No Colmeal, aldeia serrana onde o despovoamento, tal como em tantas outras, tem deixado marcas visíveis, a visita pascal pode dizer-se que assume também uma função simbólica de resistência cultural. Em cada beijo ou gesto de reverência à cruz, em cada oração dita em uníssono, no toque da sineta que ecoa por toda a aldeia, revive-se a memória de outros tempos mais cheios, mais ruidosos de vida, onde a fé e a festa andavam de mãos dadas. Os mais velhos transmitem aos mais novos o sentido do ritual, tornando este momento numa passagem viva de valores e de tradição.
“A pequenina aldeia do Colmeal,
sede de freguesia, parecia já uma terra citadina, com movimento e desenvoltura.
O largo da Fonte assemelhava-se a um pequeno parque de estacionamento de
automóveis; já se viam fatos domingueiros à moda da cidade, já as ruas
estreitas e empedradas davam para portas abertas de ano a ano. É a Páscoa.
Muitas pessoas de Lisboa e outros sítios quiseram vir aqui passar o dia da
Ressurreição do Senhor. Vieram, embora só por visita, e fizeram bem. Reviver
tempos idos e lembrar a infância é cortar longas horas na catadupa veloz da
vida, é viver o passado no presente, é adormecer na melopeia compassada do dia
a dia.” (in “O Colmeal”, boletim mensal da paróquia, nº 68, abril de 1966;
responsável – Padre António Diniz)
A chuva que caiu copiosamente
sobre o Colmeal e o vale do Ceira no período do tríduo pascal, não impediu que,
de novo, a alegria da Páscoa se fizesse sentir na nossa aldeia, onde, à
semelhança do que o articulista do jornal “O Colmeal” referia, há quase 60 anos,
afluíram muitos colmealenses, que, “embora só por visita”, não quiseram
deixar de estar presentes neste período festivo, este ano marcado por algumas
novidades.
Na tarde de sexta-feira, aproveitou-se a presença, no Colmeal, de muitos elementos dos corpos sociais da União Progressiva da Freguesia do Colmeal e de outros associados para, em conjunto, trocar impressões sobre as próximas atividades da coletividade, que em setembro assinalará os 94 anos de existência.
Uma novidade deste ano foi o
espetáculo musical que teve como protagonista o cantor Cristiano Cardoso Neves,
vindo de Ançã, que interpretou um leque variado de composições musicais, de
Zeca Afonso aos Quatro e Meia, incluindo uma composição original (“Dona Carlota
Joaquina”), as quais agradaram e animaram os que, naquela tarde chuvosa de
sábado, afluíram em número significativo ao salão da Casa de Cultura e Convívio
do Colmeal (o “Centro”). A U.P.F.C. aproveita para agradecer à Comunidade Local
dos Baldios do Colmeal pela sua colaboração neste evento, bem como a todos os
associados e amigos que contribuíram com géneros para os dois cabazes de Páscoa
que foram sorteados e a todos os que, comprando as rifas, deram o seu
contributo para esta iniciativa.
Ao cair da noite, outra novidade foi a vigília pascal, que fazia anos não se celebrava na nossa igreja, a qual se encheu para celebrar a “mãe de todas as vigílias”, assim chamada por Santo Agostinho, pela sua riqueza simbólica, tal como o celebrante, o pároco, padre Orlando, teve ocasião de relembrar aos fiéis presentes. De forma simples e vivida, celebrou-se a passagem “da morte para a vida”, com a Liturgia da Luz, a Liturgia da Palavra, a Liturgia Batismal e a Liturgia Eucarística, marcadas pela alegria da Ressurreição de Cristo.
Na manhã do domingo de Páscoa, teve lugar a tradicional visita pascal, um ritual cujas origens se perdem no tempo e que, para além da sua dimensão eminentemente religiosa – o prolongamento litúrgico da celebração da Páscoa com o anúncio da Ressurreição de Cristo, bem como a bênção dos lares dos fiéis –, funciona como símbolo de pertença à comunidade colmealense e um momento de reencontro entre os que vivem dispersos em tantas localidades.
Se em 1960, tal como então informava “O Colmeal”, a visita pascal se prolongava por três dias, pois decorria no “Domingo de Páscoa – Colmeal, Carvalhal, Aldeia Velha, Porto Chão, Coiços e Loural. Segunda-feira – Foz da Cova, Quinta de Belide, Malhada. Carrimá e Soito. Domingo de Pascoela – Sobral, Salgado, Saião, Val de Asna, Ádela e Açor”, este ano, à semelhança dos anos anteriores, dois grupos de leigos asseguraram a visita no domingo de Páscoa: um percorrendo as localidades da antiga freguesia do Colmeal situadas na margem esquerda do Ceira (Carvalhal, Aldeia Velha, Soito e Malhada), e outro as da margem direita (Colmeal, Ádela, Açor e Sobral).
O percurso das “Boas-Festas” no Colmeal, assinalado pelo tradicional som do badalo da sineta, foi, também, o habitual, tendo início na Eira, passando pelo Estreitinho, o Barroco, a Cruz da Rua, o Canto, o Cimo do Lugar, o Largo da Fonte, o Lombo das Vinhas e terminando no Soladinho, num total de cerca de 30 casas onde se fez ouvir o anúncio, feito pelo sacristão, acompanhado pela aspersão de água benta: “Este é o dia que o Senhor fez. Nele exultemos e nos alegremos, Aleluia, Aleluia!”.
Para além das amêndoas, folares, ovos e coelhinhos de chocolate, associados às festividades pascais na atualidade, não passou despercebida a tradição da presença, nas mesas de algumas casas, de laranjas, associadas à hospitalidade, à partilha e à renovação primaveril, um sinal singelo da alegria pascal expressa através dos recursos simples da terra.
Conservar estas tradições é
conservar a alma do Colmeal. A celebração da Páscoa, especialmente a visita
pascal, continua a ser um espelho da história e da fé da nossa aldeia, um
testemunho de como, mesmo em tempos de mudança, a nossa comunidade encontra no
sagrado e no simbólico o alimento necessário para manter viva a sua identidade.
Rui Ferreira
UPFC