23 janeiro 2011

PARA A REINVENÇÃO DA FABRICAÇÃO DO AZEITE

. Referi-me em tempos à fabricação do azeite na serra [1], salientando os aspectos que fazem dela um exercício físico extremamente salutar e, ao mesmo tempo, uma manifestação da cultura de esforço e poupança que caracterizava as populações que viviam da agricultura de subsistência. Passados cinco anos, com os mesmos objectivos de valorização, visibilidade e registo, volto ao assunto para dizer que as práticas que então descrevia se mantêm actuais, mas que são de assinalar diferenças significativas.
1. Um apego redobrado Em terras como Ádela e Açor, na freguesia do Colmeal, a azeitona continua a ser apanhada. É pouca, apesar de as oliveiras ocuparem hoje os terrenos bravios de sempre e os de cultivo, que há muito deixaram de dar milho. Mas poucos são também os que desprezam a dádiva singela da natureza, que o trabalho do homem transforma em ouro líquido requintado! Retomando a reflexão que fazia há anos, persiste o mistério do apego, aparentemente redobrado, destas populações à fabricação do azeite, quando o produto abunda no mercado numa relação qualidade-preço aceitável. Terão razão os que atribuem esse apego à progressiva degradação das condições económicas das famílias? Os que avançam fundamentos de ordem cultural e simbólica, que enraízam nas lendas e mitos da antiguidade longínqua e na tradição bíblica mais recente, onde o azeite simboliza a presença de Deus? Devido à escassez e ao envelhecimento da população, a azeitona é apanhada essencialmente pelos mais idosos e aposentados. Mas também por activos empregados, com residência permanente ou ocasional, continuando a tarefa a suscitar estratégias familiares muito curiosas. Para o efeito, uns guardam dias de férias, outros conseguem folgas expeditas, outros, ainda, comparecem nos fins-de-semana e feriados, deslocando-se de Lisboa, indiferentes ao agravamento dos custos de produção que as viagens representam. Importa, isso sim, participar no projecto comum de ter azeite “de seu”, as famílias de repente, e transitoriamente, de novo transformadas em unidades de produção. Unidades que até reproduzem os conflitos próprios das diferenças geracionais, os mais velhos querendo as coisas feitas à sua maneira, os mais novos ignorando a experiência e fazendo à sua!
2.Entreajuda e versatilidade Mas todos a quererem proteger os outros, reservando para si as tarefas mais difíceis. - Esse poiso é muito alto, eu arrumo lá escada! - Deixa lá ficar a azeitona, que os pássaros também precisam. - Deixo agora! Umas azeitoninhas tão lindas …! - Vamos embora, que está a nevar! Com as mãos engatinhadas ainda pode cair … - Eu levo esse saco, que está muito pesado...
E, sozinhos, o avô nonagenário e os netos erguiam do chão sacos bojudos de azeitona, que os homens levavam sobre os ombros, como deve ser (!), e a mulher, estendidos pelas costas abaixo, num abraço tímido que ameaçava desfazer-se pelo caminho. Uma admiração! “Sai, vai descansar que eu escolho … - “Não, vai tu …”
E sempre assim! Um desassossego e um espanto: o trabalho em si próprio, o espírito de entreajuda e a versatilidade dos protagonistas, que tanto apanham azeitona como exercem ou exerceram profissões de grande exigência e responsabilidade. Em sintonia com a observação do sociólogo António Firmino da Costa, quando destacava a naturalidade com que as populações migrantes serranas desempenham coerentemente distintos papéis urbanos e rurais. [2] Tempos Cruzados, diria Augusto Santos Silva, um outro sociólogo agora político [3]. Será que a dupla identidade persiste, e que as novas gerações vão continuar a fazer azeite, quando a iniciativa depender delas, envolvendo cuidar as árvores? - Oiço apupar. Alguém precisa de ajuda … - Não, é do lado dos Cepos. Devem andar à azeitona em sítios diferentes, e é para saberem uns dos outros … - E a água sempre a cantarolar no barroco … - É, parece uma sinfonia! Já podia descansar e nós também! 3. Continuidade e mudança Comparativamente com 2004, a apanha da azeitona como que se profissionalizou, dentro dos limites impostos pela inclinação do solo, o porte gigantesco da maior parte das oliveiras e o seu reduzido número. A acompanhar a progressiva falta de agilidade dos apanhadores, as antigas escadas em madeira, autênticas obras-primas do artesanato local, praticamente foram substituídas por escadas em alumínio. Estas apresentam a vantagem de serem mais leves, e de terem os bansos (degraus) mais juntos, o que as torna mais fáceis de trepar por gente de perna curta! Também magoam menos os pés, por terem os referidos bansos mais espessos. Até a dificuldade de as espetar no chão, para maior segurança, foi resolvida, acrescentando-lhes uns pés bicudos, primeiro mandados fazer em Folques, depois comprados no mercado, onde passaram a estar disponíveis.
Também os ganchos, que servem para puxar as pernadas distantes, já são metálicos, depois de idealizado um modelo que o ferreiro executou.
Ainda se apanha azeitona para o cesto, colhendo a fruta miudinha com a mão, que vai e vem entre a rama da árvore e o recipiente, mas o respigar tornou-se frequente, utilizando os dedos ou gadanhos. Estes podem ser em metal ou plástico, mas os primeiros são preferíveis, por serem menos invasivos, contrariamente ao que se possa pensar.
Quem experimenta respigar já não quer outra coisa, uma vez que o procedimento torna o trabalho muito mais rápido. Claro, desde que se tenha o cuidado de fazer bem a cama onde a azeitona vai cair, o que não é fácil, devido à inclinação do terreno e ao vento que sopra, por vezes. Por essa razão, os apanhadores fazem-se acompanhar de um enxoval enorme, constituído por uma mistura de panos velhos reaproveitados (um antigo lençol em estopa, por exemplo) e de toldos sintéticos expressamente comprados para o efeito. Quando chegam aos sítios, parecendo bandos de feirantes clandestinos, até os pássaros fogem assustados, e admirados, com a concorrência desleal! Nada acontecendo por acaso, o material sintético, cuja aquisição propositada pode ser vista como um investimento, visa tornar o “patchwork” amovível mais leve, mas o algodão, mais pesado, continua a ser útil para lhe conferir estabilidade, e obviar à tal irrequietude do vento. De inovação em inovação, ainda nos vamos ver a usar uma daquelas máquinas eléctricas portáteis que varejam a azeitona e, consequentemente, uns toldos especiais que fecham à volta da oliveira! Um luxo!
Uma outra modernidade recentemente introduzida na apanha da azeitona é a utilização de luvas por parte dos mais “fiscosos”. São uns utensílios preciosos, que mantêm as mãos limpas e livres de arranhões, mas que lhes retiram a desejável sensibilidade de pianista. Contribuem, juntamente com os ganchos e a falta de jeito dos apanhadores, para a perda de pernadas, ramitos e olhos que dariam azeite no próximo ano! Um exagero de perdas, considerou o pai, quando iniciou a poda das oliveiras; uma estragação, diria o avô! Como diria das azeitonas que ficaram na árvore e do rebusco que não se fez! No tempo dele, a sustentabilidade era indissociável da colheita. Escolhemos a azeitona à máquina, mas é sempre preciso retirar à mão umas tantas folhitas teimosas. Precedida de um cálice de ginjinha para aquecer, é a última tarefa colectiva do dia, com uns a despejarem a azeitona na cuba, e outros a retirarem as tais folhas renitentes. Apesar da máquina e da luz eléctrica, escolher azeitona continua a ser um trabalho desagradável. Imagine-se como seria escolhê-la manualmente, horas a fio, pela noite fria dentro, à luz da candeia ou do candeeiro a petróleo. Não raro depois de as mesmas pessoas a terem carregado de longe, pelas veredas pedregosas e compridas da serra. Quanta mudança e quanta mais para fazer!
Cinco anos volvidos, os “ais” “uis”e “upas”, que acompanham o esforço físico e intelectual que a actividade exige, tornaram-se mais intensos e frequentes, as mentes rejuvenesceram, os corpos ganharam leveza, mas já não recuperaram a elegância de outros tempos. Pena! 4. O azeite, produto único a preservar Por falta de transporte adequado, e para salvaguardar a frescura da azeitona, alguns produtores vão ao lagar várias vezes, frequentemente utilizando mais do que uma viatura. Acrescendo aos elevados custos do trabalho e à poia paga no lagar, estas deslocações concorrem para tornar o azeite serrano, produto biológico único em aroma e sabor, num bem sem preço.
Recorreu-se, uma vez mais, ao Lagar de Espariz, que fica a 30 km de distância. Concretizada a redução de pessoal que já se fazia adivinhar [4], o lagar funciona hoje apenas com uma ou duas pessoas. Talvez por isso, ou porque continua a ser raro ver por ali mulheres sozinhas, houve sempre alguém que se prontificou para nos ajudar, nas três vezes que por ali passámos. Muito bonita e comovente esta solidariedade! Sem prejuízo da qualidade do atendimento de que fomos alvo, continua a sentir-se a falta da serenidade sábia do antigo lagareiro senhor Fernando, que a senhora agora de serviço lembra muito.
O lagar de Espariz é um equipamento à dimensão humana, como imagino que sejam o de Vila Nova do Ceira e os outros que também recebem punhados de azeitona. Este ano, que a produção foi escassa nas zonas ribeirinhas do Alva e do Mondego, no início da safra, a média de azeitona por cliente atendido era de 150 kg. Para o confirmar, lá estavam as tais tabuinhas a que há uns anos chamei de bilhete de identidade da azeitona.
Contrariando a racionalidade económica dominante, estas pequenas produções assumem particular relevância, assim como a disponibilidade dos empresários lagareiros para pesarem a azeitona à entrada, e dividirem o azeite no final dos ciclos de produção partilhados. A fabricação do azeite, para auto consumo ou comercialização, é um contributo para a economia doméstica das famílias. Mas configura-se, também, como valorização do recurso que são as oliveiras, e dado para a preservação da biodiversidade e da paisagem serranas, elas próprias um recurso a potenciar. Quanto aos lagares, que são um investimento caro de retorno lento devido ao funcionamento sazonal, volto à sugestão de há anos. Sendo a sua existência e proximidade uma condição para a continuidade da fabricação do azeite, porque não considerar esse serviço público, fazendo prevalecer uma lógica de economia social e solidária? Neste registo, porque não reactivar, dotando-os de tecnologia moderna, alguns dos lagares que fecharam na última década, quando ainda prestavam um bom serviço às comunidades? No desconhecimento do futuro, mas na esperança dele, valorizar e preservar o que temos é um imperativo do respeito e da solidariedade para com os vindouros. Lisete de Matos Açor, Colmeal, 11 de Janeiro de 2011
[1] “A Fabricação do Azeite. Persistência e Mudança”. IN: Jornal de Arganil, de 9 de Dez. 2004; A Comarca de Arganil, de 11 de Jan. 2005.
[2] António Firmino da Costa, Sociedade de Bairro: Dinâmicas Sociais e Identidade Cultural, Oeiras, Celta Editora, 1999, p. 304. [3] Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados. Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994.
[4] “Entreajuda no Lagar”. In: Jornal de Arganil, 4 de Jan. de 2007, A Comarca de Arganil, 9 Jan. de 2007.

2 comentários:

Anónimo disse...

parabens e obrigado pelo excelente trabalho
AA

Anónimo disse...

É um privilégio poder partilhar dos seus textos.
Obrigado.
Arménio Neves - Cepos