Depois de os incêndios de outubro de 2017, que ceifaram vidas
e destruíram bens materiais e simbólicos irrecuperáveis, por diversas vezes me
referi às consequências nefastas dos mesmos e ao lento processo de regeneração
da natureza. Antes de voltar ao assunto para um ponto da situação, faz-se uma síntese
dessas referências.
Em dezembro de 2017, aludia-se à escuridão triste e
generalizada do território, mostrando nua a sua geomorfologia e, em ruinas, as
marcas da ação do homem ao longo do tempo, para nele sobreviver com parcimónia
e esforço.
Seguidamente, em fevereiro de 2018, lamentava-se o
agravamento das assimetrias inter e intrarregionais provocado pelo fogo, nomeadamente
no campo das telecomunicações, infraestrutura essencial para viabilizar a
sustentabilidade das regiões, especialmente das mais deprimidas em termos
demográficos e socioeconómicos. Mais tarde, em março,
assinalava-se a destruição adicional provocada pela chuva, que na ausência de prevenção
e vegetação que a prendesse à terra queimada, devastou mais património natural
e construído, beleza e potencialidades.
Na
altura, a esperança ténue traduzia-se no despontar de umas tantas ervas e
plantas mais corajosas. Da ação pública nada a dizer, tal como na nota de abril,
que celebrava o demorado mas paulatino rejuvenescimento da natureza.
Entretanto,
retomando aqui o que dizia num outro contexto, nunca tantos e tão responsáveis falaram
tanto sobre o interior, como se os incêndios tivessem despertado as
consciências adormecidas que estiveram na origem da situação. Afinal, o que
aconteceu foi apenas uma trágica mas natural consequência do abandono de sempre
a que muitos territórios têm estado votados, com as inerentes penalizações económicos
e culturais, de qualificação e massa crítica, de ocupação e uso do espaço. De
modo muito convincente, insistiram na necessidade: de promover a coesão social
e territorial, a discriminação positiva, a igualdade de oportunidades e a
sustentabilidade das regiões; de investir no interior, de repor serviços de
proximidade e descentralizar, tendo-se até criado novas Secretarias de Estado,
como a da Valorização do Interior; de criar incentivos fiscais e outros para fixar
populações e empresas; de prevenir os incêndios, nomeadamente através do
reordenamento da floresta, do reforço da limpeza à volta das povoações e das
medidas previstas no programa Aldeias Seguras, Pessoas Seguras. Sem água suficiente
e bocas-de-incêndio?
Enquanto residente, e apesar de as
solicitações que fizemos, não dei conta de grande coisa acontecer, para além de
umas ações de sensibilização que pressuponham pessoas e meios que não existem.
Quase dois anos passados, as habitações que arderam ainda não foram concluídas e
o que foi limpo foi-o exclusivamente por iniciativa privada! A fibra ótica não
chegou, não obstante as promessas do senhor Alexandre Fonseca, a quem se ouviu dizer,
na rádio, que a Altice cobriria, inclusive os territórios de baixa densidade
populacional, até ao final do ano passado. Sem fibra, a dependência da rede
móvel faz com os serviços faltem dias inteiros ou partes do dia, sendo sempre
de insuficiente qualidade por défice de sinal ou condições atmosféricas
desfavoráveis. Mas pagamos o pacote como se recebêssemos os serviços nas condições
teoricamente previstas! Em alguns troços da estrada, que onde esburacou
persiste esburacada, a junta de freguesia cortou as árvores ardidas, um pouco
por toda a parte, estão lá, a ameaçar os transeuntes que temem pela vida mas, não
têm alternativa. Para não me repetir mais, nem falo das restantes necessidades
básicas anteriormente mencionadas.
Determinada,
a natureza continua em lenta mas persistente recuperação, igualmente sobretudo por
iniciativa própria. Apenas a madeira ardida foi retirada em algumas zonas, por
vezes a lucro zero para os proprietários (os roços verticais abertos não virão
a contribuir para agravar a erosão?) e a plantação de árvores ocorreu, por
exemplo, na limítrofe freguesia de Cepos. Episodicamente, arrancaram-se eucaliptos
e outras invasoras, num esforço hercúleo para repor a ordem na desordem
instalada.
Em
termos de paisagem, a evolução tem sido surpreendente, nomeadamente no que se
refere às cores e tons de que a serra se vai revestindo. Depois da timidez inicial,
as encostas mostravam esta primavera, de permeio com os chamiços negros de pé, um
colorido mais intenso. O verde acentuou-se com a renovação da generalidade da
vegetação, enquanto os fetos secos do ano passado e as clareiras abertas pela
exploração madeireira pintalgam formas cuja cor varia com a luz.
Infelizmente, também na natureza reinando a lei do mais forte, a par com os eucaliptos e as acácias, as giestas multiplicaram-se exponencialmente, tal como um conjunto de herbáceas expeditas que teimam em substituir os matos, acrescentando risco em caso de incêndio. Contam-se entre estas, as gramíneas, a alface-do-monte e a samacalo (Anarrhinum belidifolium), uma planta de pé lindíssimo em rosácea. Ainda no que respeita aos matos, as carquejas, que são extremamente resistentes, vicejaram e floriram de amarelo contentes, mas as várias espécies de urze, de flor avermelhada, atrasaram-se.
Confirma aquela observação a cor do mel, produto quase inexistente em 2018, que regressou este ano ainda desmaiado, mas em vias de recuperar as propriedades organoléticas que o tornam único, qs Amuito escuro, viscoso e agradavelmente acidulado.
Entretanto,
devido à erosão e ao empobrecimento da massa genética, há áreas onde as formas
arredondadas da serra teimam nuas e fragosas, num ondulado grandioso de deslumbramento
e sedução!
No campo dos insetos, regressaram as abelhas, que tão importantes são para a reativação da natureza através da polinização e, com elas, mau grado nosso, montes de vespas comuns, asiáticas e crabro. Matando os insetos polinizadores, a vespa asiática ou velutina destrói os apiários, contribuindo para desequilibrar o ecossistema. Todas chamam um figo aos morangos!
Também
já se avistaram mais borboletas, besouros e escaravelhos, todos encantadores. Invisíveis
permanecem os mamíferos e os répteis, espécies interligadas. Muito comilonas,
reapareceram as pequenas aves, embora tenham diminuído, comparativamente com o
passado, os efetivos de tentilhões, verdilhões, chapins e piscos. Perto de
casa, por falta de alimento longe, vi pela primeira vez um peto (no caso, pica-pau-malhado)
a libertar uma ginjeira das formigas que a afligiam. Muito engenhoso e bonito,
pena ser tão arisco!
Como
a intensidade e a abrangência da mudança!
Açor, Colmeal, julho de 2019.
Lisete de Matos