Eram
moços…
Lembro-me
de os ver, em criança, nas esquinas da baixa de Lisboa. Eram muitos, em grupos
de dois ou três, muito empertigados, grande rolo de corda ao ombro e boné de
pala brilhante, encimada com uma chapa metálica.
Eram
moços, “moços de fretes”, moços de nome, mas de idade… nem tanto! Também havia
quem lhes chamasse “moços de esquina” ou até mesmo “galegos”.
De
tempos a tempos, lembrava-me deles, bem como de outras figuras da Lisboa da
minha infância. Varinas, ardinas e tantos, tantos outros… vendiam sardinha
“vivinha da costa”, carapau “de gato”, “figuinho da capa rota”, jornais com
notícias frescas “Sécl’ó Diário e Bola!!!”, ainda a cheirar à tinta que sujava
os dedos … vendiam alimentos, do corpo e do espírito. Porém, os tais “moços” eram figuras
intrigantes, pois não entendia o que eles tinham para vender. Pois se eles não
apregoavam, que venderiam? Porque andavam em grupos?
Tantas perguntas sem resposta, até que, há tempos, por
acaso, um dos seus descendentes – Artur da Fonte – me mostrou uma curiosidade
documental, que desencantara numa antiga mala, que por lá andava esquecida: a
caderneta profissional do “Moço” Manuel da Fonte, seu pai e, com ela, a chapa
numerada que terá usado no boné e ainda um cartão, um “cartão de visita”, que o
apresentava aos seus clientes, com uma certa elegância profissional. Objetos
resgatados do esquecimento e que agora estavam expostos, amorosamente
preservados, no seu museu de memória familiar e comunitária, que generosamente
partilha com quem o visita, no Colmeal.
Caderneta
Profissional, crachá, cartão de visita… Moços de Fretes… ou seria “de esquina”?
mas também lhes chamavam “galegos” … Aquela curiosidade antiga despertava de
novo – tinha de procurar, tinha de descobrir mais sobre a vida daqueles homens,
muitos (muitos mesmo!) nascidos na freguesia do Colmeal.
Até ao
início do século passado, quem lá nascia, tinha como certa uma vida de trabalho
duro, numa agricultura muito pobre, que mal dava para sobreviver. As condições
de vida eram de uma dureza atroz. Uma nova criança, mais do que uma bênção, era
uma boca a mais para alimentar.
Por
volta dos seis anos, já poderia ser enviado para servir, como pastor, em casa
de alguém mais abastado, provavelmente noutra aldeia. «O meu pai, o “Ti
Hermano”, como era conhecido, contava que foi enviado para servir, com a idade
de 6 anos, para Vale de Asna. Foi lá que teve o acidente que depois o deixou
inválido, por isso depois foi moleiro».
A escola
era privilégio de alguns. «Gostaria de ter estudado, ser alguém. Mas vim da
província sem instrução” seria o desabafo de Alfredo Marques da Costa, um dos
últimos “Moços de Fretes” colmealenses, em notícia publicada na imprensa da
capital.
“Estudar” e “ser alguém” era o sonho que todos acalentavam…
Sem
estradas, sem telefone, sem posto de correio, o isolamento era quase total. Bem
o recorda António Lopes Machado, nas suas “Crónicas e Memórias”, «pertencemos
à Beira Litoral, mas o mar fica-nos longe, na Figueira da Foz e havia muita
gente que nascia e morria de velho sem nunca ter visto o mar e andado de
comboio».
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A
imensidão da “beira-serra” e do seu isolamento, captada pela objetiva do
fotógrafo Jorge Barros |
As coisas só começaram a mudar com a nova Lei do
Recrutamento Militar ,
sobretudo a partir de 1916, quando são chamados a
prestar serviço militar todos cidadãos entre 20 e 45 anos. Esta saída forçada
das suas aldeias, privou as regiões de grande parte da mão-de-obra ativa, mas mostrou
aos homens que havia muito mais mundo do que imaginavam, para lá daquela
barreira natural de montanhas que era o seu mundo. A partir daí, recusaram-se a
continuar uma vida de sobrevivência e isolamento, a que pareciam condenados. E
partiram. A
maioria rumo a Lisboa «em colónias, que é o grande tipo de emigração beiroa,
o irmão a chamar o irmão, e o primo a chamar o primo, não há sítio no mundo
onde não chegue o seu braço. Qualquer trabalho lhe serve».
Manuel
da Fonte, com 22 anos, foi um desses migrantes do início do século XX. Seria
“Moço”, Moço de Fretes, mas muitas vezes lhe chamariam “Galego”. A vila de Góis
tem hoje um acordo de geminação com o município de Oroso, na Galiza, mas,
naquele tempo, nenhuma ligação havia! O apodo de “Galego”, que lhes era atirado
em tom provocatório, depreciativo, tinha origem antiga, associada à profissão.
Os primeiros galegos, fugindo da fome e da miséria,
chegaram a Lisboa, no início do século XVIII, para trabalhar na construção do
Aqueduto das Águas Livres. Terminada a construção, foram-se ocupando de todos
os trabalhos pesados que ninguém queria fazer. A Câmara de Lisboa concedia-lhes
licença para serem aguadeiros e Lisboa não vivia sem eles. Enchiam os seus
barris de água nos chafarizes e iam apregoando pelas ruas da cidade – os
clientes chamavam-nos e eles subiam as escadas dos prédios, para despejar o
barril nos recipientes existentes nas cozinhas.
A falta de
água em Lisboa era frequente e, com o século XX quase a chegar, ainda era
motivo de caricatura de Raphael Bordallo Pinheiro - os galegos
são o amparo de uma Lisboa a desfalecer, enquanto o deputado e fundador da
Companhia das Águas de Lisboa, Carlos Seferino Pinto Coelho, lhe apresenta a
“Falta de Água”.
Em
troca da licença concedida pelo Município, os aguadeiros comprometiam-se a
acudir imediatamente aos incêndios, com os seus barris cheios, reforçando a
ação dos Bombeiros.
Mas
seriam todos galegos? Em 27 de Abril de 1884, encontramos António Antão das
Neves, “aguadeiro em Lisboa”, a testemunhar, como padrinho, o batismo, no
Colmeal, da menina Maria da Piedade Gaspar das Neves, que há-de crescer, casar
e, aos 19 anos, ser mãe do nosso “Moço” Manuel da Fonte.
Até ao
início do século XX, muitos aguadeiros também eram moços de fretes – Joshua
Benoliel, fotógrafo da “Ilustração Portuguesa”, regista a sua imagem, de
corda ao ombro, enchendo os barris. Eram galegos, na sua maioria, eram
aguadeiros e moços de fretes.
A
regularização do abastecimento de água canalizada deixou-os sem clientes. Uns,
regressaram à Galiza com as suas poupanças; outros, bons cozinheiros que eram,
abriram os seus negócios, desde a tasca/carvoaria até aos restaurantes mais
chiques. Poucos terão continuado na “arte” – as “esquinas” de Lisboa ficaram ao
cuidado dos homens da Beira-Serra.
Aguadeiros
e Moços, eram profissões duras, dos que não podiam fazer mais nada, por não terem
habilitações, mas que queriam ganhar o seu sustento com dignidade.
Num dos
contos de Vergílio Ferreira, deparamos
com a seguinte passagem: «(…) Tirou um bilhete de terceira e veio para
Lisboa. (…) Como tinha sido já moço de fretes, pareceu-lhe útil arranjar uma
boina, com uma chapa e um número (…)». Dito assim, parecia ser coisa
simples, mas não o era!
O
Governo Civil de Lisboa, onde se iniciava o processo de inscrição, era a
garantia da idoneidade do candidato. Quantos valores lhe seriam confiados?
quantos documentos importantes lhe passariam pelas mãos, fazendo-os chegar ao
seu destino? O “peso da responsabilidade” nem sempre se media em quilos
transportados às costas… O cliente podia confiar nestes homens!
A caderneta profissional do “Moço” Manuel da Fonte
comprova a sua inscrição no Governo Civil de Lisboa em 31 de julho de 1935 e,
com a garantia de cadastro limpo, iria agora inscrever-se na Câmara Municipal. Pagava
uma licença, e recebia a sua placa numerada, que
prenderia ao boné.
Umas
boas braçadas de corda resistente e um chinguiço, completavam o equipamento do
“Moço” que se estreava na “arte”, como eles próprios designavam o seu trabalho.
O chinguiço, iria fazê-lo com trapos velhos, enrolados, como uma rodilha bem
amarrada, mas aberta, como uma ferradura.
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Moços
de Fretes em 1908 . Fotografia de
Joshua
Benoliel (Arquivo Municipal de Lisboa)
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Se a carga fosse muito grande ou muito pesada, o frete
era dividido entre dois ou quatro “Moços”, com carga suspensa num pau, ou mesmo
em padiola - o chinguiço seria a almofada de proteção, dos ombros e do pescoço,
naquele transporte “a pau e corda”.
Muito
cuidado teria de ter pois, em caso de acidente, ficaria por sua conta! Não
havia seguro nem segurança social, não havia subsídio de doença nem de
acidente, nem reforma…
apenas o regresso à terra, à família, na esperança de poder voltar à “arte”,
quando (e se) recuperasse.
O “Moço nº 2716”, devidamente licenciado, já poderia
agora mandar imprimir os “cartões de visita”,
exigidos pelo Regulamento. Seria a sua apresentação aos clientes.
O telefone era ainda pouco mais que novidade. Era um
luxo reservado aos hotéis, aos ministérios e às casas comerciais, bem como às
famílias mais abastadas. O contacto era a “esquina” que a Câmara lhe atribuíra,
por isso também eram conhecidos como “moços de esquina”. A sua, seria a esquina
da Rua da Conceição com a Calçada de S. Francisco, ali à na Rua Nova do Almada,
tal como ficara averbado na sua licença profissional. O Regulamento era nisso muito
claro, proibindo “Estacionar fora dos locais para que tenham obtido a respetiva
licença”.
Aí ficaria, todos os dias, com o seu boné de pala e
molho de corda ao ombro, atento ao freguês que aparecesse. Por agora, ao calor
abrasador do verão de Lisboa, mais tarde seria ao frio, ao vento, à chuva…
No
ano anterior, o Governo tinha reafirmado a jornada de oito horas de trabalho e
viria mesmo a autorizar, uns anos depois (1942), o aumento da jornada, com
horas extraordinárias pagas a 50% .
Nada disso lhe dizia respeito – era patrão de si próprio, não tinha horário –
se não trabalhava não ganhava. Eram contas simples de fazer!
Sem
horário de trabalho, sem abrigo que não fosse, por gentileza e caridade, o
umbral da porta mais próxima, aquela seria a “sua esquina”. Zona de casas
bancárias, o próprio Banco de Portugal ali ao lado – a sua esquina ficava entre
a Lisboa chique do Chiado e o coração empresarial e bancário de Lisboa.
Na
véspera, a 4 de agosto de 1935, tinha sido inaugurada a Emissora Nacional –
talvez tenha ficado à escuta, para ouvir essa maravilha, junto de algum
estabelecimento comercial… Apesar da novidade, o aparelho custava 300 escudos pois,
percebendo o seu potencial de comunicação, o governo pretendia que, mesmo as famílias
com menos recursos, tivessem acesso à rádio. Um
dia… quem sabe? Mas muito teria de suar, até juntar tanto dinheiro!
Da sua
esquina, talvez tenha visto passar Fernando Pessoa, poeta solitário e plural,
já muito fragilizado pela doença,
descendo do Chiado, a caminho do Terreiro do Paço. Não era cliente… que
interesse tinha?
Como terá sido o seu primeiro dia de trabalho? Bem
sabia que os “Moços” faziam de tudo. «(…)
Desde levarem malas de viajantes com coleções,
colchões à cabeça, máquinas de costura às costas, armários ao ombro, latas com
produtos químicos, sacas com géneros alimentícios, até mudanças de mobiliário,
transportada a pé, em carroças e, mais tarde, em camionetas, sempre com a
preocupação de não partirem os espelhos, não riscarem o verniz ou a pintura dos
móveis. Igualmente tinham, previamente, de desmontar as mobílias, caso de
camas, guarda-fatos, etc. que depois, com esmero e paciência, voltavam a montar
no diferente endereço. Eram especialistas no transporte de pianos de cauda e mais
pequenos, cofres, despachos marítimos e terrestres de mercadorias.
(…) Também era usual verem-se os «moços de esquina»
nos jardins dos palacetes a «baterem» carpetes, ou, quando o freguês não
possuía tais condições, as levarem para fora de portas, aí, suspensas com a
corda que usavam, entre duas árvores, e, um de cada lado, aquilo é que era
bater! (…) No entanto, também lhes apareciam serviços leves, que por vezes eram
de extrema responsabilidade ou mesmo confidenciais. A estes homens, nossos
conterrâneos e não só, confiavam as mais valiosas peças de arte, ouro ou prata
para irem empenhar e, depois de conseguirem em qualquer penhorista o empréstimo
desejado (indicado previamente e aproximadamente pelo interessado), lá iam
levar o dinheiro e a cautela de prego ao «enrascado» freguês.
(…)»
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Tabela que fazia parte da caderneta profissional dos
“Moços” |
O trabalho de que ninguém gostava era o transporte dos
mortos, do Banco do Hospital de S. José para a Morgue, ou da rua, onde quer que
estivessem. A Polícia ia chamar dois “Moços” para transportarem a maca, ao
custo da tabela. E não podiam recusar, pois perdiam a licença – estava no
Regulamento.
Naquele tempo, em que ter telefone era um luxo, havia
um “frete” que todos os “Moços” cobiçavam – obrigava a grande discrição e era,
por esse motivo, especialmente bem pago: entregar cartas confidenciais.
Os “Moços” eram homens de rosto erguido, sérios. Os
clientes é que nem sempre… «Sabe como nos defendemos?», dizia um deles ao
jornalista, no final dos anos 60 «Quando,
por qualquer razão, desconfiamos de um freguês, retira-se do frete uma peça que
valha pouco mais ou menos o preço do nosso trabalho. Entregamo-la depois numa
esquadra de polícia. Guardá-la nós é que não, podia pensar-se que roubávamos.
Então o freguês vai lá, paga o serviço e fica com o que é dele. É justo, não
acha?»
Era a escola da vida… em que o “Moço” Manuel da Fonte
era caloiro.
Do outro lado da “baixa”, noutra esquina um pouco mais
longe, da Rua da Prata com a Rua de S. Nicolau, estacionava o Moço nº 787, seu
pai, também Manuel da Fonte, veterano da primeira leva de registos que a Câmara
fez, em 1922. Talvez tenha entrado na “arte” pela mão do padrinho da sua
esposa, o tal aguadeiro António Antão das Neves. Era comum encontrar pai e
filho a trabalhar juntos, por vezes na mesma esquina.
Terá sido o pai quem descobriu o lugar vago e lhe
recomendou a mudança? O certo é que, no final desse mês, passou a estacionar na
esquina da Rua dos Douradores com a Rua da Assunção, uma
ativa zona comercial, menos cosmopolita, mas com mais garantia de trabalho –
que ele não estava ali para ver passar as meninas do Chiado, nem poetas melancólicos
ou cavalheiros da finança! Além do mais, ficava mais
perto de casa, da “casa da malta” onde morava com o pai, no 16 da Rua João do
Outeiro, ali à Mouraria.
No final do dia, depois de uma jornada de 12 ou 14
horas em pé, quantas vezes num esforço desmedido, iria saber bem chegar mais
depressa a casa – as pernas agradeciam. Felizmente, era no 2º andar do prédio,
podia ser pior… que os havia por lá bem altos! Precisava de se lavar, mas não
queria ir aos balneários públicos da Mouraria (que saudades do rio lá da
terra!). Talvez ainda tivesse de “ir à água”, ao chafariz, e subir de novo com
o cântaro, mas todos tinham de contribuir para as tarefas da casa – eram as
normas das “casas da malta”.
Um chafariz… isso é dava jeito lá na terra, em vez
daqueles charcos, aquelas “fontes de chafurdo” onde mergulhavam os cântaros! A União
bem andava a lutar por isso…
Já havia muitas casas com água canalizada, mas não nos
bairros pobres, como a Mouraria. Lá para meados da década seguinte, já alguns
prédios teriam esse luxo – uma torneira no patamar da escada e uma pia para
despejos. Todos os despejos! O saneamento básico ficava à porta, no patamar de
cada andar, sob uma janela que faria o arejamento.
Paul Descamps, descreve-as, nesse mesmo ano de 1935: «as
casas operárias são com demasiada frequência mal iluminadas; há uma simples pia
no pátio, onde se despejam as águas sujas e o resto». E, regista ainda, que
embora nas principais cidades já houvesse água canalizada, «os bairros
populares frequentemente só são servidos por chafarizes»
A casa onde vivia com o pai, era partilhada com mais
homens “lá da terra”. Era normal naquela época – um alugava a casa e nela viviam
todos os que lá coubessem, dividindo as despesas, cumprindo as regras e
partilhando tarefas. Por isso eram conhecidas como “casas da malta”. O pai já ali
morava, quando se registou como “Moço” e, com ele, moravam mais oito, todos
“Moços de Fretes”. Lá
na Mouraria havia várias dessas casas: na mesma rua, João do Outeiro, no 1º
andar do nº 27, moravam 18 Moços!
E, mais acima, no 52, só no 2º andar moravam 17!
Nesse mesmo prédio da Rua João do Outeiro, nasceu por
essa altura uma menina – Maria Argentina. Talvez a tenham visto brincar na rua ou
mesmo, por alturas de junho, armar o seu altar e pedir, com outras crianças «um
tostãozinho para o Stº António…» O fado
corria pelas ruas, tão natural como os pregões e aquela menina, que por ali
viram brincar, viria a ser uma grande fadista!
Logo ali ao lado, no 16 do Beco do Jasmim, viviam seis
Moços – outra “casa da malta”. Esta mais pequena, à dimensão do espaço. O “dono
da casa” (que não era proprietário) era o “Moço nº 981”, o Senhor João Almeida.
E muitas, muitas outras, espalhadas pelos bairros populares de Lisboa. Tudo
gente lá da freguesia – do Colmeal, do Carvalhal, do Soito, da Aldeia Velha…
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Beco do Jasmim, 16 (em 2019) |
Assim, gastando pouco, todos poupavam dinheiro. Uns
sonhavam comprar mais uns palmos de terra, umas oliveiras, uns castanheiros… ou
melhorar a casa da família, para seu descanso na velhice; outros, ir ao mato e
à lenha, voltar para a enxada… nem pensar! O seu sonho morava em Lisboa –
haviam de alugar uma parte de casa, ou talvez mesmo uma casa, e trazer a mulher
e os filhos, que tinham ficado na terra.
Em Lisboa teriam vida melhor – aqui ninguém andava
descalço! Havia alguns anos já que o Governador Civil o proibira. E como, de
repente, os muitos pobres de Lisboa se viam, por Lei, obrigados a andar
calçados, as atrizes do Parque Mayer costuraram e ofereceram alpercatas à
população
Voltariam à terra no verão, claro! todos os anos, pela
festa! Se tudo corresse bem, talvez conseguissem ir lá também pelos Santos e
pelo Natal…. Voltar de vez? Só na velhice!
As diversões eram poucas, pois havia que poupar –
saíram da terra para lutar por uma vida melhor, para eles e para a família! Não
podiam perder o rumo… Um jogo de sueca, uma visita aos conterrâneos e o domingo
estava passado.
Os ensaios para as “Marchas dos Bairros de Lisboa”
animavam a Mouraria. Será que o bailarico atraiu os “Moços” mais jovens? Ou as
pernas, cansadas, pediam tréguas?
Nas “Casas da Malta” as refeições eram simples – talvez
umas batatas cozidas com uma posta de bacalhau, que compraram já demolhado e
que, naquele tempo, era comida de pobre. Quando fossem à terra, ajudar nos
trabalhos agrícolas, haviam de trazer alguns mimos - uns enchidos, uns
queijitos…
Teriam já trocado o velho fogareiro a carvão, pelo outro, muito
moderno, que a propaganda da revista “Ilustração Portuguesa” garantia que cozinhava
“um jantar completo em menos de duas horas, gastando apenas meio litro de
petróleo”?
A ideia era bem atraente, mas viviam-se tempos muito conturbados.
No ano seguinte, começava a Guerra Civil Espanhola e as
nuvens da 2ª Grande Guerra formavam-se já no horizonte… Portugal, não
participando diretamente, sofreria o efeito da “onde de choque” de ambas –
haveria racionamento de bens alimentares e de combustíveis líquidos.
As filas imensas que se formavam, para a obtenção de
senhas de racionamento,
tornaram-se focos de descontentamento e protesto da população mais pobre.
Pensando melhor… nem sempre as novidades são boas!
Afinal, o velho fogareiro, a lenha ou a carvão, não os deixaria sem jantar!
Com a acalmia do fim da Guerra, a vida ia retomando a
normalidade, mas, com ela, vinha também o princípio do fim, da carreira dos
“Moços”.
Quando os bagageiros terrestres pediram a revisão do
seu Regulamento (comum aos Moços de Fretes), nomeadamente da Tabela de Preços,
o parecer do Ministério do Interior (1945)
apontava já para o fim da “arte” , prevendo que “quando se normalizarem as
condições de vida na cidade, (…) o transporte de bagagens deverá fazer-se,
provavelmente, por forma diferente da prevista na aludida proposta, dado que o
fácil uso de transportes automóveis deverá pôr de parte o sistema actualmente
usado.”
Atentos aos ventos de mudança, três “Moços”
colmealenses aventuraram-se arrojadamente no mundo empresarial dos transportes
de mercadorias e mudanças, com camionetas. Ao longo dos anos 60, foram
desaparecendo das ruas as mudanças “a pau e corda”. No início dos anos 70, as
esquinas foram ficando mais e mais vazias, até deles só restar a memória.
Publicidade
inserida no “Boletim do Colmeal”, Julho/1971 e Julho/1981
O “Moço” Manuel da Fonte (filho) não ficou muito tempo
“à esquina” … – se o sonho era mudar de vida, ele lutou e conseguiu! A memória
da esquina e das cordas ficariam guardadas, junto com a sua caderneta
profissional, a chapa metálica e o resto dos cartões de visita, numa mala que
por lá andava e que foi ficando antiga…
Eram “Moços”, naquele tempo que parece tão longínquo.
Parece coisa de outro tempo… mas não é – era o tempo
dos pais e dos avôs, dos homens que hoje são, eles próprios avôs. Homens que
não renegam as suas origens humildes, as suas raízes. Não as branqueiam nem
douram, antes as alimentam e homenageiam, na sua verdade, reconhecendo que foi
a determinação e os valores, desses pais e avôs, que lhes moldou o caráter e
lhes permitiu ser quem são.
Deonilde Almeida
P.S. (em 25/01/2022) - Na pesquisa efetuada ficaram algumas interrogações, para as quais não foi possível obter resposta.
Uma delas, sobretudo, intrigava-me – Quem tratava das roupas nas Casas da Malta? Era-me difícil imaginá-los, no lavadouro público, desempenhando o que, naquele tempo, se considerava "tarefa de mulher".
Recentemente, obtive a resposta, pela partilha de um conterrâneo de Ádela. Sua mãe contava como, desde tenra idade (6/7 anos), ia entregar aos conterrâneos, nas Casas da Malta da Mouraria, a roupa lavada e engomada pela sua avó.
Naquele tempo, a responsabilidade e o valor do trabalho aprendiam-se na prática, desde muito cedo, partilhando tarefas da economia familiar.