30 julho 2012

UMA BÊNÇÃO



Noventa e cinco anos. A fragilidade e os achaques próprios da idade e das marcas deixadas pelo tempo. Para trás, uma vida de abnegação e sacrifício, visando a felicidade e o bem-estar da família. Filho, marido e pai extremoso; primo, parente e amigo dedicado; cidadão responsável e exemplar; trabalhador precoce, esforçado e competente. Uma vida pautada por valores estruturantes e indeléveis, como a honestidade, a verdade, a lealdade, a solidariedade, a modéstia, a perseverança, o profissionalismo, o respeito pelos outros …

Levanta-se cedo e arranja-se, teimosamente evitando deixar-se vencer pela resistência dos botões à casa ou de um pé à bota. Com humor costuma dizer que “ou os botões ficaram grandes ou as casas pequenas”, com engenho, calça a bota com um alicate.

Prepara o pequeno-almoço, deslocando-se com a chávena na mão até ao microondas e o inverso. Faz o mesmo com a tigela da sopa ou uma chávena de café.

Cozinha, privilegiando os cozidos e grelhados, e usando o relógio para controlar os tempos de cozedura. Uma vez por semana, faz sopa, que distribui por doses e congela, para ir comendo ao jantar. Dia sim, dia não, cozinha para os cães enormes panelas de comida. Lava a loiça, limpa a casa. Muda a cama, e põe a roupa a lavar, recorrendo mais uma vez ao alicate para domar a rijeza do manípulo dos programas. 


Evitando as subidas, que já lhe custam, faz caminhadas matinais e vespertinas, seguido pelos cães amigos fiéis. 



Recentemente, cavou um pequeno terreno para horta, puxando com o ancinho a terra para cima, a fim de contrariar os efeitos da erosão sobre o solo inclinado. Seguidamente, enregou-o, ao mesmo tempo que ensinava à filha a melhor forma de dispor as alfaces. Ontem, fez uma estrutura de paus para amparar uns brincos-de-princesa floridos, hoje cortou, serrando encavalitado sobre a escada, as pernadas inúteis de uma macieira que transformou em lenha. De modo a potenciar o esforço, para além do machado, utilizou uma cunha e duas marretas. Quanta determinação!





Recentemente também, libertou as videiras das folhas em excesso e dos rebentos ladrões. Nada se devendo perder, foi-os recolhendo no saco grande que transportava consigo, como petisco para as cabras gulosas de uma vizinha! 

Antecipando e preparando o futuro, mantém limpas as estremas e visíveis os marcos das propriedades, tendo mandado fazer o respetivo levantamento por GPS, logo que o sistema começou a ser utilizado. 


Já não faz móveis, tripeças e outras peças de artesanato, mas as muitas que produziu testemunham a arte e o talento com que transformava materiais e velhos utensílios em novos, criando obras que espantam e encantam pela forma e funcionalidade.

Já não constrói paredes, mas elas abundam por aí, austeras e resistentes como ele, a falar da sensibilidade e do gosto com que as erguia, combinando e assentando com jeito as pedras desajeitadas que havia. “Deste lado andávamos eu por dentro e o “ti” Francisco por fora, daquele, o teu tio António e o “ti” João …. A pedra veio de perto da Fonte do Açor … Às costas, claro!, dizia há dias, observando as paredes airosas de uma casa!

Em matéria de reparações, muitas são as circunstâncias que lembram a diversidade dos saberes e competências que possui, fazendo sentir a falta da prontidão com que resolvia, não raro inovando, as situações que se lhe deparavam. Mas ainda há dias estava sobre um escadote, a mudar um cabo do televisor.

Munido de uma lista previamente elaborada, faz as compras na proporção provável de um terço para si próprio e dois para os cães. Felizardos!

Usa as caixas ATM e o cartão multibanco para fazer operações bancárias correntes, confere as faturas e, no caso da água e luz, confronta os consumos cobrados com os que constam dos contadores. Preenche a declaração de IRS - que não paga -, e entrega-a na Repartição de Finanças mais próxima. 

Colhe ramos de rosas ou deixa-as a enfeitar a roseira, de acordo com a preferência da filha a quem se trata de as oferecer. Gosta de roseiras e cameleiras. Fica contente com os pássaros ou outros bichos que vê, impedindo a cadela de os perseguir, e chamando a filha para os ver. “Olha, queres ver uma cobra muito bonita?” “Não tenho visto as perdizes. Se calhar, já se deixaram apanhar”. Comove-se e chora com facilidade, grande homem que é!

Lembra-se dos aniversários das filhas, genros e netos, de alguns dos bisnetos também. Dos trinetos, que estão agora a chegar, logo se verá! 

Estóico, raramente se queixa, dizendo frequentemente que não está doente, quando é evidente que algum sofrimento o aflige.

Autónomo, faz a gestão do seu quotidiano com invejável lucidez e discernimento, lembrando-se da maior parte dos assuntos de cabeça, embora use uma agenda para fazer anotações e registar compromissos. 

Guarda memória de um número infindável de situações e acontecimentos, mas só fala deles se vêm a propósito. Raramente conta a mesma história, não lhe acrescentando pontos quando o faz. 


Inteligente, procura manter-se informado, apesar das dificuldades de visão, que as letras miudinhas dos jornais agravam, e das dificuldades de audição, que muitos locutores e interlocutores ignoram. 

Preocupa-se com o futuro, estranha mas aceita a mudança, sofre com ela sempre que se traduz em desrespeito pelos outros ou pelos valores e princípios que o norteiam na vida. 

Grandeza e completude, experiência e sabedoria, vida sentida e com sentido, dignidade e generosidade, compreensão e aceitação, amor incomensurável … É o nosso pai, sogro, avô, bisavô e trisavô Jaime, e nós amamo-lo muito. Um exemplo de longevidade ativa! Uma bênção!

Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 17 de Julho de 2012.

Texto lido pelos netos e bisnetos presentes na festa dos 95 anos de Jaime Martins de Almeida

3 comentários:

António Santos disse...

Curvo-me perante o GRANDE HOMEM que é Jaime Martins de Almeida e felicito-o pela sua sempre presente juventude.
Um exemplo, um enorme exemplo a ser seguido pelos mais novos.
Venham os 96!!!
Um grande abraço.

Anónimo disse...

Muitos Parabéns ao Sr. Jaime e muitos anos de vida, com saúde e amor!
Felicidades e Cumprimentos!
Família Domingos - Colmeal

Anónimo disse...

É realmente uma benção ter um pai assim, mas é também uma benção ter uma filha digna deste pai.
Pedro e Idalina Freire.
6/8/2012.