Aproximava-se a primavera
e, com ela, o tempo das caminhadas e passeios a pé. Caminhadas e passeios cujo
sentido depende de quem caminha e de os objetivos com que o faz. Caminhar por
gosto ou desgosto, evasão ou reencontro, razões de saúde ou convívio. Caminhar
na natureza e por amor à natureza, desfrutando da beleza sempre diferente, da
presença e ausência, do visível e invisível que ela nos proporciona. Ausente e invisível
visíveis em sinais, marcas eloquentes não raro efémeras de realidades conhecidas
ou desconhecidas!
São alguns desses
sinais que tinha a intenção de partilhar. Depois, a normalidade desvaneceu-se, a
devastação e a aflição instalaram-se, a ideia perdeu-se. Até pensar que, no contexto
individual e coletivo de sofrimento, risco e vida suspensa em que nos
encontramos, caminhar apenas virtualmente é um mal menor. É mesmo um privilégio
que as tecnologias nos permitem. Acresce que rever os sítios onde enraizamos poderá
ser uma forma de mitigar a saudade que temos deles e uns dos outros. E assim retomei
os ditos sinais, também como contributo para estarmos juntos e virmos a casa
ficando em casa. Na esperança inerente ao slogan
“haverá tempo para voltar a desfrutar”. Entretanto, a primavera desabrocha
colorida e melodiosa, os caminhos aguardam passos leves que os despertem, o
espírito dos lugares permanece inspirador!
Como habitualmente, os
sinais e vestígios a que aludo resultam da minha própria observação e alguns
nem os sei interpretar. Mas alguém saberá e quererá partilhar esse saber, porque
amar e preservar implicam conhecer.
Trata-se de observações
não exaustivas sobre dois campos: um relativo às transformações que o homem – o
atual e os nossos antepassados – impôs à natureza para dela sobreviver, na
interdependência nem sempre harmoniosa da existência partilhada; outro
relacionado com algumas espécies da nossa fauna.
As primeiras são
transformações que continuam a humanizar a paisagem e a imbuir os sítios de
memória, testemunhando o engenho e a tenacidade das pessoas, a sua história e os
seus modos de vida. Juntamente com as atividades e práticas - usando
ferramentas simples no passado e sofisticadas no presente -, estas estruturas integram
todo um notável sistema de subsistência trabalhosa. Através delas, podemos
sentir a presença dos que ao longo do tempo povoaram os lugares por onde
passamos.
Quanto à fauna, o que
procuro é mostrar alguns indícios da passagem recente ou da presença invisível
de animais que dificilmente deixam ver-se. Só por descuido o fazem e
apressam-se a desaparecer! São poucas as situações, mas quem dá o que tem …!
A maior parte das
observações foi feita antes de o incêndio de 15 e 16 de outubro de 2017. Do
património construído que ardeu restam as ruinas, para já, a natureza e a
biodiversidade ainda não recuperaram totalmente. Nestas circunstâncias, falar
delas no presente através dos registos, é um modo de exorcizar a ocorrência e de
convocar o futuro. É acreditar e agir em conformidade com a renovação
sustentável da vida na serra. Agora, com a necessária e rápida renovação da vida
no país e no mundo. É exigir que a profecia (Robert K. Merton) se cumpra por si
própria, como costuma acontecer nos planos social e económico. Solidários, somos
um só, o homem, os homens, as mulheres e a natureza, na multiplicidade das suas
valências. E, se semear é uma opção, colher o que se semeou (ou não) é
incontornável.
Santa Páscoa, votos de
muita saúde.
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 4 de
abril de 2020
2 comentários:
“A primavera desabrocha colorida e melodiosa, os caminhos aguardam passos leves que os despertem” assim se refere a autora. A caminhada anual da União prevista para 2 de Maio teve que ser cancelada pelos motivos óbvios que a todos condicionam. “Caminhar na natureza e por amor à natureza”, perceber que há o antes e o depois de 15 e 16 de Outubro de 2017, apreciar as serras moldando a paisagem que guarda vestígios da acção do homem, do regionalismo, as veredas rasgadas muitas das vezes pelos pés descalços e calejados, as estradas, os estradões que tanto a desfeiam, as eólicas quais Dons Quixotes girando à procura das suas Dulcineias, os cômbaros, os currais e os palheiros ou o que deles ainda resta. Colmeias, que nos permitem recordar o antigo, tão estranho para os mais novos, habituados já às novas construções geométricas e práticas do estilo nórdico. Os poços (alguns perigosos por não terem qualquer protecção), as mós encostadas já sem préstimo mas que recordam o seu trabalho, rodando na sua melodia de uma nota só, transformando o grão em farinha, as pontes que encurtaram distâncias, as escadas feitas com as engenharias de quem delas precisava, os pontões de pedra ou de madeira, trabalhos hercúleos feitos por mãos duras e inconformadas. “Proibido vazar lixo”, um aviso de difícil compreensão pelo que de contrário se verifica. Os nossos avós, sem avisos e sem instrução eram mais respeitadores do ambiente e da natureza. As alminhas, os marcos, a caça furtiva. Muito curiosa a parte do texto dedicada à fauna que os fogos quase dizimaram e que muito lenta e dificilmente vai dando ténues sinais de retorno. Cara Lisete de Matos um OBRIGADO GRANDE nunca chegará para lhe agradecer.
Diz algures, no seu texto, que "só se ama o que se conhece".
O seu conhecimento dos lugares, dos caminhos, das pedras, das plantas, dos animais, das práticas, das crenças e temores antigos... tanto saber que aqui tem divulgado, partilhando connosco todo esse património temperado de afectos, vai-nos permitindo conhecer melhor esse chão que alimentou os nossos antepassados e isso faz-nos tão bem à alma!
Bem-haja, Lisete!
Deonilde Almeida
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