24 fevereiro 2012

Sou desse tempo…


Ao ler na Revista do Semanário Expresso, de 18 de Fevereiro, este artigo de Clara Ferreira Alves, que transcrevo quase na sua totalidade, não pude deixar de me transportar aos meus anos de menino e moço, quando no meu bairro também havia uma taberna, uma capelista, …

“No bairro, havia uma taberna que servia de carvoaria, uma capelista, uma mercearia, um lugar de frutas e legumes, uma leitaria, uma padaria, e uma oficina de mecânica com soldadura. Na taberna comprava-se vinho de adega cooperativa. Levava-se a garrafa a encher. O vinho era tirado dos barris de madeira encostados às paredes de mármore rosado. Usava-se um funil de metal. Copos e garrafas de vidro. O balcão era de pedra, limpo com um trapo molhado. O chão era varrido com vassoura de vimes.
No inverno, comprava-se carvão em brasa, para aquecer as braseiras das camilhas. Algumas camilhas eram de croché, feito com agulhas de metal por donas de casa que nunca estavam sem fazer nada. Faziam-se colchas, napperons, toalhas, guardanapos enfeitados. Fazia-se tricô. O tricô era de camisolas e cachecóis para o frio. No Natal, faziam-se bainhas em fraldas de pano para os pobres da igreja. Ou botinhas e casaquinhos de bebé. Nas escolas, as raparigas tinham a obrigatoriedade anual destes trabalhos chamados manuais. Os rapazes tinham desporto. Os mais pobres jogavam futebol com uma bola de trapos. Na capelista, compravam-se linhas, agulhas, botões e coisas de costura. Havia muitas mulheres que tinham uma máquina de costura – Singer - e faziam o vestuário da família. Ou ia-se à modista com os figurinos da “Burda” e a modista executava, depois de duas provas e várias alfinetadas. Ia-se ao alfaiate. As roupas eram de lã, algodão, flanela, ou materiais sintéticos duráveis como o nylon ou o terylene. As meninas usavam organdi e as senhoras chiffon. Como diz o poema de Assis Pacheco: chamavas-te Nini, vestias de organdi…
As lojas de pronto a vestir eram raras e estavam na Baixa. Em Lisboa, ir ver as montras, visitar os Grandes Armazéns do Grandella e tomar chá na Pastelaria Suíça ou na Ferrari era um divertimento mensal. No verão comia-se um gelado na Veneziana. Ia-se jantar ou almoçar fora por ocasião festiva. Os aniversários significavam dias na cozinha, porque tudo era caseiro, os pastéis, os bolos, e o bolo de anos, uma confecção de açúcar e claras de ovo com confeitos prateados. A família conversava horas a fio. Escreviam-se cartas.
Os ovos dos bolos vinham das galinhas da quinta. Nos quintais, havia gente que criava galinhas em capoeira, para ter o ovo diário, e plantava couves de repolho. As capoeiras cheiravam mal no calor. O que não se trazia “da terra”, fruta, batatas, carne da matança do porco para os que tinham família fora das cidades, era comprado na mercearia e no lugar de frutas e legumes, onde os produtos eram do dia. Na mercearia compravam-se secos e molhados e os merceeiros penduravam à porta rabos de bacalhau com salitre que empestavam o ar. O grão e o feijão estavam em sacos de serapilheira. Tudo era pesado na balança e os mais pobres compravam fiado. Compravam açúcar a prestações, farinha a prestações. Pagavam no final do mês, quando se recebia o ordenado.
Na leitaria, comprava-se leite e iogurte em boiões de vidro, com depósito até à devolução. Na padaria compravam-se carcaças de maminha amassadas à mão e cozidas em forno de lenha. Também se compravam bolos de padaria, grossos, porque os finos, com creme, eram vendidos na pastelaria. Os éclairs. E os mil-folhas. Nos cafés havia estudantes e velhos que se sentavam às mesas a estudar e a ler uma manhã ou uma tarde. Uma bica, um bagaço. O jornal. Um livro. Alguns cafés tinham bilhares na sala dos fundos, um aquário de silêncio e concentração. Fumo, giz riscado, a dança dos jogadores.
Não havia televisões. Nem anúncios. Havia tempo. Fumavam-se cigarros enrolados ou cachimbo. Ao contrário das tabernas, com os bêbados, nos cafés respirava-se elegância. Tertúlia. Ouvia-se na rua o gemido dos eléctricos ou os autocarros da Carris a resfolegarem. Telefonava-se de cabinas telefónicas inglesas, como os autocarros.
Na oficina consertava-se tudo. Nada se deitava fora. Varinhas de chapéus de chuva, fogões, utensílios. Frigoríficos, transístores. Coisas eléctricas. No sapateiro punham-se meias-solas. Havia um par de sapatos de verão e outro de inverno. Um casaco de verão e outro de inverno. Os alunos usavam uniformes para não estragarem a roupa. Dava-se esmola e ajudava-se o próximo.
Era assim… “

Tenho a certeza que aqueles que moraram na Mouraria, na Graça, nas Escolas Gerais, em Alfama ou na Madragoa, bairros antigos desta cidade de Lisboa que acolheu muitos dos nossos conterrâneos, todos eles ainda terão nas suas memórias o que Clara Ferreira Alves aqui nos recordou.

A. Domingos Santos

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