mesma para os crentes, enquanto objeto de culto, símbolo de Ressurreição, Cristianismo e vida. 

Votos de muita saúde, coragem e esperança. 

Lisete de Matos 

Açor, Colmeal, 18 de abril de 2020. 

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[1] O referido crucifixo em madeira tornou-se objeto de devoção quando, em 1519, foi a única peça a resistir a um incêndio que destruiu a igreja de São Marcelo Al Corso. Poucos anos mais tarde, a mesma imagem terá extinguido a peste que grassava, depois de transportada em procissão por toda a cidade de Roma durante dezasseis dias. (https://pt.aleteia.org/2020/03/19/a-historia-do-crucifixo-milagroso-que-salvou-roma-da-peste/). 

[2] Na mesma altura, reiterou que ninguém se salva sozinho e que temos de aprender a distinguir o essencial do supérfluo, acrescentando: Deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente …


4 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado pelas palavras e imagens que partilhou, Dra. Lisete!
Foi certamente uma Páscoa que não esqueceremos, mas a esperança da Ressurreição dá-nos força para não perder a confiança.
Bom tempo pascal!

Rui Ferreira

António Santos disse...

Foi, no dizer de Lisete de Matos, uma Páscoa repleta de inovação, entrega, generosidade e solidariedade.
Face às medidas de confinamento, foi uma Páscoa diferente. Mas as distâncias que nos separaram fizeram com que mais nos aproximássemos.
Muito interessante o reaparecimento dos mastros em honra de S. Sebastião.
Muito generosa mais esta partilha de Lisete de Matos.
OBRIGADO.

Anónimo disse...

Ainda que efémeras, as notícias persistem com os suportes que as veicularam! Para que conste fazendo memória, permito-me, pois, acrescentar uma referência aos mastros a S. Sebastião que, entretanto, foram erguidos no Soito, Colmeal. Uma iniciativa da D. Idalina Duarte, com o apoio do Fernando. Bem bonitos, com as suas fitas garridas a exigirem a elevação do olhar, e a pedirem a proteção do mártir contra a covid-19 e as restantes pestes de que foi portadora! Também a invocar fé e esperança.

Lisete de Matos

Anónimo disse...

Muito curiosa esta tradição! Não conhecia. Que seja renovada em cada ano, porque é linda e alimenta a alma colectiva, com solidariedade e esperança.
Muito obrigada, Drª Lisete, pela forma como nos enriquece em cada tema que partilha connosco.

Deonilde Almeida