Ardeu a 16 de
outubro, mas em aldeias próximas já tinha ardido no dia e na semana anteriores.
Dois meses depois, persistem o luto e a tristeza da serra, das terras e das almas, sem tréguas ou fuga possível, ande-se para
sul, norte, nascente ou poente. Perdas incomensuráveis, inenarráveis, irreparáveis,
nomeadamente nos campos da memória, da biodiversidade e do património construído.
O território
parece outro, na crueza das suas escarpas xistosas e na evidência do papel do
homem na construção da paisagem. Desaparecido o denso manto verde que o cobria,
veem-se por toda a parte penhascos novos (!), caminhos antigos, barrocos que desviavam
as águas dos terrenos de cultivo, “combâros”, socalcos magros que protegiam da
erosão e asseguravam mal o sustento frugal das pessoas, currais agora
transformados em ruinas.
Nos olivais, a
azeitona jaz no chão atormentada, sem ter dado ao mundo a luz que prometia. Nas
zonas de pinhal, o chão e as estradas acastanham da caruma caída, uma ameaça
escorregadia como gelo. As árvores de fruto ou continuam de pé desamparadas ou
já foram decepadas, umas quase rentes para que renasçam vigorosas, outras mais
por cima, tudo dependendo do método de recuperação defendido. Muitas não o farão,
tão fundo o fogo cavou em seu corpo indefeso, jovem ou centenário. As feridas
abertas lembram bocarras medonhas e frias.
Até agora, choveu
muito pouco. Todavia, sem vegetação que retenha a água e a faça penetrar no
solo ressequido, o suficiente para somar devastação à devastação. Apressados, negros
e lamacentos, os caudais formados precipitaram-se serra abaixo, destruindo
terrenos e atolando estradas e rios.
Mas há
indícios de esperança! As ervas e os fetos que despontam pujantes a verdejar de
diferença, o “tertulho” sem par desabrochado de um fungo que resistiu ao fogo e
ao calor intenso, milhares e milhares de formigas amontoadas a manifestarem-se.
Por serem assim ou em sinal de desagrado, apresentam o ventre vermelho. Lentamente,
as aves que restaram – talvez 5% dos efetivos habituais – vão retomando as suas
rotinas, umas usando a água gelada para se limparem da experiência, outas debicando
no comedouro novo, criação em xisto com que o Valdemar as brindou. Não chilreiam,
ainda mudas de incredulidade e pavor. Sobre os outros animais, há quem diga ter
visto um esquilo à procura de castanhas cruas, uma mãe javali com as crias
muito enfezadas, uma raposa morta na beira da estrada … Enfim, é a natureza a
refazer-se, com o poder regenerador e a generosidade de que os homens ainda a
não privaram. Para as cabras, a ADIBER tem trazido comida, de um produtor
solidário chegaram dois porquinhos. Muito bonito.










De resto, no
que dos humanos e das instituições depende, nada mais aconteceu. Falando apenas
da nossa localidade de residência, onde ardeu até dentro de casa, mas apenas
uma segunda habitação se perdeu: a água que faltou continua insuficiente; os
tubos que arderam, entrapados ou disformes à vista; as bocas-de-incêndio,
inexistentes; as telecomunicações ausentes; a floresta consumida, de pé, à
espera de mão amiga que a lance à terra e remova, para que possa renascer.
Lisete de
Matos
Açor, Colmeal
19 de dezembro de 2017.