Recebi-os grata das mãos afetuosas de
Deonilde Almeida. Tesouros que são, aconchegados e escondidos numa caixa de
caixas. Reanimados, depois de amorosamente limpos do pó, secos da humidade,
resgatados do silêncio. A Maria Deonilde recuperou-os com a Maria Cecília do
espólio da D. Maria Augusta Almeida, mais conhecida por Maria Machada. Três
Marias! Dois livros gastos e cansados do tempo passado, do uso e do desuso, da
evolução dos costumes. Ainda assim, dois livros cativantes que gostei de
conhecer, procurando sentir as mãos, o olhar, a devoção e a emoção dos leitores
que tiveram.
LIVROS
Dois livros religiosos: um “Manual Abreviado
da Missa e da Confissão” e uma “Bíblia para a Infância”. O missal, da autoria
do presbítero J.-Roquete data de Pariz, 1857. Conforme pode ler-se na folha de
rosto, é uma edição da “Vª J. P. AILLAUD; MONLON E C … LIVREIROS DE SUAS
MAJESTADES O IMPERADOR DO …. REI DE PORTUGAL, …”. Da bíblia desconhecem-se o autor
e a data de publicação, por não serem legíveis na capa e faltarem as páginas
iniciais.
Dois pequenos livros que configuram
uma antecipação do chamado livro de bolso e um reflexo da tendência para a
miniaturização como estratégia, desta vez, simultaneamente, de sedução para a
leitura e para a mensagem. O missal mede 8,5X6 cm, a bíblia 11,5X7 cm.
Escritos na grafia coeva e num
português fluente, são livros que se leem muito bem, em parte devido ao
entrelinhamento e ao espaçamento entre parágrafos, que são folgados. No missal,
acrescem os subtítulos, os separadores e as capitulares, sendo a missa em si
própria ilustrada por 34 imagens, que ocupam as páginas pares, e mostram as
diferentes fases do ritual. Por estas razões, parecem livros graficamente
concebidos com as preocupações de legibilidade e inteligibilidade que os baixos
níveis de alfabetização de então aconselhavam. Meramente a título de exemplo,
em 1900, o analfabetismo literal atingia 74% da população portuguesa e 93% dos
colmealenses, uma taxa não muito distinta da concelhia, que era de 89%. Se essa
preocupação foi intencional, não deixa de ser interessante: que saibamos, as primeiras
orientações nesse sentido são da UNESCO, e datam dos anos cinquenta do século
vinte.
Livros gastos a cansados, nota-se a
vetustez nas faltas, na fragilidade do conjunto, nas folhas amarelecidas e nas
margens enrugadas e sumidas de algumas, nas marcas do dedo que as passou ou das
lágrimas vertidas de enlevo e comoção. Em ambos, o miolo solto das capas, que
parecem ter encolhido, transborda para o exterior, numa ansia incontida de
exaltação.
No referido registo de legibilidade e
conquista, na bíblia, o narrador interpela sistematicamente o leitor: ”Que erro
meus meninos, que culpa”; “E vós, meus meninos, quantas vezes vos sucede …”; “O
pecado, meus meninos, é como uma serpente, que causa á nossa alma uma ferida
mortal…; “Ai! Meus meninos, este mesmo povo, que faz a Jesus um solemne
triumpho ( …) Nada há durável n’este mundo em tudo o que vem dos homens …; “D’
esta sorte, meus meninos … “. Ao tempo, das meninas a história pouco rezava!
Do ponto de vista do conteúdo, uma
bíblia é uma bíblia, embora, tratando-se de uma síntese, os enfoques pudessem
ser objeto de análise. Quanto à missa, sendo a estrutura do ritual essencialmente
a mesma, há diferenças significativas no que toca ao texto e à maneira de
celebrar cada um dos ritos, em virtude de as reformas litúrgicas entretanto
ocorridas. No entanto, encontrámos pelo menos uma invocação que ainda hoje é usada
no Colmeal, embora em momento distinto (Alma de Christo, santificai-me …). O
mesmo quanto às orações incluídas.
O capítulo referente à missa começa
com a apresentação de cada um dos paramentos e adereços que eram(são)
utilizados para a celebração da mesma. Possivelmente por falta de atenção,
nunca tinha encontrado essa simbologia.
OBJETOS
Um livro também pode ser visto como
um objeto e todos os objetos contam histórias: das sociedades e da História, da
vida dos grupos e das pessoas, de vidas alegres e tristes, de sucesso e
insucesso, de ricos e pobres. No caso de os livrinhos em apreço, histórias que
poderemos imaginar, dotando-os de uma nova vida de itinerância, descoberta e
encontro. O que é que o missal - que se sabe ter sido impresso em Paris - nos
diz sobre o estado da economia e da indústria, em Portugal, nessa segunda
metade do século dezanove? E será sobre Portugal ou sobre o Brasil,
considerando as relações livreiras privilegiadas que existiam entre aquele
território e a França e o facto de, na folha de rosto, o “Imperador” preceder o
“Rei”? A quem pertenceram inicialmente, sendo sabido que ler e escrever eram
privilégio das elites? Como é que os livrinhos chegaram ao Colmeal? Seguramente
com um filho da terra no regresso à mesma, cedo que as pessoas (e)migraram para
sobreviver. Tê-los-á comprado, caríssimos, a julgar pelos preços indicados na
bíblia para outros livros? Para trazer de presente, livros, em vez de alguma
ferramenta útil ao trabalho precoce? O imaterial e simbólico a sobreporem-se ao
material e prático? Ter-lhos-ão oferecido e a que propósito? No contexto de uma
relação pessoal, profissional, religiosa? Tê-los-á resgatado – há sempre uma
primeira vez - de algum espólio deixado quando tudo se deixa? E tê-los-á
resgatado por devoção ou simplesmente por serem objetos atraentes e
prestigiantes? E, no Colmeal, a quem serviram, face aos índices de
analfabetismo a que aludimos? E que papel terão exercido, precisamente, como
estímulo para a aprendizagem da leitura e da escrita, um pouco à semelhança do
dever de leitura da bíblia, que constituiu um fator de alfabetização decisivo para
os povos de religião cristã protestante?
Feita esta reflexão, falei mais tarde
com a D. Silvina Nunes– uma senhora de grande memória e afabilidade – sobre a
provável origem dos livrinhos. Não sabe, mas recorda-se de ouvir o marido –
Sebastião de Almeida, irmão da Maria Augusta - dizer que o bisavô era brasileiro.
Ter-se-ia encontrado com os do Colmeal nas mondas, lá para o Alentejo, vindo
com eles e ficado.
Consultando o livro “Gentes e
Famílias da Freguesia do Colmeal. Concelho de Góis” (2016) e o próprio autor –
Fernando Pinto Caetano - acontece que o bisavô paterno daqueles irmãos era o célebre
Manuel Antunes, nascido no Açor e o materno, António Brás, dito natural da
freguesia. Assim sendo, o episódio do encontro nas mondas perde impacto, mas o
Brasil e o Alentejo são destinos plausíveis da emigração e das migrações
sazonais de então. Considerando as datas de nascimento e o facto de o missal ser
de 1857 …
Poderíamos continuar, pesquisando,
promovendo encontros e participação, imaginando, tornando o passado presente e
ambos futuro, através da história dos dois pequenos grandes livros. Integram a biblioteca
da União Progressiva da Freguesia do Colmeal, onde, como todos os outros, se
atualizam e recriam todas as vezes que alguém os lê.
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 17 de julho de 2016
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