Espalhados, os botões reguilas faziam no chão uma mancha multicolor de feitios e cores simultaneamente iguais e diferentes. Ainda sentada no sítio de onde a caixa dos botões se deixou cair, observei que se limasse umas arestas ficaria com um coração. Boa ideia! Bem precisaria de vários!
A pensar numa pessoa doente, pouco a pouco, o coração foi tomando forma e batendo forte de afeto, pincelado de tons e sons que os sentidos viam e a memória lembrava. Enviado o coração (oh, maravilha das tecnologias!), preparava-me para devolver os botões à clausura da casa comunitária que os aperta, quando fui tomada de uma certa nostalgia. Afinal, os botões correspondiam a cerca de metade dos muitos que fui recolhendo, melhor dizendo, que a família foi abotoando, ao longo do tempo. Eram ao todo setecentos e vinte e sete, entre pequenos, médios e grandes. Maioritariamente, eram botões redondos e chatos, muito poucos, reboludos, quadrados ou enfeitados. Os brancos predominavam (276), seguidos dos cinzentos e afins (230), castanhos e afins (84), vermelhos (52, alguns novos), dourados (46) e azúis (24). Apenas seis eram amarelos, oito prateados e um verde.
Fantástico, aquele meu coração efémero de botões e afeições! E muito indiscreto do ponto de vista das lembranças, emoções e reflexões que suscitava. Apesar de os botões servirem, precisamente, para fechar e ocultar! E desabrochar, quando de rosa ou outra flor, mas esses são outros!
Desde logo, o coração era uma manifestação perfeita do classicismo e neutralidade do vestir português. Tristonho, como o parque automóvel, não obstante o gosto por estilos mais garridos, e a internacionalidade da moda e do próprio vestuário. Esta evidência resultava da desproporção entre o branco e escuro e as restantes cores, que traduziriam posturas e estados de espírito mais alegres, calorosos e otimistas.
Uma outra faceta que o coração refletia é o espírito de poupança que caraterizava as populações rurais. “Quem não aproveita o que não presta, não tem o que lhe é preciso”. Tantas vezes se ouviu esta máxima, que recolher botões continua tão compulsivo como tirar os agrafes ao papel antes de o depositar no papelão. No caso, não vá alguma máquina engasgar-se ou partir os dentes com eles, nas operações de reciclagem! Mas praticamente não guardo fechos-éclair, o que não deixa de ser curioso!
De observação em observação, já não conseguindo situar a maior parte dos botões, dei comigo a magicar sobre a sua origem. A raridade de alguns sugeria tratar-se de botões sobresselentes, a abundancia de outros, que foram cuidadosamente recuperados, quando a roupa foi inutilizada ou reciclada. Sim, porque à doada ou reutilizada não se ia retirar os botões!
Grosso modo, pelo aspeto, eram botões provenientes da mais diversa roupa feminina e masculina, muitos de fronhas, do tempo que estas os tinham. Com algumas surpresas e mistérios indecifráveis. Por exemplo, o número significativo de botões de pijama, ainda que cada um possua ou possuísse vários. Ou de botões dourados, quarenta e seis, num universo tão pequeno quanto o do meu coração! De diferentes tamanhos e formas, ali estavam eles, luzidios e atraentes, a lembrar o ouro cujo pote alguém encontrou, depois de ter sonhado com o sítio onde os mouros o tinham escondido. O ouro moeda, metal precioso e símbolo de prestígio e estatuto social, ainda a exercer a sua sedução? Parecendo botões de blazer, está fora de questão terem pertencido a fardas, embora eu tenha usado uma durante anos. Bem bonita, por sinal: era azul-escura!
Por fim, disse para com os meus botões, os reais e os metafóricos: e a roupa, o que terá sido feito dela? A maior parte foi “reciclada” e reutilizada. No campo do que chamo reciclagem
[1] - uma reciclagem doméstica que configura mais uma reutilização - ocorrem-me várias práticas, umas em vigor mais ou menos transformadas, outras desaparecidas por desuso.
Mantas de fitas e roupa. Na minha juventude, ainda se tecia no Açor. Neste contexto, as partes menos gastas da roupa eram cortadas em fitas que, depois de bem torcidas com o fuso, constituíam a matéria-prima que incorporava as cobertas de fitas ou trapos. Apenas iludiam o frio, mas eram novas e vistosas, consubstanciando a multivalência das pessoas, a economia de autossuficiência e o espírito de poupança associado à redução do consumo e do desperdício. Mais tarde, estas mantas passaram a ser tecidas na Cabreira.
(…) Olha as colchas tecidas de farrapos
por enrugadas mãos de alguma avó
que para se entreter, vivendo só,
fazia mantas com montões de trapos.
(…)
Essas coisas sem préstimo hoje em dia
têm alma própria e guardo-as a preceito
como se fossem joias de valia! [2]
Outro aproveitamento possível das mesmas partes da roupa ou da que deixava de servir a alguém era confecionar peças novas, nomeadamente para crianças. Sem estilistas conceituados e preocupações de reciclagem criativa, esta prática foi precursora, a décadas e décadas de avanço, dos modernos processos de transformação e renovação de vestuário. Existem inúmeros vídeos de apoio à modalidade.
Rodilhas. Também eram em tecido usado, sendo mais ou menos acabadas e airosas, conforme a matéria-prima disponível, o gosto e o jeito da artesã. Serviam para equilibrar o cântaro ou a cesta à cabeça, função que perderam, pelo que passaram a revestir-se de objetivos decorativos.
Sacos de retalhos e rolos tapa-frinchas. Por razões de uso e durabilidade, estes produtos devem ser feitos com retalhos novos ou com as partes mais poupadas da roupa. A confeção dos sacos pode e deve manter-se, associando a tradição à funcionalidade, agora que o plástico promete desaparecer, espera-se que tão rapidamente quanto se banalizou e instalou. Dão uns excelentes e muito invejados sacos do pão ou das compras! O mesmo em relação aos chouriços tapa-frinchas, cheios de serradura ou areia fina.
Bonecas de trapo e bolas. Com as rosas do jardim, as bonecas faziam de filhas e comadres das meninas, de professoras e bruxas. Tudo no feminino, repare-se, o que também é elucidativo! Ao tempo, pouco se jogava à bola, mas, a jogar-se, ela seria de trapos. Tendo ganho estatuto artesanal e ecológico, os artigos em pano abundam no mercado. Alguns modelos são tão estilizados, que resultam mais decorativos do que lúdicos. Há vídeos que apoiam a confeção neste domínio.
Mechas e Tufos. As mechas faziam-se com algodão branco ou estopa. Eram tiras revestidas de uma papa seca de enxofre. Queimavam-se dentro dos pipos do vinho para os desinfetar. Existe um produto semelhante no mercado, tal como existem os fumigadores, que vieram substituir os tufos, rolos de algodão cujo fumo afugentava as abelhas quando da cresta.
Panos do pó e da loiça. Dependendo da matéria-prima de que o vestuário é feito, há sempre a possibilidade de o transformar em panos do pó, da loiça, quem sabe se em pedaços descartáveis que podem ser usados em substituição do papel de cozinha ou do pano lavável, implicando poluição e consumos acrescidos.
Embora mais esporadicamente, a roupa menos apropriada a reciclagens domésticas, como os casacos, era (é) reutilizada na confeção de espantalhos, disfarces de carnaval e tornadoiros. Depois de terem visado assustar os pássaros, os espantalhos procuram hoje – que os campos estão incultos - atrai-los, pela beleza e musicalidade que conferem ao ambiente. Juro que já vi um com o ninho de um casal de chapins nas costas! Para efeitos de disfarce, as roupas velhas eram simplesmente combinadas e vestidas do modo mais surpreendente e protetor do anonimato. Atualmente, parece verificar-se o contrário: no carnaval, os foliões vestem (e despem) bonitas fatiotas novas, no dia-a-dia, alguns usam calças rotas caríssimas, devido ao trabalho extra de as esburacar! É a criatividade a exercer-se de modo mais ou menos ambiental ou consumista! Os tornadoiros serviam para desviar/orientar a água de rega nas levadas e regos. Tradicionalmente, eram constituídos por torrões de terra que as raízes de ervas prendiam. Quando as pessoas deixaram de os poder ir buscar e a roupa se tornou mais abundante, algumas peças passaram a tornadoiro. Ou a tapa-gateiras das portas!



Finalmente, na minha juventude, ainda existiam os farrapeiros/as, profissionais que andavam de terra em terra a comprar por “dez réis de mel coado” roupa e outros objetos usados. A atividade cessou nos finais nos sessenta, por razões relacionadas com as migrações e a evolução económica do país. Porém, nos centros urbanos, persistem atividades algo semelhantes, com fins lucrativos ou solidários.
Olh’ó farrapeiro. Trapo, garrafas, papel …Olh’ó farrapeiro …
(…) Ó minha farrapeirinha,
ó minha troca farrapos.
Tenho uma camisa nova,
toda cheia de buracos. (…) [3]