Gente e povoações com nome, gente e povoações cujos nomes omito, com pena, por constituírem exemplo de persistência e resiliência, que importa enaltecer e homenagear. Vantagens e desvantagens da internet e dos meios de comunicação social, sinais da incerteza, única certeza em que vivemos.
Este é um registo sobre pessoas e os seus modos de vida. Agradeço a todos, mulheres e homens meus amigos e concidadãos, que partilharam comigo a sua experiência de criação e tratamento das cabras, afirmando, com sabedoria, conhecimentos e competências que os tornam protagonistas essenciais da identidade e da vida na serra. Independentemente de as palavras, espero ter sido fiel ao seu pensamento, e contribuir para a visibilidade, o reconhecimento social e a valorização das práticas de que são testemunho.
São ainda bastantes as pessoas que têm cabras. Bastantes, porque todos somos poucos, os resistentes do tempo que passa, percursores, talvez, do tempo que vem. A sua idade varia entre os trinta e seis anos e os oitenta e quatro, predominando o escalão etário 50-60. O número de animais, já de si reduzido, é inversamente proporcional à idade.
A maior parte destas pessoas residiu sempre nas aldeias. Cerca de metade trabalha por conta de outrem, os outros, maioritariamente reformados, ocupam-se de pequenos cultivos para consumo próprio e dos animais. E também para oferecer como lembrança a este ou àquele. A propósito, agradeço muito os queijos que me ofereceram, gesto e sabor que me fizeram lembrar a minha avó Leopoldina. Também por isso, obrigada. No caso dos casais, salvo exceções, as cabras constituem preocupação de ambos os cônjuges, verificando-se, apenas, diferenças que resultam da disponibilidade e da natureza das tarefas.
-“O …trata de tudo, menos ordenhá-las. Às vezes é mais difícil, especialmente no primeiro ano”.
Uns têm os animais porque precisam do estrume para adubar as hortas, outros porque proporcionam uma ocupação saudável do tempo livre, todos, porque gostam e porque representam, através do autoconsumo, um contributo para a frágil economia das famílias.
- “Como não tenho emprego e preciso de fazer alguma coisa, as cabras ajudam-me a passar o tempo. A serra é muito bonita, mas não posso ficar o dia todo a olhar para ela, até porque já a conheço! Mas passam-se muitos sacrifícios para trazer as cabras bem tratadas e, se não for para isso, não vale a pena tê-las. A gente também gosta de tudo lavado, da cama bem feita e de uma toalha limpa sobre a mesa”.
- “Precisamos do estrume para as hortas, mas as cabras, sendo mansinhas, são uma companhia, um entretimento. Vamos aí para as fazendas e elas vão atrás. Dão muito trabalho, mas fazem-nos bem, obrigam-nos a sair de casa, a andar. Converso com elas, ando entretido. Enquanto puder, vou tendo, para nós, para a família … Ao menos sabemos o que comemos, e onde chega o que elas dão, não temos de comprar.”
- “Tenho as cabras porque gosto. Adoro. Parece que nem sei viver sem elas. Vou aí algures na estrada e digo: “olha que rica erva para as minhas cabrinhas.” É claro que também gosto do queijito e um cabritinho dá sempre jeito. Mas, para quem trabalha dificilmente compensa, pois, como não se podem tirar todos os dias, tem de se lhes comprar palha ou ração”.
- “Gosto disto. Se não as posso tirar devido ao mau tempo ou outro motivo, até fico com saudades. E elas também! Chegada a hora de saírem, é ouvi-las a berrar e a marrar umas nas outras.” Por causa destas tropelias é que algumas portas de antigos currais tinham dois caravelhos ou tranca exterior.
- “Tenho-as porque gosto. Toda a vida fui criada com isto e gosto. Além disso, faz-se um queijito, tira-se um cabritinho para comer, quem ainda trata fazenda, tem o estrume … Antigamente, é que a sobrevivência dependia do gado.”
- “Não, não é pelo rendimento. A gente afeiçoa-se, gosta delas. Mas é muito trabalho. Trato-as de manhã e à noite, depois do serviço. Quando há leite, faço queijo para nosso consumo, e temos estrume para usar e dar a quem não tem. O pior é serem uma prisão. A pessoa quer sair e não pode. Sim, porque não pode ir passear e deixa-las sozinhas a passar mal!”
- “As cabras pode-se dizer que são uma consequência da crise. Como há cada vez menos trabalho, tive tempo para construir o curral e vai dando para as ajudar a tratar. Não pelo rendimento, que praticamente não existe, mas pelo gosto …”
Verdadeiramente, as cabras transformaram-se em expressão de afeto e animais de estimação. As motivações apontadas continuam a sugerir a prática da pastorícia como atividade complementar. No passado era complementar e indissociável da agricultura de subsistência, hoje, do trabalho assalariado ou da reforma. Com exceção para a referência à ocupação dos tempos livres e ao lazer, são motivações que remontam a meados do século passado, quando os grandes rebanhos começaram a desaparecer, em parte, por efeito conjugado da florestação dos baldios e do êxodo da população para a cidade.
As cabras dão realmente muito trabalho. Precisam de água, muita comida, e do mato para a cama, que transformarão em estrume fertilizante da terra. Uns vão ao mato com meios mecânicos, outros de corda e roçadoira ao ombro, trazendo depois o molho às costas.
Os reformados e desempregados tiram as cabras todos os dias, normalmente à tarde, os empregados, apenas nos dias em que chegam a casa a tempo de o fazer. Tiram-nas para arejarem e para encherem a barriga, roendo a erva e o mato tenro que encontram. Disseram-me que gostam de sair e por isso é que cabriolam de um lado para o outro, de cabeça no ar, antes de começarem a comer devidamente. De qualquer modo, é preciso ter pasto para as alimentar, no curral, dando-lhes a dejua de manhã, e a ceia à noite. As mais sortudas são tratadas várias vezes ao dia.
- “Para mim, o mais importante é o estrume e este ano nem lhes cheguei o chibo. Dão trabalho, mas é tudo uma questão de hábito. Dá-se-lhes bastante comer de manhã e elas aguentam até à noite, sem berrar. O pior mesmo é tirar o esterco e levá-lo para as fazendas, por causa da estreiteza dos acessos. Tem de se andar a transportá-lo com o carro de mão”. Em cesta à cabeça ainda se vê, mas pouco.
Geneticamente melhoradas, as cabras têm hoje dois e mais cabritinhos. Carinhosamente, depois de os limparem, as mães empurram-nos com o focinho para debaixo do amojo, parecendo dizer: “Vá, mamem! Está quentinho!”. Mas como só têm duas tetas, quando as crias são três, é preciso assegurar que todas se alimentam. A mais frágil pode perder-se. Também há doenças e cabras muito isso, sem ofensa para as próprias, que enjeitam os filhos. Conheci uma que abandonou o filho para adotar um neto. Coisas da natureza! Neste caso, é preciso chegar o cabritinho noutra cabra, segurando-a ou alimentá-lo a biberão, gentileza que ele agradece, chupando sôfrego. Uma ternura, o bichinho e a cena! Se os filhotes não mamam, tem de se tirar o leite à mãe para não desamojar. Para darem mais leite arraçoam-se, isto é, mimam-se com guloseimas como ração, milho, aveia ou outra coisa substancial. Aliás, há quem isole as cabras com cria, de modo a mais facilmente lhes adoçar a boca e a proteger os pequeninos das patas e corpos folgados das restantes.
Apesar de ser comum recorrer a um macho emprestado, não raro de povoação diferente, verifica-se uma certa tendência para ter um. Representa autonomia no atual contexto de escassez da oferta, mas também um custo acrescido muito elevado, considerando o escasso número de animais. Quando vem em serviço, o animal fica até ter cumprido a sua missão ou ser preciso noutro curral. A figura do comprador ambulante, que andava pelas terras, a emprestar o bode para mais tarde comprar os cabritos, parece ter desaparecido.
- “Antigamente era melhor. Chegava-se o chibo às cabras em maio, para haver cabritos no Natal. Nessa altura, havendo bom pasto, o leite é melhor e, com quatro ou cinco litros, fazem-se dois bons queijos. Depois, o leite enfraquece, e só se faz aí um queijo e meio. Agora, com ele por perto, é em qualquer altura. Ouve-a a berrar? Quer chibo! Muito gordas, não cobrem, não tomam cabrito.”
Visando manter as épocas e proteger as fêmeas cheias, há quem aloje o bode separado das cabras. Mas também há os que não prestam e têm de ser substituídos. Enfim: preso por ter cão, preso por não ter …
A renovação dos efetivos faz-se usando os animais mais velhos para a chanfana, e ficando com uma ou mais crias, fêmeas ou macho, conforme as necessidades. Segundo nos disseram, as cabras têm de crescer juntas, para se darem bem. Há gente que nem assim! É frequente a preferência pelos animais mochos, que são menos marrões e perigosos.
Caso se vendessem, um cabrito com um mês valeria uns cinquenta euros. Uma vez que o valor anda associado à gastronomia, mais velho já poderia valer menos, talvez oito, nove e meio ou dez euros por quilo.
Todos gostam da pastorícia e dos animais, sendo evidente o carinho que nutrem por eles. Falam das cabras com enlevo. Sugerindo a própria mobilidade, não raro referem que esta veio daqui ou dali, que é filha, neta, ou bisneta de uma outra ou de um bode afamado. Chamam-lhes nomes que as descrevem, como Bonita, Boneca, Alentejana, Queta, Preta, Branca, Amarela, Riscada, Caiada, Pardusca, Calçadinha, Orelhas, Carriça, Coelha, Mocha, Bita, Estrela, Estrelada, Princesa, Xica, Pomba, Sarenta, Marmilada, Azul. E elas viram ou vêm, obedientes! Se não, levam logo com nomes menos simpáticos, mas igualmente calorosos!
- “Sabe, há animais teimosos como as pessoas! E até inteligentes à sua maneira! Quando vão à minha frente, esta aqui, se eu me atrasar, põe-se a berrar e a olhar para trás. Se deixa de me ver, volta à minha procura. E, uma vez que eu adormeci, acordei com ela deitada ao meu lado, aí a um metro de distância. É muito mansinha!”
Para as atrair em conjunto, usam-se chamamentos repetitivos como: “quiá, quiá, quiá …”; “queta, queta, queta…”; “anda, anda, anda … “eivz, eivz, eivz” “méee, méee, méee …” (para os cabritinhos). Algures, encontrei uma cabra que funciona como guia: chama-se a Estrela e as outras seguem-na, como se da estrela polar ou da de Belém se tratasse!
Já pouco andando na serra, as cabras não correm o risco de se perder, mas várias continuam a usar chocalho ou campainha. Na ternura da companhia que se fazem mutuamente, no campo, há cabras que só comem acompanhadas. Nos fins de semana e férias, esporadicamente, devido à sua raridade, é possível encontrar crianças e jovens a acompanhá-las, enquanto teclam jogos ou SMSs efémeros em telemóveis, smartphones e outras tecnologias sofisticadas. SMSs, quando há rede, claro!
Algumas pessoas fazem queijo e requeijão. Para os fazer, fecham-se os cabritos que já comem no prisco durante a noite, e ordenham-se as cabras de manhã. Durante o dia, os cabritos podem continuar a mamar, pois, quanto mais chupam, mais leite a mãe dá. Quando o leite é pouco, junta-se o de dois dias e o que algum vizinho não usa. Estratégias de poupança e economia de recursos, que os frigoríficos facilitam. O requeijão é feito com o leite almeice, um subproduto do fabrico do queijo, que antigamente se comia com sopas de broa. Chamam a esse soro seca-relvas, mas não consta que secasse estômagos!
Segundo um dos meus interlocutores, os cabritos desenvolvem-se mais se mamarem o leite todo. Assim, dado que as crias deste ano são para ficar, prescindiu de as empriscar e, consequentemente, de fazer queijo.
Em geral, os animais não coabitam com as pessoas, como acontecia quando a habitação privilegiava as necessidades da economia de subsistência, em detrimento do conforto. Mas isso não significa menor desvelo ou proximidade afetiva. Estou a pensar nos autores que atribuem o alojamento dos animais, nas lojas e currais do piso térreo da habitação, à necessidade de os proteger e tratar frequentemente, e não ao mítico contributo que dariam para o aquecimento das casas.
A acompanhar o declínio populacional e a transformação dos modos de vida, os rebanhos desapareceram e, com eles, os meninos e meninas pastores por obrigação e a troco de quase nada. Foram substituídos por uma, duas, três ou umas tantas cabras e por pastores por gosto, cujas motivações já não são de absoluta necessidade. Não representam uma fonte de rendimento significativa, mas continuam a contribuir para a autossuficiência das famílias e, nessa medida, a desempenhar um papel social e económico. Não mantêm a serra limpa dos matagais que a incendeiam, mas sempre vão roendo as ervas, que consomem a terra e as pessoas de a verem assim. Quanta evolução e, ao mesmo tempo, quanta sobreposição de tempos, valores, práticas e costumes!
Todavia, persistem a vocação da serra para a caprinocultura e as potencialidades da atividade, no âmbito de estratégias atuais de economia empresarial e social. Para já, não se verifica apetência para o setor por parte das camadas mais jovens. Quem sabe, no futuro, em interação com o turismo rural e outras atividades terciárias?
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 25 de março de 2015
4 comentários:
Excelente publicação.
Parabéns.
É sempre um imenso gosto renovado, ler os seus textos excelentemente escritos, cheios de rigor, humanidade e memória - a memória dos sons da infância, das palavras antigas, dos cheiros, dos sabores... é uma festa para os sentidos!
Bem-haja, Drª Lizete Matos. E fico à espera do próximo ;-)
Deonilde Almeida (Colmeal)
Um fiel retrato social e económico das comunidades aldeãs da serra, com base nesse magnífico animal a que já chamaram a vaca do pobre - a cabra.
Isto fez-me recordar a minha infância e adolescência, passadas na aldeia da minha mãe, perto de Moimenta da Beira, muitas vezes bebi leite de cabra que a minha prima tirava quando andávamos a
pasta-las, sem ser fervido diretamente do animal para a nossa boca e não morremos, belos tempos. Parabéns pelo artigo
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