O Correio
Até ao início do século XX, mais concretamente até à 1ª Grande Guerra, o povo vivia toda a sua vida na região onde tinha nascido e as suas deslocações não iam além da feira ou romaria mais próxima. As mensagens que enviasse a algum parente seriam orais, levadas pelo almocreve, pois nem remetente nem destinatário sabiam ler ou escrever.
Assim se compreende que, embora os nossos reis tenham dado grande importância ao correio, as nossas pobres aldeias serranas ficariam esquecidas por muito tempo.
O rei D. Manuel I tinha criado, em 1520, o “Correio-Mor”, com o objetivo de garantir o envio de correspondência do rei, de instituições e de particulares. Esse cargo, pela sua importância, era bem remunerado e era desempenhado por um cavaleiro da sua confiança. O cavaleiro percorria em média 40 km/dia e tinha de garantir cavalos de troca ao seu dispor, ao longo do percurso, com qualquer condição de clima.
Pelas “Memórias Paroquiais” [1] (1758), sabemos que, em meados do século XVIII, já se podia receber correio em Góis. Porém, observando o mapa[2], percebemos que, em rigor, se tratava de um correio sobretudo de utilidade judicial – de ligação entre os diversos juízes.
Figura 1 - Correios referidos nas "Memórias Paroquiais de 1758” (extrato)
Já no final desse século, em 1797, o “Correio-Mor” é substituído pela “Mala Posta”, mais organizada e regulamentada.
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Figura 2 – Carruagem da Mala-Posta (pormenor), Fonte de imagem: Fundação Portuguesa das Comunicações |
As Malas-Postas eram carruagens “cuja função primária era a do transporte do correio, e garantiam, pela primeira vez, um serviço regular, realizando os percursos à segunda, quarta e sexta-feira. À mesma hora, cinco da manhã, uma diligência partia de Lisboa, enquanto outra saía de Coimbra.” [3]
Essa viagem, era feita em carruagem identificada, nas portas, com o brasão real, o que lhes conferia proteção pois qualquer ataque a estas carruagens (propriedade da coroa) era como se fosse feito à própria rainha (D.Maria I) – era crime de “lesa-majestade” – refletindo a importância que a coroa dava a este serviço. Era puxada por duas parelhas de cavalos, que seriam trocados ao longo do percurso, nas várias estações de muda e, de Lisboa a Coimbra, chegava a demorar 40 horas.
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Figura 3 - Carruagem da Mala-Posta, em painel de azulejo, na antiga estação de troca da Anadia |
A carruagem da Mala-Posta, além da mala do correio, podia transportar até quatro passageiros. O custo da viagem era de 45 reis por km, em 1ª classe, e de 30 reis em 2ª classe.
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Figura 4 - A “ceia” e a “pernoita”, em painel de azulejo, na antiga estação de troca da Anadia |
Devido ao mau estado das estradas e aos salteadores que as frequentavam, não era aconselhável viajar depois do pôr-do-sol, pelo que pernoitavam numa das estações de troca.
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Figura 5 – “Mala-Posta do Alentejo”. Fonte de imagem: Fundação Portuguesa das Comunicações |
A partir de 1852, a estrada é melhorada, utilizando o método “Mac-Adam” e, com essa melhoria, esse percurso passou a fazer-se em 34 horas.
Por essa altura, todos os dias saiam de Lisboa duas “Malas”, uma em direção ao norte, outra para o sul.
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Figura 6 - Selos D.Maria II, primeiros selos postais portugueses |
Em 1853 surgem os primeiros selos postais[4], de 5, 25, 50 e 100 reis, para pagar o porte da correspondência. Para o Colmeal, seria mais caro pois, além do selo, a partir de Coimbra, o transporte de cartas para Gois e, daí até ao Colmeal, era feito por portadores, a quem se pagava pela tarefa.
Entre aldeias, na serra, as mensagens continuavam, no entanto, a ser levadas oralmente, pelos comerciantes que, por ocasião das feiras, circulavam de uma aldeia para outra. O "recado", mais informal, também era levado, de aldeia em aldeia, pelas pessoas que se encontravam na missa, ou pelos pastores de duas aldeias que se encontrassem na serra, enquanto guardavam o gado.
De qualquer modo, tendo em conta a permanência do elevado analfabetismo da população – além do padre, poucos sabiam ler – seria muito rara a necessidade de transportar mensagens escritas vindas de longe.
Porém, ao longo do século XIX, ocorreu um considerável aumento da população sem que a pobreza dos solos serranos lhes garantisse o sustento. A migração, sobretudo para Lisboa ou mesmo a emigração, principalmente para a América e Brasil, atraiu cada vez mais gente e muitos foram os que partiram. Assim, a distância criou a necessidade de ter notícias dos familiares, ou de os informar de acontecimentos importantes, como nascimentos ou mortes.
Embora já fosse possível enviar e receber uma carta a partir de Góis, era necessário, primeiro encontrar alguém que a escrevesse e, depois, um portador que levasse a carta até à estação da Mala-Posta, em Coimbra.
A introdução dos comboios, na segunda metade do século XIX, e a inauguração da linha Lisboa-Coimbra, em 1864, vem substituir a Mala-Posta e, com essa inovação, os correios beneficiaram de grande desenvolvimento.
As zonas serranas, porém, por falta de estradas[5], permaneceram no seu isolamento e não acompanharam este progresso.
Assim, no “Mapa dos Correios de Portugal” [6] de 1870, verificamos que, nessa data, ainda não existia serviço de correio no Colmeal.
Dois anos depois já seria possível receber correio em Góis, mas era apenas uma delegação dos correios da Lousã que, com Arganil, eram as principais Estações de Correios da região.
A linha que, no mapa, une as povoações diz-nos que o transporte da “Mala” para estas localidades, pelo funcionário dos Correios, era feito a pé ou a cavalo, desde o caminho de ferro, em Coimbra.
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Figura 7 - Extrato do “Mappa dos correios no continente do reino de Portugal”(1870) |
Quanto ao caminho de ferro, seria iniciada em 1889 a construção da tão desejada linha “Coimbra-Lousã-Góis-Arganil” que (pensava-se…) havia de pôr fim ao isolamento da região[7]. Mas, mesmo essa, nem a Góis chegou – ficou em Serpins!
Em 1885, continuava a não existir estrada que ligasse o Colmeal a Góis – tinha sido iniciada dois anos antes, mas logo suspensa a construção. No entanto, em julho desse ano, o serviço de Correios foi finalmente aberto, no Colmeal e no Cadafaz.
O correio, vindo de Coimbra, chegava a Gois às 8h, onde já se encontrava o estafeta, que levaria a Mala para o Cadafaz e depois para o Colmeal.
O correio era transportado, através da serra, numa “Mala de Correio” que, em rigor, era um saco de lona, com uma correia de couro, equipada com um sistema de bloqueio.
Quando o saco estava cheio, com cartas, postais ou pequenas encomendas, utilizava-se a correia de couro para fechar o saco, fazendo-a passar por um dispositivo mecânico onde era colocado um selo especial, assinado pelo chefe da estação e, em seguida, fechava-se a tampa do dispositivo, que perfurava o papel. Para abri-la, era necessária uma chave própria.
Por volta das 11:00h, o estafeta chegava ao Cadafaz, onde ficava até meio da tarde. Depois, seguia pela Candosa até ao Colmeal. Na Candosa, existia um Correio um pouco peculiar – não era feita distribuição de correio, mas, por razões práticas, decidiu-se instalar um “Posto de Correios” nesta aldeia. Na verdade, o “Posto”, era a casa de um residente da aldeia, onde se podia comprar os selos, receber e depositar o correio, que o estafeta depois recolhia.
Depois da Candosa, o estafeta dirigia-se a um pontão, para atravessar o rio Ceira. Era uma ponte de madeira relativamente simples, com uma extensão de cerca de 5m e apenas 1m de largura. Naquele local o rio corre entre duas altas escarpas cortadas na rocha e, sobre elas, repousavam três enormes troncos de castanheiro, unindo as margens. O tabuleiro do pontão era formado por tábuas pregadas aos troncos. Os dois corrimãos também eram feitos de madeira.
Atravessando o rio, o estafeta seguia o caminho ao longo da margem, até ao Colmeal, onde chegaria por volta das 17h.
Quando chegava, ia descansar algumas horas, enquanto esperava o fecho da Mala seguinte, o que era feito por volta das 21h. Nessa altura, encerrada a Mala, o responsável da estação dos correios, levava-a para casa, pendurando-a à entrada do seu quarto. Durante a noite, quando o estafeta acordava para um novo dia de trabalho, entrava em casa do responsável da estação e, dirigindo-se à entrada do quarto, desejava uma boa noite aos que lá dentro dormiam. Era a forma de reconhecer que, aquele que tinha entrado em casa para pegar a Mala era, de facto, o estafeta.
Ainda de noite, saía com a Mala do Colmeal, repetindo o percurso no sentido inverso - seguia o rio Ceira até à Candosa, onde recolhia o correio da aldeia, dirigia-se ao Cadafaz para receber a Mala local, atravessava de novo o rio na Sandinha, em direção de Góis. Teria de lá chegar antes do amanhecer, pois às 8h partia o Correio com destino a Coimbra. Nessa altura, recebia as novas Malas e recomeçava o caminho inverso para as aldeias da Serra: Gois-Cadafaz-Candosa-Colmeal.
Ao sábado, o estafeta regressava com as últimas malas da semana, retomando a rotina na segunda-feira, saindo do Colmeal em direção a Gois.
O estafeta era um subcontratado, com quem os CTT ajustavam um pagamento anual. Era um trabalho solitário e perigoso pois, em caso de acidente, só passadas muitas horas seria socorrido. Contava o Sr. Guilherme (um dos últimos estafetas) que, nesse percurso através da serra, “ia com um lampião e os lobos a acompanhá-lo” [8].
Além das cartas, podia haver pequenas encomendas. Quando havia vários pacotes no mesmo dia, o estafeta deixava alguns em Góis, levando-os para o Colmeal ao longo da semana.
Quando alguém precisava de remédios da farmácia de Góis, era ele que os trazia. Atestando a confiança que nele depositavam, também era o portador de dinheiro, para depósito, que entregava ao Sr. Romeu Alves Batista, representante bancário em Góis.
Na década de sessenta, passou a existir uma linha de transporte de Malas de Correio, que saía da Lousã em direção à Pampilhosa da Serra, em carrinha subcontratada pelos CTT.
Nessa altura, a administração decidiu reorganizar o percurso do estafeta - a carrinha parava no Rolão, onde era aguardada pelos estafetas, que agora eram dois – um do Colmeal e outro do Cadafaz. Vindos a pé das respetivas aldeias, aguardavam a chegada da carrinha do Correio e cada um recebia e entregava a respetiva Mala.
No Rolão, no alto da serra, a 11km do Colmeal, havia um pequeno estabelecimento, da “Ti Martinha”. Os mais velhos, decerto ainda se lembram da designação pela qual também era conhecido esse estabelecimento: a “Catraia do Rolão". As Catraias eram “abrigos de apoio e pernoita (…) a salvação dos almocreves, que se socorriam daquelas primitivas áreas de serviço de pedra com restauração e repouso para tomarem uma sopa quente e desfrutarem de uma muito desejada noite de sono. (…) lugar de repouso não só de almocreves, mas de outros viajantes e também animais.” [9]
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Figura 8 - Da Catraia do Rolão, na imagem em cima, cerca de 1960 (Fonte de imagem: António Santos), restam as ruínas (imagem em baixo,2023)
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Contornando o estabelecimento da “Ti Martinha” (ou o que dele resta) e subindo ao cimo da serra, vislumbra-se uma sucessão de encostas, até onde a vista alcança, mas não se vê o Colmeal, escondido lá no fundo, junto ao rio Ceira (imagem em baixo). Era este o caminho percorrido diariamente, de manhã e ao fim da tarde, pelo portador da Mala, ao calor do verão ou encharcado de chuva, neve ou geada, enregelado, no inverno.
Germano de Almeida, o “Ti Germano”, foi durante muito tempo o estafeta responsável pelo percurso “Colmeal-Rolão-Colmeal”. No final da década, porém, era muitas vezes o seu filho Manuel, com apenas 10 anos, que substituía o pai nessa dura tarefa, de subir e descer a serra, com a Mala do Correio. Naquele tempo, desconhecia-se o conceito de “trabalho infantil” – todos comiam, todos trabalhavam.
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Figura 9 – Manuel (filho de Germano Almeida), último portador da Mala, em percurso a pé, desde criança. |
Quando o caudal do rio o permitia, o caminho era em linha reta – descia até ao pontão, onde atravessava o rio, subia a serra até ao Carvalhal e, de lá, até ao Rolão, onde chegava a tempo de depositar a Mala, pelas 19h, na carrinha do Correio.
No inverno, quando o caudal do rio era grande e não permitia a travessia pelo pontão, o caminho era mais longo… tinha de ir até à ponte e, atravessando-a, subia a serra em direção à Aldeia Velha ou ao Carvalhal e, daí, até ao Rolão. Depois, ele e o estafeta do Cadafaz, pernoitavam num pequeno espaço ao lado da casa principal.
Por volta das 7:30 da manhã, chegava a carrinha do Correio. O estafeta recebia a sua Mala e, com ela às costas, fazia o caminho inverso, até ao Colmeal.
Na memória popular, ficaram os nomes dos homens que, no início do século XX, diariamente subiam e desciam a serra, para que a Mala do Correio chegasse à estação de correio do Colmeal e o seu conteúdo fosse depois entregue, pelo carteiro, aos destinatários. Os mais velhos lembram ainda:
• Manuel Francisco de Almeida (Colmeal)
• Alfredo Costa Neves (Colmeal)
• José Paulo (Cadafaz)
• Guilherme (Cadafaz)
• Germano de Almeida (Colmeal)
• Manuel Fontes de Almeida (Colmeal)
Por volta de 1975, com a introdução das motorizadas no transporte do correio, as coisas mudaram. A Mala era levada, ao Rolão, ao fim do dia, e o portador regressava lá na manhã seguinte, para receber a nova Mala – já não pernoitava.
No início da década de setenta, a mala passou, novamente, a vir de Góis, trazida de motorizada pelo estafeta Manuel Gonçalves Nunes.
Depois do “25 de abril” (1974), os CTT reorganizaram a entrega de correio. Graças à melhoria dos acessos, a Mala era trazida de Góis, pelo carteiro, pela novíssima estrada do Vale do Ceira, a tal que tinha sido iniciada em 1883 e que, ao fim de 83 anos, finalmente chegara ao Colmeal!
A função do estafeta foi abolida e passou a haver um segundo carteiro. A partir de então, cada um fazia uma de duas rondas e, portanto, o correio era distribuído todos os dias, em todas as aldeias da freguesia. O carteiro chegava, vindo de Góis, por volta das 8:30h e, cerca das 16:30h, o mesmo carteiro levava-a de volta.
Ao fim de semana, não havia distribuição de correio, no entanto o responsável da estação mantinha a porta aberta, ao sábado e domingo de manhã, atendendo quem se tinha deslocado das aldeias da freguesia, para a missa dominical.
Esta evolução, encerrou a história dos estafetas que, durante décadas, a pé e sob qualquer condição climática, garantiram a chegada de correio ao Colmeal.
A primeira estação postal do Colmeal foi inaugurada em julho de 1885, tendo sido instalado na casa da família Mendes (hoje espaço de convívio na Cruz da Rua) e o chefe da estação era Manuel Francisco Mendes.
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Figura 10 - Nomeação oficial do "encarregado
da estação postal em Colmeal" |
A “estação postal” era apenas um espaço onde o responsável e o carteiro podiam cumprir as suas tarefas. A primeira tarefa era abrir a Mala do Correio e separar o conteúdo, de acordo com o trajeto do carteiro. A segunda, era franquear as cartas que, depois, seguiriam na Mala, no regresso a Góis.
Esta primeira estação postal permaneceu na Cruz da Rua durante 30 anos, tendo sido depois transferido para o Estreitinho, em 1914, para a residência de Manuel Brás da Costa, que ficava assim “encarregado da estação postal em Colmeal”.
O novo “encarregado da estação postal em Colmeal” tinha um negócio no rés-do-chão de uma grande casa que construíra recentemente (1907) e essa “porta aberta” garantia o serviço público dos Correios.
A nova “estação postal”, no entanto, era apenas uma grande sala no andar de cima, onde a Mala era aberta e o correio organizado, de acordo com os percursos dos carteiros.
Ali, trazidas pelos carteiros, chegavam cartas das diferentes aldeias da freguesia, eram franqueadas e colocadas na Mala de expedição.
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Figura 11 - Localização da nova "Estação de Correios" |
Até ao fecho da Mala, era um vaivém pela casa, pelo que, por volta de 1930, decidiu-se instalar os correios num espaço do rés-do-chão, ao lado da loja de comércio.
Era uma pequena sala retangular medindo 2,80m por 2m, com uma porta de duplo batente. Pendurada no exterior da porta esquerda, encontrava-se a famosa caixa de correio, vermelha, dos CTT. Nesse pequeno espaço, de que muitos ainda se lembram, os correios permaneceram por mais de 50 anos.
Dentro da sala, havia uma zona de atendimento em frente à porta e duas mesas. Na mesa da frente, existia um tinteiro de vidro e uma balança com os seus pesos, para pesar as cartas. Na outra mesa, havia uma balança maior, para as encomendas. As paredes, que já tinham sido brancas, foram escurecendo com o tempo e estavam cobertas com calendários e tabelas de tarifas dos CTT.
No início, este pequeno Posto de correios, tinha uma equipa composta por um encarregado de estação postal, um carteiro e um estafeta.
Por essa altura, a administração dos Correios estabeleceu como obrigatória a presença do chefe da estação postal na abertura e no fecho da Mala.
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Figura 12 - Leocádia Brás da Costa e seu marido e adjunto, António Costa de Almeida, em 1978, em frente à porta da estação postal do Colmeal |
Não era fácil, porque tinha um negócio a gerir, por isso, pediu à administração postal que nomeasse a sua filha, Leocádia Brás da Costa, como assistente, embora sem remuneração. Cerca de 1938, Manuel Brás da Costa, por razões familiares, deixou o Colmeal para viver na Pampilhosa e Leocádia, substituindo o pai, foi nomeada chefe dos correios.
Embora se pensasse que António Costa, seu marido, era o chefe da estação, não era esse o caso – ele era apenas o adjunto, pois Leocádia ocupou esse cargo até ao encerramento da estação postal do Colmeal.
Também não eram funcionários dos CTT, ao contrário dos carteiros - eram apenas concessionários, que executavam as tarefas desta concessão.
O trabalho do chefe da estação consistia em abrir a Mala do Correio, preparar as cartas para distribuição, selar as cartas recebidas e fechar de novo a Mala, antes de ser levada, de novo, para Góis. A sua remuneração era feita de duas formas: tinha um salário fixo muito baixo (no início, em 1914 era de 36$00 anuais), que era depois completado por uma percentagem do valor dos selos vendidos. Para isso, adquiria os selos à administração dos CTT, retirando depois a sua margem de lucro, em cada venda.
O horário de trabalho, dos Correios do Colmeal, evoluiu ao longo dos anos. No tempo em que o correio vinha de Gois, o estafeta chegava ao fim da tarde. Quando se terminava a tarefa de preparação do correio para distribuição, podiam ser já oito ou nove horas da noite. Nessa noite, o carteiro ainda fazia a entrega do correio no Colmeal, às vezes com um lampião na mão.
Nos anos 60, quando o correio passou a chegar de manhã, vindo do Rolão, por volta das 8h30, a Mala era aberta e a distribuição começava logo. A meio da tarde, cerca das 16h30, fechava-se a nova Mala, que era então levada para o Rolão.
No Colmeal, a distribuição do correio era feita todos dias. Nas restantes aldeias da freguesia, a distribuição era feita em dias alternados, seguindo dois circuitos: Às segundas, quartas e sextas-feiras, o carteiro percorria: Carvalhal – Aldeia Velha – Loural – Coiços – Foz da Cova – Malhada – Carrimá – Soito.
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Figura 13 - Lampião usado pelos carteiros (coleção de António Costa) |
Começava o seu percurso descendo do Colmeal em direção ao rio, que atravessava pelo pontão, quando o caudal o permitia. Subia em direção ao Carvalhal, pelo carreiro que passava por cima do Coiço Chão, seguindo pelo caminho dos carros de bois, até ao Carvalhal.
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Figura 14 - Algumas das aldeias percorridas diariamente, num sobe-e-desce a pé, pelos carteiros (imagem: GoogleEarth) |
Dali, subia a serra, pelos carreiros da encosta, até à Aldeia Velha, passando depois pelo Loural e terminava o circuito no Soito. Em Carrimá, sobretudo quando estava atrasado na sua volta, não descia à povoação – tocava a corneta de aviso da sua chegada e as pessoas subiam para receber o correio. No Roçaio, fazia o mesmo. Depois, atravessando a ponte, regressava ao Colmeal.
No entanto, quando o caudal do rio era muito elevado, a passagem pelo pontão tornava-se impossível. O carteiro era então obrigado a atravessar pela ponte, na ida e no regresso, o que resultava num aumento do percurso.
Às terças, quintas e sábados, a distribuição era feita nas restantes aldeias: Sobral – Açor – Ádela.
Este circuito correspondia ao norte da freguesia. Começava no Colmeal, passava em frente à capela do Senhor da Amargura, em direção ao Sobral. Seguia depois pelo cimo da serra, em direção à Panasqueira e, daí, em direção ao Açor e a Ádela.
No final, regressava ao Colmeal, de novo passando pelo Açor, mas o caminho era agora pelo Vale da Lobeira.
No inverno, a neve e o frio, tornavam impraticável o caminho através do cimo da serra. Era então necessário entregar o correio no Sobral, regressar ao Colmeal, para subir de novo a serra, em direção ao Açor, daí até Adela, regressando finalmente ao Colmeal.
Este trajeto demorava entre 5 e 6 horas, por carreiros através da serra. Nestas alturas, levava apenas as cartas. As encomendas ficavam na Estação de Correios e os destinatários teriam de se deslocar até ao Colmeal para as ir receber. Nestas condições de trabalho, a probabilidade de o carteiro adoecer era elevada. Nesse caso, para garantir a entrega do correio, a Estação de Góis enviava um carteiro substituto, que ficava a viver no Colmeal, enquanto o carteiro titular se restabelecia da doença.
Os habitantes de Saião e Salgado não faziam parte do circuito de entregas postais. Então, por volta de 1950, apresentaram o pedido de que o carteiro por lá passasse. Veio de Coimbra um funcionário, para avaliar o caminho e a duração do percurso. Porém, do que observou, concluiu que a melhor solução seria mudarem de aldeia, em vez de pedirem a passagem do carteiro. Assim, aos habitantes de Saião e Salgado nada mais restou, que fazer como sempre fizeram – descer ao Colmeal para a missa de domingo, e aproveitar para levantar o correio.
Deste modo, as cartas recebidas, podiam ficar vários dias na Estação dos Correios, esperando pelo dia da missa, quando podiam, finalmente, ser entregues aos seus destinatários.
O percurso do carteiro era feito a pé, pelo que o seu equipamento era de grande importância: “botas de borracha, daquela borracha dos pneus dos carros… eram botas que os sapateiros faziam!”, recorda o Sr. Amílcar – como respeitosamente ainda é lembrado – um uniforme cinzento (calças, camisa e boné) para a primavera e verão, uma capa de fazenda para se proteger do frio e ainda de uma capa oleada que, em princípio, a tornava impermeável, com um grande chapéu, para se proteger da chuva. Porém, quando a chuva e o vento batiam forte, “a capa também era um estorvilho! Era um problema… Apanhava-se dias que Deus nos livre… era para esquecer! Por vezes, quando nevava, depois vinha gelo… aquela neve ficava vidrada! a gente tinha de ir com cuidado… aquilo ali, naqueles dias, só se conheciam as minhas pegadas e as da raposa (risos)… nunca tive nenhum acidente, só que havia lá um sítio, ali próximo da Quinta das Águias, eu tinha que atirar com a mala para o outro lado, tirar as botas, arregaçar as calças e passar para o outro lado de um ribeirozito que vinha por ali abaixo e quando estava chuva forte, ganhava um certo caudal… aí é que tinha de ter muito cuidadinho …”
Tentemos imaginar em que estado chegaria, nessas ocasiões, às aldeias mais distantes… “umas vezes encharcado, outras vezes todo suado!” E, na memória bem viva, que guarda desses tempos de sobe-e-desce a serra, o Sr. Amílcar deixa ainda transparecer, num sorriso, a alegria e a satisfação do dever cumprido… “eu, em dias de neve, nunca deixei o pessoal sem distribuição! E não éramos obrigados a ir nesses dias… mas eu fui sempre! Mas o povo também contribuía! Às vezes arranjavam lá umas canecas de café com mel, que aquilo quase segurava a colher! (risos)… recebiam bem! Muito boa gente, em toda a freguesia do Colmeal! Só tenho a dizer bem!”
Tendo em conta os quilómetros a percorrer, pelos carreiros das encostas, a Mala de lona, com a correspondência e pequenas encomendas, já tinha um peso considerável, mas havia alturas piores, recorda o Sr. Amílcar a rir “era a Páscoa! Nessa altura, os familiares enviavam de Lisboa pacotes de amêndoas, de quarto de quilo e até mesmo de meio quilo… a Mala ficava mais pesada… mas as pessoas ofereciam-me sempre amêndoas! Muito boa gente!”
Nessa década de sessenta – tempo em que o Sr. Amílcar foi carteiro no Colmeal – época assombrada pela guerra colonial e pela fuga para a emigração, com que ansiedade se aguardava a chegada do carteiro…
Quando chegava a uma aldeia, tocava uma corneta, avisando da sua chegada, e ia de casa em casa para entregar o correio. A corneta fazia parte do equipamento, desde o postilhão[10] dos tempos da Mala-Posta e ainda continua, atualmente, a integrar o logotipo dos correios
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Figura 15 - O postilhão anuncia a chegada do correio, tocando a corneta |
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Figura 16 - logotipo dos CTT |
Por vezes, quando o carteiro se atrasava na sua volta, ou a casa do destinatário era afastada do centro da aldeia, deixava as cartas a um vizinho.
Quando as pessoas tinham correio para enviar, iam ter com o carteiro, com o dinheiro na mão para pagar o selo. O carteiro recebia a carta e o dinheiro e, no final do percurso, no seu regresso ao Colmeal, selava as cartas.
Mais tarde, quando as caixas de correio foram instaladas nas aldeias, as cartas eram colocadas, sem selos e, de preferência, com o dinheiro certo. Caso contrário, o carteiro daria o troco na próxima passagem pela aldeia.
Rui Manuel Conceição foi o último carteiro a viver no Colmeal. Foi também o último a fazer os percursos a pé – com ele, iniciou-se o percurso de motorizada.
Foi o fim de um ciclo. A esta meia-dúzia de homens e ao seu empenho, quantas vezes enregelados, arrastando-se na neve ou à torreira do sol, se deveu, durante décadas, a chegada de notícias às mais distantes aldeias da freguesia…
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Figura 17 - Carteiros que, no Colmeal, fizeram o percurso a pé e respetivos anos de trabalho |
Em Maio de 2007, a UPFC promoveu uma caminhada em memória daqueles homens – “Na Rota do Carteiro” – e, no folheto de divulgação, recordava-se que “Tantas notícias boas e más percorreram estes caminhos. Cartas de namorados com mil promessas de amor. Dos maridos que partiram para longe, para ganhar melhor sustento, dando notícias às suas mulheres que tinham ficado a tomar conta dos mais pequenos e a fazer o amanho das terras. Quando o envelope vinha listado a preto era um mau presságio e indicava que alguém nos tinha deixado.”
No início do século XX, a taxa de alfabetização continuava muito baixa. Assim, quem não sabia ler ou escrever pedia a um vizinho para ler as suas cartas e, muitas vezes, eram mesmo os seus filhos, ainda crianças em idade escolar, que liam e escreviam as cartas para os pais e para os vizinhos.
Os homens partiam, normalmente sozinhos, por vários anos, deixando as suas famílias. Para eles, as cartas e os postais eram o único contacto de que dispunham, para dar e receber notícias dos seus familiares e da sua terra.
Na década de 1970, os telemóveis eram ficção científica e mesmo o telefone fixo não existia ainda em todas as casas. Assim, a comunicação através da escrita, de cartas ou postais, enviados por correio, era a solução.
Quando a carta era distribuída pelo carteiro, mesmo as pessoas analfabetas reconheciam o envelope, o carimbo ou o primeiro nome do remetente, percebendo quem lhes tinha escrito. Logo que podiam, lançavam o xaile pelas costas e apressavam-se para casa do leitor.
A carta, cuidadosamente guardada no bolso do avental, era finalmente aberta. Após a leitura de cada informação importante, havia uma pausa e as pessoas presentes comentavam as notícias vindas de longe.
Pouco depois, para responder ao correio, sentavam-se na mesa da cozinha. Preparava-se o papel de carta e a caneta. A criança escrevia então as fórmulas habituais de cortesia que compunham a introdução da carta, tal como tinha aprendido na escola e que sabia já de cor… “Meu querido filho, esperamos que esta carta te encontre bem de saúde. Graças a Deus, nós por cá todos bem…” Depois, pensava-se nas notícias que se queria enviar ao filho, ou ao pai, que tinha emigrado para longe.
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Figura 19 - Localização atual da Caixa do Correio, no Largo D. Josefa das Neves Alves Caetano (Ex-Largo da Fonte) |
Assim, por um lado, o movimento migratório, tanto para Lisboa como para a América, Brasil, França, Alemanha… que aumentou acentuadamente nas primeiras décadas do século XX e, com ele, a necessidade de comunicar por escrito; por outro lado, o aumento da alfabetização, promovido pela 1ª República, geraram um crescimento extraordinário do volume de cartas e postais movimentados diariamente. A estação de correios geria, habitualmente, até 30.000 cartas por ano. Porém, em 1930, esse volume já tinha sido multiplicado por 18!
No final dos anos cinquenta, a União Progressiva da Freguesia do Colmeal considerou que se justificava uma estação de correios em edifício próprio, na sede de freguesia, cujas instalações dessem plena satisfação a este aumento de correspondência.
Daí resultou um ante-projeto, “aprovado pelos Serviços Técnicos e de Exploração [dos CTT] e que o Senhor Correio-Mor deu o seu parecer favorável”, com condições adequadas ao serviço dos CTT-Correio, Telégrafo e Telefone. Este novo edifício, poderia ainda acolher o posto público de telefone que estava em risco de encerrar no Colmeal. Esse sonho, porém, nunca chegou a sair do papel e, em 1968, a Direção da UPFC continuava a lamentar a demora na concretização deste “melhoramento ansiado e indispensável ao desenvolvimento da freguesia”[11] apesar de todas as diligências que desenvolveu e que
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Figura 20 - Alçado principal e R/C do ante-projeto da Estação dos Correios, provado pelos CTT em 1963 (Fonte de imagem: Arquivos da UPFC) |
ficaram registadas nos Relatórios da Direção ao longos dos anos.
Assim, enquanto se aguardava a concretização deste melhoramento que tanto tardava, a UPFC solicitou, em 1969, ao Exmo. Correio-Mor que, entretanto, fosse disponibilizado o serviço de Encomendas Postais no Colmeal. [12]
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Figura 21 - José Fernando, atual carteiro |
Entretanto, as novas tecnologias, com os e-mails e as redes sociais, foram remetendo as cartas e postais para o baú das memórias dos avós…e, atualmente, os correios ocupam-se sobretudo da entrega de encomendas – as tais que em tempos ficavam no Posto, aguardando o domingo para serem entregues.
Ficaram abandonados os antigos carreiros, percorridos diariamente a pé, num esforço extenuante de cerca de 30km diários… Hoje, a velocidade é outra, mas a extensão da rota também, diz-nos o Sr. José Fernando, atual carteiro que, na carrinha dos CTT, percorre todos os dias cerca de 200km.
Em 1996, os CTT encerraram definitivamente a Estação do Colmeal, e a caixa do correio passou para o Largo D. Josefa das Neves Alves Caetano (ex-Largo da Fonte).
Entretanto, no interior da antiga Estação de Correios, nada foi mexido e as mesas e os calendários lá permaneceram por duas décadas.
Agosto/2024
Rui Fernandes Almeida
Deonilde Almeida