10 abril 2018

TERRRAS DA NOSSA TERRA



Enquanto constituiu o principal fator de produção, a terra era o bem mais precioso, tanto do ponto de vista material como simbólico, representando sobrevivência e rendimento, segurança e prestígio social. Era um fator identitário tão importante, que ainda hoje se chama terra ao local de nascimento.
Embora escassa e pouco daimosa, da terra e pela terra se vivia e morria. Na nossa região como em outras, desde cedo que se partiu para no regresso a comprar (e para construir casa ou melhorar a que já se possuía). Todos precisavam dela, na dupla função de que se revestia: terra de cultivo, não raro trazida de longe para erguer os “combaros” magros; e terra de mato e floresta. A primeira fornecia o milho, que era a base da alimentação transformado em broa, mais tarde as batatas e tudo o resto; a segunda, o mato indispensável como cama e alimento para os animais, que o transformavam no estrume adubo da terra. Dada esta dependência mútua, sempre que possível, a uma área de cultivo deveria corresponder uma testada de mato. No que se refere à floresta, igualmente decisivas eram as castanhas, a madeira, a lenha e a resina, uma das poucas fontes de rendimento líquido, antes da vulgarização do eucalipto.





Num contexto de micropropriedade sempre insuficiente para assegurar o sustento digno das famílias e a concretização das suas aspirações de uma vida melhor, nas palavras de um nosso conterrâneo, reportando-se aos anos cinquenta do século passado, [1]
“As pessoas que tinham terra conseguiam (…). Tinham tudo. Tinham milho, tinham feijão, tinham azeite, portanto, não precisavam de comprar essas coisas e, isso, naquela altura, era o essencial. Eram pessoas ricas, tinham isso tudo”.
Mas, possuir a terra significava “trabalhar, trabalhar, trabalhar” ou “uma trabalheira, uma trabalheira”. Na realidade, ausentes os maridos e os filhos mais velhos, a terra era excessiva para a capacidade de trabalho das mulheres e dos rapazes pequenos, mas insuficiente para permitir o recurso a mão-de-obra assalariada. Ainda assim, fortemente associada à ideia do regresso, a posse da terra, que era preciso manter produtiva, acabou por adiar a partida de muitas mulheres para a cidade e, com elas, a partida definitiva de todos.
Bem deste modo raro e essencial, não admira que a propriedade rústica se apresente extremamente fracionada, sobretudo em territórios de minifúndio, relevo acentuado e solo pouco fértil, como o nosso. Acresciam os costumes de herança, que privilegiavam o uso, dividindo pelos herdeiros, independentemente da dimensão, os diferentes tipos de terra herdados: de semeadura boa e má, com ou sem água, próxima ou distante das aldeias, com ou sem mato e árvores. Daí a proliferação dos prédios/artigos, alguns com área inferior a 20 m2. Na expressão de outros conterrâneos:
“O meu avô materno não tinha nada. Tenho lá dezenas de papéis de compras que ele fez, um bocado aqui, outro ali, outro acoli, que nem sei onde estão, para onde foram (…)”
“Quando fiz a relação de bens, ainda deu uns sessenta e tal prédios rústicos. Só que são de umas dimensões tão pequenas, tão pequenas, que nem é bom considerar aquilo como prédios. São umas faixazinhas de terreno onde, noutros tempos, existia uma oliveira e hoje existe mato. Não valem nada em termos económicos. E os terrenos agrícolas, praticamente, também não têm qualquer valor, a não ser para plantar lá oliveiras ou uns pinheiritos ou qualquer coisa assim. Mas não dá para o trabalho.”
“Aquilo já eram uns “combarozecos” sem valor. Depois das partilhas, dividido por todos, não deu nada a cada um. Deve estar tudo cheio de silvas e de mato e eu nem quero lá ir para não ter pena de ver as coisas assim. Trabalhei lá tanto quando era rapariga!”
Enfim, propriedades que justificam o humor bonacheirão de um alvareense, que dizia para alguém que estava a gabar-se das posses que tinha: “Áh, pois! Eu também sou muito rico. Lá na minha terra tenho uma quantidade de prédios! Tão grandes, tão grandes, que um burro deitado neles fica com as patas de fora!”
Uma outra característica da propriedade rural na nossa zona é a irregularidade da forma. Radicando na orografia e nas práticas de divisão e apropriação da terra, a disformidade dificulta imenso o conhecimento/reconhecimento, nomeadamente dos terrenos florestais. Por exemplo, uma estrema podia ficar enviesada, em vez de direita, apenas porque um dos proprietários não prescindia de ficar com alguma árvore que por ali se encontrasse. Com exceção para os sobreiros, por razões conhecidas, na zona, não existia o conceito terreno de um, árvore do outro.




Nas fazendas de semeadura, os limites e estremas eram constituídos pelas paredes que as sustentavam ou pedras específicas nelas inseridas, por lajes ao alto ou fileiras delas. As lajes estremavam roubando muito pouco terreno de cultivo, ao mesmo tempo que impediam a terra de resvalar para o bocado (terreno) do vizinho.




Nos terrenos florestais, de delimitação mais complicada, os marcos podiam ser uma parede, um barroco, um caminho ou uma levada, mas geralmente eram também uma pedra esguia espetada no chão, apoiada por duas laterais mais pequenas. Estas pedras mais pequenas representavam a boa-fé das partes e as pessoas que testemunharam a colocação dos marcos, ainda hoje dando pelo nome carinhoso de testemunhas. Os marcos colocavam-se em todos os extremos da propriedade e também a meio, se a dimensão o justificasse. Os marcos de topo ou fundo deveriam ser colocados na horizontal, os laterais, na vertical. Uma vez que muito raramente as pedras tinham altura superior a 30/40 cm, é natural que hoje a vegetação as envolva e oculte, sendo então uma sorte encontrar a sorte (parcela) que delimitam. Para obviar ao problema, veem-se marcos assinalados por meio de tinta, adição de estacas altas ou colocação de marcos mais visíveis ao lado dos antigos, sempre sem lhes tocar. Amor e honradez a quanto obrigas! Quanto trabalho, tudo transportado e feito à mão! Há quem tenha feito a georreferenciação dos terrenos logo no início dos anos 2000.






Por efeito da erosão, da exploração madeireira, dos fogos ou de mãos furtivas, muitos marcos têm desaparecido ao longo do tempo. Outros persistem, estremando propriedades diminutas, e lembrando agora falos inúteis à espera que a terra rejuvenesça para ser fecundada.


A apropriação da terra foi e é um processo lento e em dinâmica permanente. Em relação ao passado, ocorrem-nos práticas mais ou menos aceites ou abusivas de alteração da ordem estabelecida, como mudar marcos - “o pior pecado que se pode cometer”, no dizer de uma senhora agora nonagenária -, semear centeio, plantar árvores ou construir um muro em terreno alheio, desse modo se apropriando, pelo menos, da parte intervencionada. Entre outras, práticas que davam azo a grandes desavenças vicinais ou familiares, e continuam a justificar litígios nos tribunais.
Mais recentemente, avultam as alterações introduzidas pelas últimas avaliações da propriedade rústica (1988), a saber: as omissões e apropriações indevidas; a atribuição de áreas incorretas, aos artigos, podendo ser superiores ou inferiores à realidade; a atribuição aos sítios de nomes e números diferentes dos que tinham, que veio tornar mais confuso o que já o era; o “emparcelamento” ou junção obrigatória de prédios contíguos pertencentes ao mesmo proprietário, bem como de terrenos de cultivo e florestais, que alterou as dimensões e formas que as pessoas conheciam.
Quando conheciam! Nessa altura, há muito que o êxodo tinha esvaziado as aldeias, transformando a agricultura de subsistência - que promovia o uso e o inerente conhecimento dos terrenos -, em atividade meramente residual. Consequentemente e em linha com a estrutural perda de peso do setor primário, a terra tinha-se desvalorizado simbólica e materialmente, deixando de ser percecionada como fonte de rendimento e fator de diferenciação social. Mantendo, no entanto, para as gerações mais velhas e ainda nascidas nas aldeias, um valor identitário e afetivo, de memória e securizante.
“Para mim, as terras que eu tenho por aí não valem nada para o meu sustento, porque eu não as vou tratar (…). Também não tenho a intenção de vender (…). Acho que é um património que cada um valoriza à sua maneira (…). É só porque são minhas, é um valor afetivo.”
“Valor patrimonial não tem nenhum. É um valor afetivo. Conheço aquilo, conheço aquela árvore que a vi nascer, sei o estado em que ela está, todos aqueles recantos, a água que corre ali, quer dizer, aquilo tudo me diz, mas só a mim é que diz, porque eu cresci ali. Aquilo não vale nada, mas se lá for, é quase uma romagem (…).”
“Uma segurança e uma lembrança. Lembrança da minha meninice e segurança porque, se por qualquer motivo eu não conseguir viver na cidade, tenho aqui onde viver. Tenho casa, tenho terras para cultivar. É mesmo isso, é uma segurança. (…).
Verdadeiramente, quando da realização do estudo que temos vindo a citar, a terra-solo só era indiferente a três dos nossos conterrâneos. Já em relação aos filhos e netos, os que abordaram a questão foram unânimes na referência a um certo desinteresse feito de desconhecimento. Tratando-se de uma postura coerente com a evolução social global e com as trajetórias e modos de vida individualmente protagonizado, como será hoje?
Terras dispersas, desprovidas de escala e outras condições de exploração económica rentável, algumas encontram-se hoje entregues a si próprias, desconhecendo os proprietários herdeiros a sua localização e as respetivas estremas, apesar de poderem pagar IMI. Uma situação que arrastará necessariamente a reconfiguração da propriedade rústica. Associada, naturalmente, à premência de manter os terrenos limpos, e à complexidade e elevado custo dos procedimentos de prova de posse e registo oficial.
Até lá – um lá que a agenda política diz estar próximo – em dez concelhos, entre os quais Góis, é possível proceder, gratuitamente, à regularização registral e matricial de prédios rústicos (terrenos de cultivo e florestais). O prazo termina em 31 de outubro próximo e o registo exige a georreferenciação prévia, igualmente viável no âmbito do projeto. É o que consta de um folheto verde que todos recebemos há uns tempos com a fatura da água. Para quem se interesse pelo assunto, poderá ser uma oportunidade. Embora escurecidos, os marcos que restam são agora visíveis em muitos sítios.
Tempos e mundos distintos em sobreposição, presente, passado, quem sabe, se futuro?! Em homenagem e para registo da memória coletiva.

Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 27 de março de 2018.


[1] As citações inseridas neste texto foram retiradas do estudo: Lisete de Matos, “Gente da Serra. Modos de Vida entre a Cidade e a Aldeia”. A parte empírica do estudo teve lugar em 1998, incidindo sobre naturais e/ou ligados à então freguesia do Colmeal, residentes ou ex-residentes em Lisboa.

1 comentário:

Unknown disse...

Muito obrigado pela publicação deste artigo tão especial.