“Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se
a confiança:
Todo o mundo é composto
de mudança,
Tomando sempre novas qualidades” [1].
Tinha razão o poeta! E quanta, pensando nos tempos áureos de descoberta
e renascimento em que ele viveu e nos tempos de mudança intensa, acelerada e
imparável em que nós vivemos. Na sequência de alusões anteriores [2],
vem esta referência a propósito da Feira do Mont’Alto e da FICABEIRA, assunto a
que volto pela importância de que se reveste para a região da Beira Serra, em
termos identitários, conviviais e de dinamização dos tecidos sociais.
A Feira do
Mont’Alto constituía, no passado, a grande ocasião de comércio e consumo na
região, tudo nela se comprando, com exceção para uns tantos produtos (por ex. o
burel para as capuchas), que se adquiriam na Feira de S. Miguel, em Celavisa. Eram
tantas e tão diversificadas a oferta e a procura, que os mais velhos
lembrar-se-ão que ficávamos o ano inteiro a ouvir dizer que isto ou aquilo se
compraria na feira, para o que se iam
fazendo poupanças adicionais. A feira
transformava-se, assim, numa realidade mágica e sítio mítico, de onde os
meninos mais afortunadas esperavam carrinhos em lata ou madeira, flautas ou
piões, e as meninas, miniaturas de um qualquer utensílio doméstico, para se
irem habituando à dupla jornada de trabalho que as esperava, quando mulheres. Creio
que já disse uma vez, que aqui por cima do Açor, na vereda que ia e vinha do
Colmeal, servindo as populações da margem esquerda do rio e da Pampilhosa da
Serra, o movimento de pessoas era tanto, que a vereda mais parecia um formigueiro
atarefado! Seguia pela Aveleira e Camelo, a caminho da Lomba da Nogueira e Arganil.
Na feira, por sua
vez, as crianças que tinham a sorte de acompanhar os adultos, caminhando pelas
veredas que atravessavam as serras cansadas, fascinavam-se com os carrinhos que
chocavam na pista faiscando, o carrocel de cavalinhos rodopiando, o martelo que
subia endiabrado, para logo tombar ameaçador, o pirolito a que alguns tinham
direito. E havia os bois de trabalho, que poucos tinham posses para comprar e
sustentar, mas que todos podiam apreciar!
Já cá faltavam? Pois, só para repetir que estão em vias de
desaparecimento. Desta feita, eram só duas as juntas de bois presentes: os
animais ainda opulentos do senhor Álvaro, de Vila Pouca da Beira e uns mais
pequenos, de um jovem de Arganil. Vitelos é que seriam uns oito/dez.
Quem continuava lá era a Rola, a potra que em 2016 o dono me
queria vender por oitocentos euros, sabendo que eu não estava para a comprar! Por
isso ela tanto se ria, este ano, arreganhando o focinho e mostrando os dentes,
com as festas que lhe faziam. De resto, nem mais potros, nem os simpáticos
burros aos quais eu vaticinava tanto futuro, no âmbito da atividade turística crescente.
A atual inexpressividade desta componente da Feira do
Mont’Alto não é de estranhar. Recorde-se que a região tem continuado a perder
população e a empurrar a que fica das aldeias paras as vilas e arredores, enquanto
se assiste ao crescimento exponencial dos setores secundário e terciário, em
linha com o resto do país. Meramente a título de exemplo, em 2011, a situação
era a seguinte nos concelhos de Arganil e Góis:
Concelho
|
Setor primário
|
Setor secundário
|
Setor terciário
|
Arganil
|
4,22%
(1960=60,39%)
|
38,84%
|
56,94
|
Góis
|
6,3%
|
31,1%
|
62,6%
|
Em contrapartida, a refletir a evolução económica e as
dinâmicas sociais existentes, a XXXVI FICABEIRA apresentava-se muito representativa
das forças vivas locais e de novos interesses, necessidades e consumos. Ela
própria portadora de modernidade e tradição, materializada nos elementos que dela
guardam memória!
Polo de atração assinalável, são verdadeiramente espantosos o
movimento que a feira persiste em
gerar, e a animação e convívio que representa para os arganilenses e para as
populações que a frequentam, hoje maioritariamente visitantes. Ir à feira mantém-se um imperativo, se não
para abastecimento, para encontrar pessoas e conviver, como me dizem. Para isso
guardam-se dias de férias, permanece-se nas aldeias até ao evento, volta-se por
uns dias. Há mesmo quem não frequente atividades culturais em Lisboa ou onde
reside, mas não perca um espetáculo no certame, qualquer que seja o público visado.
Aparentemente, é a magia da feira a
passar de geração em geração, integrando o legado do apego à terra e às origens.
“Continuamente vemos
novidades,
Diferentes em tudo da
esperança:
Do mal ficam as mágoas
na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.” (1)
Contrariamente à descrença de Camões, saudades com muita
esperança!
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, setembro de 2017.
[1] Luís Vaz
de Camões, Sonetos.
[2] http//upfc-colmeal-gois.blogspot.com, de
10 out. 2011; http//upfc-colmeal-gois.blogspot.com,
de 15 jan. 2013; http//upfc-colmeal-gois.blogspot.com,
de 16 out. 2015.
5 comentários:
«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades». Mudança bem visível nas fotografias. O que era a Feira e o que ela é hoje.
O olhar atento e as palavras de quem nota a diferença. E a regista. Para que conste. É a realidade.
A “Feira do Mont’Alto”
Este lindo artigo, trouxe-me muitas recordações... Um bem-haja à autora.
O meu comentário, é não só acerca da minha experiência, mas também de outros/as mais do meu tempo, que possivelmente tiveram experiências idênticas...?!
A minha experiência deste evento anual em Arganil, na altura conhecido por ”Feira do Mont’Alto“, data de meados do século passado, mais propriamente entre os anos de 1952 e 1960, (dos cinco, aos treze anos de idade), para mim. Um evento muito necessário ao povo da região por motivos vários. Para os mais pequeninos, era sempre esperado com um alto grau de anseio... acontecia uma só vez por ano. Esperar para ver as muitas e variadas diversões, pela remota possibilidade de regressar a casa com um dos muitos brinquedos apresentados, por dar uma voltinha no ”Carrossel“, ficar com uns sapatos novos, etc. etc., um ano era muito... Quando chegava o príncipio de Setembro, o anseio era enorme !!
Eu nunca pedi, nem me lembro os/as da minha idade, terem pedido que lhes comprassem uma ”junta de bois“, ou mesmo um ”burrinho“ dos mais pequenos !!! — Pediamos pouco e ficávamos contentes com pouco.... nos anos após o fim da segunda Guerra Mundial, a vida foi difícil...
As minhas recordações desse evento, são uma mistura de nostalgia "doce" e "amarga".... nem sempre haviam meios para termos tudo o queríamos no entanto, nós os mais pequenos, e porque havia muito para ver, já ficávamos satisfeitos se os mais idosos com quem fomos, pelo menos atrasassem um pouco o seu regresso a casa....
Armando de Almeida
Açor, Colmeal.
Lindo, o que tu escreves, Armando, traduzindo o nosso enlevo de crianças de modo muito intenso e experienciado! E situado! De repente, dei comigo a ver-te a passear pela feira. A importância que as coisas podiam ter!
Abraço.
Lisete de Matos
Belezas da Serra
O meu muito obrigada a Lisete de Matos, autora deste excelente artigo, o qual me permitiu vivenciar no tempo e no espaço todo o encanto de outrora, de um evento muito desejado pelas gentes da região, que era a Feira do Mont'Alto! Mas como "todo o mundo é composto de mudança", agora será a Ficabeira, não com as mesmas valências do antigamente, mas actualizada ao nosso tempo.
Embora eu não tenha vivido a minha infância na Aldeia, mas o passar três meses consecutivos durante muitos anos, em total vivência de usos e costumes, me fez sentir uma certa nostalgia, pelo que vivi, e me fez crescer como pessoa, e por isso me sinto grata.
Era um evento esperado com alguma ansiedade, principalmente pelos mais novinhos, por tudo de diferente que a Feira nos proporcionava!
Ficará como um polo de atracção, por tudo o que nos oferece, e como local de convívio!
Parafraseando a autora, são saudades com muita esperança !
Lisete de Matos, esqueci de me identificar...não faz sentido agradecer-te pelo excelente artigo, e não dizer quem eu era...! Bem-hajas! Brinda-nos sempre com coisas lindas, como esta! bjs
Fernanda Pena
Ádela
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