Francisco Domingos, “O Mouraria”
Estamos em 1910. Em abril, nasce
no Colmeal o terceiro filho de Benjamim Domingos e de Maria Olinda. Será batizado com o nome de Francisco[1].
Estava-se ainda em monarquia e,
por essa altura, as grandes cidades, sobretudo Lisboa, capital do reino, vivem
dias agitados, de revolta iminente. Dois anos antes, em 1908, o rei D. Carlos e
o príncipe herdeiro do trono, D. Luis Filipe, tinham sido assassinados – o
governo de ditadura de João Franco, com o apoio régio, tinha reforçado a
consciência popular de que era preciso mudar. E mudou!
Lá para o final do ano, a 5 de
outubro de 1910, as forças republicanas vencem finalmente os que se mantêm
fiéis ao jovem rei, D. Manuel II, que parte para o exílio. Em Lisboa, é
anunciado à população o fim da monarquia e a implantação de um novo regime – a República
– recebida com grande euforia e expectativa de mudança[2].
…Que
a Lei passaria a ser igual para todos; que a República não admitia privilégios
de nascimento nem foros de nobreza; que cada um poderia praticar livremente a
sua religião; que o ensino primário passaria a ser obrigatório e gratuito; que
as pessoas poderiam reunir-se ou organizar-se livremente em Associações e
expressar a sua opinião; que os cidadãos não poderiam ser sujeitos a castigos
físicos e humilhantes; que ninguém poderia ser preso sem culpa formada… e tantos
mais!
O poder, deixaria de ser transmitido
de pais para filhos! Com este novo
regime, os governantes seriam escolhidos pelos eleitores, através do voto. Eram
tantas as expectativas… Agora, a Nação poderia desenvolver-se!
Entretanto, o Colmeal, no seu
isolamento e distância, segue ao ritmo das sementeiras e das colheitas, numa
economia pobre, de subsistência, ano após ano… – ali não se esperava
desenvolvimento, ali não havia futuro!
Sair… para Lisboa ou para o
estrangeiro, era o sonho daqueles que se recusavam a perpetuar uma luta
inglória, que já tinha sido a de seus pais e avós.
Sair… e procurar longe o que lhes
negava a terra onde nasceram e onde queriam descansar na velhice.
Sair… em busca de um futuro
melhor, para os seus filhos.
No verão de 1916, saíram muitos
rapazes, mas não como sonhavam. Foram
mobilizados para o Serviço Militar Obrigatório – Portugal entrava na 1ª Grande
Guerra. Perante as senhas de racionamento de alimentos e outros bens de
primeira necessidade, esfumou-se o sonho de progresso. Os tempos eram de
pesadelo, não de sonho.
Francisco Domingos, por essa
altura, era ainda criança, quase em idade escolar. No Colmeal frequentou a
escola primária. Terá tido o privilégio de ter, como professor, António Joaquim
das Neves, colmealense que, no final da carreira, foi homenageado pelos seus
alunos de Sintra? Era um homem de sólidos valores humanistas e republicano
convicto, cujo caráter decerto inspirou os seus alunos [4].
Fernando Costa diz que Francisco
“foi para a capital ainda moço”[5].
Que sonho teria, quando partiu ainda jovem para Lisboa?
Acolhido em casa de conterrâneos, viveu na Rua João do Outeiro. Depois, na Rua do Capelão, aqui sob a asa protetora da sua tia Maria Inocência, “Mulher da Fava-Rica”[6]. Era uma família alargada, como era hábito na época, entre a comunidade migrante de colmealenses – sob o mesmo teto, viviam várias gerações e ramos familiares. Passado algum tempo, mudaram para um 3º andar da Rua do Benformoso. Sempre no bairro popular lisboeta que lhe daria a alcunha – Francisco Domingos «O Mouraria».Em 1931, era já numerosa “A colónia colmealense em Lisboa”, referida no artigo publicado n’A Comarca de Arganil, em Agosto desse ano.
Fonte de imagem: Arquivo da UPFC
Nunca é demais recordar que, ao
empenho destes homens, “se ficaram a dever as estradas por onde circulamos, a
água que consumimos, os lavadouros que tanto facilitaram a vida às mulheres, a
eletricidade, o telefone e muitas pontes e pontões que encurtavam distâncias e
aproximavam as pessoas”, como refere Lisete Matos[8]
Francisco Domingos, com 21 anos,
foi um dos seus fundadores. Porém quando, um ano depois, em 1932, “A
Comarca de Arganil” noticiava que a UPFC comemorava o seu 1º aniversário e os
membros dos corpos gerentes e sócios que participaram no almoço comemorativo,
são solenemente fotografados, para a posteridade, Francisco Domingos não está
presente. Andaria o seu espírito ocupado já com outras lutas?
Fonte de imagem: Arquivo da UPFC |
Viviam-se, de novo, tempos muito conturbados. O Golpe de Estado de 1926 pusera fim à 1ª República. Salazar chegara ao poder e governava em regime de ditadura. Novamente a ditadura!
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Deixou de haver liberdade de expressão do pensamento. Todas as
publicações passaram a ser inspecionadas pela Censura e, qualquer notícia que,
apesar de verdadeira, pudesse dar uma imagem menos elogiosa do país ou do
governo, era riscada e proibida a sua publicação. O seu autor, corria ainda
sério risco de passar a ser vigiado pela Polícia Política. Todas as publicações
tinham de exibir a menção de terem sido aprovadas por aquela Comissão.
É que, recorda Fernando Costa, “As ditaduras de esquerda ou
de direita têm sempre algo em comum: eliminam as liberdades públicas. (…)
Igualmente não se desenvolve a cultura, pois quanto mais atrasado for um povo
mais fácil se torna dominá-lo.” [9]
A Polícia Política fomentava a
denúncia, semeando a desconfiança entre amigos, entre familiares. Uma
brincadeira, uma anedota contada em “conversa de café”, podia terminar numa
esquadra, “para averiguações”, que podiam prolongar-se por muitos meses ou
mesmo anos, sem julgamento.
As revoltas sucediam-se, com
elevado número de mortos, feridos, presos e deportados para Angola ou para uma das
prisões privativas da polícia política: Aljube e Caxias em Lisboa, os fortes de
Peniche e de Angra do Heroísmo, e, mais tarde (1936) a “Colónia Penal” do
Tarrafal, em Cabo Verde.
Assim, se era proibido publicar
opinião diferente, ou informar e esclarecer a população, a forma encontrada de
o fazer foi através de folhas soltas, impressas – os panfletos – que se
distribuíam às escondidas, clandestinamente, com grande risco para quem os
escrevia, imprimia e distribuía.
Talvez a família não soubesse que
“Francisco Domingos era, clandestinamente, distribuidor de panfletos políticos.
Estes eram escondidos no fundo falso de um banco de cozinha, já antes da sua
distribuição, já após, os que sobravam.” [10]
Mesmo que alguém soubesse, calava! Nunca se sabia quem estava à escuta…
António Domingos Santos, lembra-se
de ter ouvido, em criança, sua mãe contar que «… uma vez, entraram aqui uns
homens, gritaram para ficarmos quietos e andaram à procura de uns papeis que
achavam estar escondidos cá em casa…».
Desconhece-se quando, onde ou com
quem adquiriu consciência política. Talvez nos tempos em que foi operário na
Carris… o certo é que, em 2 de fevereiro de 1935, ainda não tinha completado os
24 anos, foi detido, pela primeira vez, pela PVDE[11].
O ano seguinte foi passado entre
a cadeia do Aljube, a Fortaleza de Peniche e novamente o Aljube. Por essa
altura, o Aljube aprimorava, com “requinte”, as condições de alojamento dos
detidos – eram os tristemente famosos “curros”, celas de solitária, praticamente
sem luz, com pouco mais de 1,20m por 2,20m. Um catre basculante servia de cama
– quando descido, não sobrava espaço –, coberto com uma serapilheira e duas
mantas.
Para esta prisão eram enviados os
detidos “sem culpa formada”, sendo entregues aos torturadores para
interrogatório, no 4º piso ou na sede da polícia política, na Rua António Maria
Cardoso, ao Chiado. E, “sem culpa formada”, não foi só gente humilde que por lá
passou. Por lá passaram homens das mais diversas profissões, alguns de nome bem-sonante
– Arlindo Vicente, (candidato à Presidência da República em 1958, que desistiu
para Humberto Delgado), o historiador Borges Coelho, o ativista católico Nuno
Teotónio Pereira, o jornalista Raul Rego, Mário Soares, o pintor Júlio Pomar…
“Ninguém pode ser preso sem
culpa formada”… garantia a Constituição aprovada na 1ª República. Nesse
tempo, em 1911, a Constituição era a Lei soberana, mas a soberania agora era de
um homem só – era o tempo de “quero, posso e mando”. Estava-se em ditadura…
A decisão superior é, no mínimo,
surpreendente: “Indeferido, por continuar em prisão preventiva”, sendo enviado
para o Forte de Caxias. Estava-se em ditadura…
(Fonte de imagem: Arquivo Nacional da Torre do Tombo)
Em outubro desse ano, foi ainda transferido para Angra do Heroísmo – outra prisão privativa da polícia política. Regressou cerca de dois anos depois, sendo então restituído à liberdade.
Fonte de imagem: António Domingos Santos |
Talvez por altura do Natal, enviou
uma fotografia ao seu primo, António Domingos Neves que, como ele, fora fundador da União. No verso da foto, uma mensagem enigmática:
Seis meses depois, em junho de
1939, era preso “para averiguações”, ficando incomunicável, tendo sido levado,
novamente, para a cadeia do Aljube. É então fotografado de frente, de lado e de
perfil, para os arquivos daquela polícia política.
Será restituído à liberdade no
mês seguinte, em 24 de julho de 1939.
(Fonte de
imagem: Arquivo Nacional da Torre do Tombo)
O tempo era de conflito. Terminara a Guerra Civil de Espanha (1936/39) mas a 2ª Grande Guerra começaria em setembro desse ano. Portugal não estava diretamente envolvido, mas a população portuguesa, sofreu grandes privações e o racionamento de bens essenciais.
Antiga mercearia de Francisco Domingos (Sobral de Monte Agraço)
Fonte de imagem: António Domingos Santos
O Sobral de Monte Agraço era
muito longe, para as estradas da época! Desse tempo, apenas se sabe que a
camioneta “da carreira”, depois de passar por Alhandra, Vila Franca de Xira e
Torres Vedras, deixava finalmente ao seu cuidado as encomendas que trazia, de
Lisboa, para as pessoas da terra.
Na zona central do Sobral de
Monte Agraço, no meio da pequena praça, um coreto sugere memórias festivas.
Mesmo ali ao lado, junto ao chafariz de que tomou o nome, um simpático e
acolhedor restaurante atende hoje a clientela, como noutro tempo o fez, no
mesmo local, Francisco Domingos. Por ali, ainda há quem se lembre dele e recorde
a sua mercearia-taberna, tão ao jeito da época.
Fica-nos uma dúvida pertinente –
a escolha daquela vila, terá sido obra do acaso?
E ainda outra – terá ele sido uma
das “personalidades sobralenses que lutaram aguerridamente por esses ideais”?
Discreto, como os tempos exigiam,
quem se lembrava dele? Em conversa, a propósito de outras pesquisas, foi-nos
referido, de passagem, pelo senhor Leonel Silveira[13],
um conterrâneo goiense, que “um irmão do ti Manuel Domingos foi um dos
que esteve preso no Aljube – estiveram lá muitos”. Assim, tal e qual, sem
referir o nome de batismo. Falávamos dos tempos difíceis que viveram os
colmealenses, nessas primeiras décadas do século XX, tanto no Colmeal como em
Lisboa. Mais tarde, soubemos da misteriosa dedicatória no verso de uma
fotografia e, recentemente, folheando um livro de Arnaldo Madureira[14],
a propósito desses “tempos difíceis”, descobrimos nova pista: entre os presos
listados, surge-nos “Francisco Domingos, O Mouraria”. Não podia ser
coincidência!
Era um colmealense. Como ele,
muitos outros, de várias origens, sacrificaram a sua juventude, a sua saúde, a
sua família, muitos a própria vida, para “lavrar o terreno” onde haveria de
germinar a semente da liberdade, que conduziu ao 25 de Abril de 1974.
No início de 1961, começou a
Guerra Colonial.
No final desse ano, a 29 de setembro,
o Boletim “O Colmeal” publicava a notícia da sua morte. Tinha 51 anos.
Deonilde Almeida
[1] Registo
Paroquial, pois o Registo Civil apenas será estabelecido por Decreto de 18 de
Fevereiro do ano seguinte.
[3] Biblioteca Nacional Digital -
Constituição política da República Portuguesa de 21 de Agosto de 1911, Coimbra,
1911 (purl.pt)
[4] António Joaquim das Neves nasceu no Colmeal, em 1861. Foi nomeado professor para o Colmeal em 1882.
[5]DANIEL, “Figuras e Factos – Francisco
Domingos”, Boletim “O Colmeal”, ano XXII, Agosto/1982, pág. 3 e 8
[6] https://upfc-colmeal-gois.blogspot.com/2020/08/fragmentos-da-historia-do-colmeal_25.html
[7] In
“Memorial” – Comemorações dos 80 anos do Regionalismo no concelho de Góis, Ed.
UPFC, 2009, p.7
[8] In
“Memorial” – Comemorações dos 80 anos do Regionalismo no concelho de Góis, Ed.
UPFC, 2009, p.5
[9]
DANIEL, “Figuras e Factos –
Francisco Domingos”, Boletim “O Colmeal”, ano XXII, Agosto/1982, pág. 3 e 8
[11]
PVDE-Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, criada em 1933 e que seria
substituída, em 1945, pela PIDE-Polícia Internacional e de Defesa do Estado.
[13] Leonel Augusto Silveira Baptista nasceu em Lisboa –
28/Fev/1942 – filho de um grande Regionalista, Afonso Baptista de Almeida e de
Albertina dos Anjos Baptista.
[14]
Madureira, Arnaldo, “SALAZAR
- TEMPOS DIFÍCEIS”,
Clube do Autor, 1ª ed, Novembro,2015, p.217
6 comentários:
Estou muito comovida. Pela história de vida, vida de Francisco Domingos e pela história de vida método de pesquisa e narração. Seguramente, um orgulho para os colmealenses, filhos como o cidadão Francisco e a professora, investigadora e escritora Deonilde. Fico à espera da próxima.
Açor, Colmeal,
Lisete de Matos
Parabéns gostei muito do artigo
Foi com grande emoção que acabei de ler, atentamente, uma das "Histórias de vida da nossa gente". Tal como o Francisco Domingos, eu vivi a ditadura, o medo dos amigos e até de familiares. Tempos difíceis que deixaram as suas marcas. E, neste momento, senti como me comoveu a primeira visita que fiz ao Museu do Aljube. Saí de lá com diversos registos que passei para o papel e publiquei no site do Aljube. Lembrei-me do dia 26 de Abril de 74 que fui para a Baixa de Lisboa comprar sandes para oferecer aos soldados. Escrevi a minha aventura, que publiquei em Memórias da Revolução.
Obrigada por este por este recorte histórico, que também ficou a fazer parte dos registos gravados na minha memória.
Os meus parabens,gostei do Artigo
recordando Francisco Domungos
É curioso como Deonilde desenvolve este excelente trabalho de investigação, a partir de um pequeno parágrafo num livro comprado por acaso, onde um nome chama a atenção por entre outros cinco.
Pesquisa extenuante. Todos sabemos que nem sempre é fácil unir as pontas quanto mais encontrá-las. Deonilde sabe onde encontrar as portas a que deve bater. E o resultado aí está. Estamos-lhe muito gratos.
Um OBRIGADO grande é muito pouco para lhe agradecer.
Gostaria de registar e agradecer a gentileza e o apoio recebidos do Museu do Aljube, na pesquisa para este artigo, nomeadamente na pessoa do Dr. Francisco Ruivo.
Deonilde Almeida
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