Enquanto
constituiu o principal fator de produção, a terra era o bem mais precioso,
tanto do ponto de vista material como simbólico, representando sobrevivência e
rendimento, segurança e prestígio social. Era um fator identitário tão
importante, que ainda hoje se chama terra
ao local de nascimento.
Embora
escassa e pouco daimosa, da terra e pela terra se vivia e morria. Na nossa
região como em outras, desde cedo que se partiu para no regresso a comprar (e
para construir casa ou melhorar a que já se possuía). Todos precisavam dela, na
dupla função de que se revestia: terra de cultivo, não raro trazida de longe para
erguer os “combaros” magros; e terra de mato e floresta. A primeira fornecia o
milho, que era a base da alimentação transformado em broa, mais tarde as
batatas e tudo o resto; a segunda, o mato indispensável como cama e alimento
para os animais, que o transformavam no estrume adubo da terra. Dada esta
dependência mútua, sempre que possível, a uma área de cultivo deveria
corresponder uma testada de mato. No que se refere à floresta, igualmente
decisivas eram as castanhas, a madeira, a lenha e a resina, uma das poucas
fontes de rendimento líquido, antes da vulgarização do eucalipto.




Num
contexto de micropropriedade sempre insuficiente para assegurar o sustento
digno das famílias e a concretização das suas aspirações de uma vida melhor, nas
palavras de um nosso conterrâneo, reportando-se aos anos cinquenta do século
passado,
“As pessoas
que tinham terra conseguiam (…). Tinham tudo. Tinham milho,
tinham feijão, tinham azeite, portanto, não precisavam de comprar essas coisas
e, isso, naquela altura, era o essencial. Eram pessoas ricas, tinham isso
tudo”.
Mas,
possuir a terra significava “trabalhar, trabalhar,
trabalhar” ou “uma trabalheira, uma trabalheira”. Na realidade, ausentes os maridos
e os filhos mais velhos, a terra era excessiva para a capacidade de trabalho
das mulheres e dos rapazes pequenos, mas insuficiente para permitir o recurso a
mão-de-obra assalariada. Ainda assim, fortemente associada à ideia do regresso,
a posse da terra, que era preciso manter produtiva, acabou por adiar a partida
de muitas mulheres para a cidade e, com elas, a partida definitiva de todos.
Bem deste modo raro e essencial, não admira que a propriedade
rústica se apresente extremamente fracionada, sobretudo em territórios de
minifúndio, relevo acentuado e solo pouco fértil, como o nosso. Acresciam os
costumes de herança, que privilegiavam o uso, dividindo pelos herdeiros, independentemente
da dimensão, os diferentes tipos de terra herdados: de semeadura boa e má, com
ou sem água, próxima ou distante das aldeias, com ou sem mato e árvores. Daí a
proliferação dos prédios/artigos, alguns com área inferior a 20 m2. Na
expressão de outros conterrâneos:
“O
meu avô materno não tinha nada. Tenho lá dezenas de papéis de compras que ele
fez, um bocado aqui, outro ali, outro acoli,
que nem sei onde estão, para onde foram (…)”
“Quando fiz a relação de bens, ainda deu uns sessenta e
tal prédios rústicos. Só que são de umas dimensões tão pequenas, tão pequenas,
que nem é bom considerar aquilo como prédios. São umas faixazinhas de terreno
onde, noutros tempos, existia uma oliveira e hoje existe mato. Não valem nada
em termos económicos. E os terrenos agrícolas, praticamente, também não têm
qualquer valor, a não ser para plantar lá oliveiras ou uns pinheiritos ou
qualquer coisa assim. Mas não dá para o trabalho.”
“Aquilo já eram uns “combarozecos” sem valor.
Depois das partilhas, dividido por todos, não deu nada a cada um. Deve estar
tudo cheio de silvas e de mato e eu nem quero lá ir para não ter pena de ver as
coisas assim. Trabalhei lá tanto quando era rapariga!”
Enfim, propriedades que
justificam o humor bonacheirão de um alvareense, que dizia para alguém que
estava a gabar-se das posses que tinha: “Áh, pois! Eu também sou muito rico. Lá
na minha terra tenho uma quantidade de prédios! Tão grandes, tão grandes, que
um burro deitado neles fica com as patas de fora!”
Uma outra característica
da propriedade rural na nossa zona é a irregularidade da forma. Radicando na
orografia e nas práticas de divisão e apropriação da terra, a disformidade dificulta
imenso o conhecimento/reconhecimento, nomeadamente dos terrenos florestais. Por
exemplo, uma estrema podia ficar enviesada, em vez de direita, apenas porque um
dos proprietários não prescindia de ficar com alguma árvore que por ali se
encontrasse. Com exceção para os sobreiros, por razões conhecidas, na zona, não
existia o conceito terreno de um, árvore do outro.
Nas fazendas de semeadura,
os limites e estremas eram constituídos pelas paredes que as sustentavam ou
pedras específicas nelas inseridas, por lajes ao alto ou fileiras delas. As
lajes estremavam roubando muito pouco terreno de cultivo, ao mesmo tempo que
impediam a terra de resvalar para o bocado (terreno) do vizinho.



Nos terrenos florestais, de
delimitação mais complicada, os marcos podiam ser uma parede, um barroco, um
caminho ou uma levada, mas geralmente eram também uma pedra esguia espetada no
chão, apoiada por duas laterais mais pequenas. Estas pedras mais pequenas representavam
a boa-fé das partes e as pessoas que testemunharam a colocação dos marcos, ainda
hoje dando pelo nome carinhoso de testemunhas. Os marcos colocavam-se em todos
os extremos da propriedade e também a meio, se a dimensão o justificasse. Os
marcos de topo ou fundo deveriam ser colocados na horizontal, os laterais, na
vertical. Uma vez que muito raramente as pedras tinham altura superior a 30/40
cm, é natural que hoje a vegetação as envolva e oculte, sendo então uma sorte
encontrar a sorte (parcela) que
delimitam. Para obviar ao problema, veem-se marcos assinalados por meio de
tinta, adição de estacas altas ou colocação de marcos mais visíveis ao lado dos
antigos, sempre sem lhes tocar. Amor e honradez a quanto obrigas! Quanto
trabalho, tudo transportado e feito à mão! Há quem tenha feito a georreferenciação
dos terrenos logo no início dos anos 2000.





Por efeito da erosão, da
exploração madeireira, dos fogos ou de mãos furtivas, muitos marcos têm
desaparecido ao longo do tempo. Outros persistem, estremando propriedades
diminutas, e lembrando agora falos inúteis à espera que a terra rejuvenesça para
ser fecundada.
A
apropriação da terra foi e é um processo lento e em dinâmica permanente. Em
relação ao passado, ocorrem-nos práticas mais ou menos aceites ou abusivas de
alteração da ordem estabelecida, como mudar marcos - “o pior pecado que se pode
cometer”, no dizer de uma senhora agora nonagenária -, semear centeio, plantar
árvores ou construir um muro em terreno alheio, desse modo se apropriando, pelo
menos, da parte intervencionada. Entre outras, práticas que davam azo a grandes
desavenças vicinais ou familiares, e continuam a justificar litígios nos
tribunais.
Mais
recentemente, avultam as alterações introduzidas pelas últimas avaliações da
propriedade rústica (1988), a saber: as omissões e apropriações indevidas; a
atribuição de áreas incorretas, aos artigos, podendo ser superiores ou
inferiores à realidade; a atribuição aos sítios de nomes e números diferentes
dos que tinham, que veio tornar mais confuso o que já o era; o “emparcelamento”
ou junção obrigatória de prédios contíguos pertencentes ao mesmo proprietário, bem
como de terrenos de cultivo e florestais, que alterou as dimensões e formas que
as pessoas conheciam.
Quando
conheciam! Nessa altura, há muito que o êxodo tinha esvaziado as aldeias,
transformando a agricultura de subsistência - que promovia o uso e o inerente
conhecimento dos terrenos -, em atividade meramente residual. Consequentemente
e em linha com a estrutural perda de peso do setor primário, a terra tinha-se desvalorizado
simbólica e materialmente, deixando de ser percecionada como fonte de
rendimento e fator de diferenciação social. Mantendo, no entanto, para as
gerações mais velhas e ainda nascidas nas aldeias, um valor identitário e afetivo,
de memória e securizante.
“Para mim, as terras que eu tenho por aí não valem
nada para o meu sustento, porque eu não as vou tratar (…). Também não tenho a
intenção de vender (…). Acho que é um património que cada um valoriza à sua maneira
(…). É só porque são minhas, é um valor afetivo.”
“Valor patrimonial não tem nenhum. É um valor afetivo.
Conheço aquilo, conheço aquela árvore que a vi nascer, sei o estado em que ela
está, todos aqueles recantos, a água que corre ali, quer dizer, aquilo tudo me
diz, mas só a mim é que diz, porque eu cresci ali. Aquilo não vale nada, mas se
lá for, é quase uma romagem (…).”
“Uma
segurança e uma lembrança. Lembrança da minha meninice e segurança porque, se
por qualquer motivo eu não conseguir viver na cidade, tenho aqui onde viver. Tenho
casa, tenho terras para cultivar. É mesmo isso, é uma segurança. (…).
Verdadeiramente,
quando da realização do estudo que temos vindo a citar, a terra-solo só era
indiferente a três dos nossos conterrâneos. Já em relação aos filhos e netos, os
que abordaram a questão foram unânimes na referência a um certo desinteresse
feito de desconhecimento. Tratando-se de uma postura coerente com a evolução
social global e com as trajetórias e modos de vida individualmente
protagonizado, como será hoje?
Terras
dispersas, desprovidas de escala e outras condições de exploração económica
rentável, algumas encontram-se hoje entregues a si próprias, desconhecendo os proprietários
herdeiros a sua localização e as respetivas estremas, apesar de poderem pagar
IMI. Uma situação que arrastará necessariamente a reconfiguração da propriedade
rústica. Associada, naturalmente, à premência de manter os terrenos limpos, e à
complexidade e elevado custo dos procedimentos de prova de posse e registo
oficial.
Até
lá – um lá que a agenda política diz estar próximo – em dez concelhos, entre os
quais Góis, é possível proceder, gratuitamente, à regularização registral e
matricial de prédios rústicos (terrenos de cultivo e florestais). O prazo
termina em 31 de outubro próximo e o registo exige a georreferenciação prévia, igualmente
viável no âmbito do projeto. É o que consta de um folheto verde que todos
recebemos há uns tempos com a fatura da água. Para quem se interesse pelo
assunto, poderá ser uma oportunidade. Embora escurecidos, os marcos que restam são
agora visíveis em muitos sítios.
Tempos
e mundos distintos em sobreposição, presente, passado, quem sabe, se futuro?! Em
homenagem e para registo da memória coletiva.
Lisete
de Matos
Açor,
Colmeal, 27 de março de 2018.