Andei
há dias pelo Cabeço do Gato e arredores. O Cabeço do Gato é o topo da serra da
Aveleira para uns, da Gatucha para outros, onde se encontra instalado, precisamente,
o marco geodésico da Gatucha, a 963 m de altitude. Os arredores são lugares como
a Chã, o Mucilhão e a Panasqueira, a sudoeste, a Gatucha, a poente, a dar para
Celavisa, a Pedra de Água, a Selada Domingos dos Cepos a que também chamavam
Relveirinho e a Carvalhalva, para norte, a Selada do Escudeiro, uma assentada a
caminho da Aveleira. Tudo sítios próximos ou a poucos quilómetros uns dos
outros, cujos nomes – a confirmarem que a serra “muda de nome sem mudar de dorso” - revelam a familiaridade que as
pessoas tinham com eles. Uma familiaridade de uso, construída no dia-a-dia,
palmo a palmo, passando, trabalhando e convivendo.
Como
refere António Domingos Santos, a propósito da caminhada “Vamos voltar ao Cabeço do Gato”
(http://upfc-colmeal-gois.blogspot.pt/2012/04/caminhada-vamos-voltar-ao-cabeco-do.html, sábado, 21 de abril de 2012): “Do Cabeço do Gato a vista é deslumbrante.
Buçaco, Caramulo e Estrela são algumas das serras que se vislumbram e até onde
o olhar alcança. (…) Serranias polvilhadas de aldeias, casais e lugarejos.
Arganil sobressaía. Olhando para o outro lado, Carvalhal, Aldeia Velha,
Malhada, e o Soito um pouco mais abaixo, sinalizavam a presença da freguesia do
Colmeal. Lá no alto as eólicas, no gigantismo das suas silhuetas, iam girando”.
Realmente
uma paisagem sublime e avassaladora, de cumes e cumes arredondados, que se
sucedem e abraçam, formando, envoltos na bruma esfumada de alguns dias, um
oceano ondeado e misterioso.
Mas é do
espírito do lugar que eu quero falar. Na definição de os especialistas em monumentos
e sítios, o espírito do lugar é o conjunto dos elementos tangíveis e
intangíveis, isto é, o conjunto dos elementos físicos e espirituais, que
conferem sentido, emoção e mistério a um determinado lugar. Entre os primeiros
elementos contam-se os edifícios, sítios, paisagens, caminhos e objetos, entre
os segundos, as memórias, lendas, texturas, aromas, documentos ...
No caso de o Cabeço
do Gato, diria que a componente intangível é formada pelo espírito de que a
zona se foi imbuindo, em contacto com as pessoas, com a vastidão do tempo e do
espaço, as intempéries e a solidão dos dias desertos de hoje.
Nos
tempos em que as aldeias transbordavam de vida, o Cabeço do Gato e mais
propriamente os já mencionados sítios de Chã, Panasqueira, Gatucha, Pedra de Água,
Selada Domingos dos Cepos, Carvalhalva e Selada do Escudeiro funcionavam como entreposto
de encontro e passagem, de veredas e populações que a povoavam e atravessavam, subindo
e descendo, para cá e para lá.
Diariamente,
encontravam-se por ali os pastores e os rebanhos de Açor e Ádela, por vezes
também os da Aveleira, conforme recorda a “Ti” Arminda, de Ádela, do alto dos
seus lúcidos e encantadores noventa e sete anos. Diz que os pastores da
Aveleira eram boa gente, mas que os das Torrozelas usavam um varapau com o qual
não hesitavam em bater, se os rebanhos se misturavam. O melhor, por isso, era
evitar a Carvalhalva e seguir para a Chã, onde também apareciam os pastores do
Sobral, dos povos da Ribeira de Celavisa e a “Ti” Bezerra, do Vale de Asna. Os
pastores e os rebanhos de Cepos, normalmente, não passavam da Selada das Eiras.
Enquanto
o gado comia e a serra escutava solícita, os pastores mais velhos conversavam: os
rapazes, provavelmente, falando do desejo de irem para Lisboa, as raparigas
sonhando casar, para poderem seguir o mesmo destino. Entretanto, os mais novos
brincavam, trepando os pedregulhos salientes e observando mais uma vez, na
Pedra de Água, o molde vazio de um carro de bois em ouro, que a rocha escondia,
e alguém descobriu e roubou. Segundo a “Ti” Arminda, é a tiradoira que se vê
mesmo bem, de acordo com outros conhecedores, veem-se uma roda e a tiradoira.
Seguramente a justificar o topónimo “Cabeço do Gato”, mais acima, uma outra
fraga mostrava a forma oca de um gato igualmente em ouro, cuja sorte foi
idêntica. Como foi a do caldeirão, que ocupava uma cova funda e redonda, onde o
mato nunca crescia. Muito abastados eram os mouros, e criativos, os pastores daqueles
longínquos anos vinte, trinta e início dos quarenta do século passado! A brisa
ainda exala o aroma morno do leite que mitigava a necessidade de alguns!
Tanto
mato crescido, tempo e erosão passados sobre o sítio, do gato e do caldeirão nem
sinais! Quanto ao carro, enquanto me pareceu vê-lo desenhado no chão pela
posição lateral de duas rochas, revelou-se à minha irmã escavado no topo de uma
das fragas. “Vês, vês a tal tiradoira?”, dizia contente, como se tivesse
descoberto o tesouro sonhado! Segundo a lenda, quem sonhar com um tesouro escondido
visualizando o sítio onde está, consegue encontra-lo, se o for procurar
imediatamente sem contar nada a ninguém!
Diariamente
cruzavam-se também por ali, indo ou vindo, não raro carregados e cansados, os
que por alguma razão tinham de ir a Arganil ou a alguma das povoações em
caminho. Também me lembro de regressar de Góis subindo Gatucha acima, numa
noite de trovoada, mas essa vereda ligava à Panasqueira. Aliás, era o caminho por
onde se ia à Feira de S. Miguel, em Celavisa, ou apanhar a carreira, na Sarnoa,
junto à Senhora da Boa Viagem.
O
grande movimento ocorria, porém, à quinta-feira, dia do mercado semanal em
Arganil e por alturas da Feira do Mont’Alto, a 6, 7, e 8 de Setembro. Esta era
a feira mais importante das redondezas, sendo nela que a população
maioritariamente se abastecia de utensílios, ferramentas, têxteis, etc.. Durante
os três dias, imagine-se o bulício, alguns levando para lá fardos de palha,
sacos de carvão, milho, centeio e outros produtos, quase todos trazendo para cá
panelas, cântaros, cestas e muitos outros artigos. Imaginem-se também as
conversas, os olhares furtivos e prometedores, os namoros começados e o
colorido andante, embora as pessoas tendessem para vestir-se de escuro. Era
tanto o movimento para lá e para cá na vereda que vinha do Colmeal, trazendo as
gentes da freguesia e de terras da
Pampilhosa da Serra, que a minha bisavó Preciosa ia para o Poço Cimeiro vender
refresco de capilé, ao copo. A minha bisavó ficou viúva muito cedo, com quatro
filhos pequenos e a mão direita defeituosa.
Mais
abaixo, já perto da Selada do Escudeiro e a descer para a Aveleira, o encontro dava-se
com os indivíduos e grupos que vinham dos lados de Fajão e das freguesias de
Cepos e Teixeira.
Humanizada
pela intensidade da presença humana, à serra só faltava chorar com os casais
que desciam para se despedir em Arganil, com a mulher que regressava sozinha,
com as crianças doentes que os pais transportavam ao colo ou numa cesta, à
cabeça, com as raparigas que iam vender grelos de nabo, calçando tamancas, que
se lhes prendiam à neve, com os meninos trabalhadores que mal podiam com a
enxada … Ou rir de contentamento, nas situações agradáveis!
Quando
o Estado se apropriou dos baldios (Decreto de 1942), os rebanhos foram expulsos
para as cotas inferiores da serra, onde não cabiam e os pastores, empurrados cada
vez mais para a (e)migração. Mas, em termos de trabalho, o cimo da serra
continuou a ser frequentado pelos adultos e crianças que trabalhavam na “floresta”,
escavando o solo árido para semear e plantar árvores, rasgando as fragas duras
para abrir os estradões, que tanto facilitaram o acesso às aldeias. “Aí é que era mesmo duro. (…) mais a mais,
para uns braços tão tenros e com as mãos cheias de bolhas”. Não admira que
o meu primo Amilcar guarde desse tempo uma memória tão viva!
Cruzamento
de caminhos e destinos, as bruxas não podiam faltar. Feias e escarninhas,
apareciam fogosas, a dançar rodopiando, e a molestar os homens que se deixavam
apanhar. Desapareceram com as populações, montadas nas suas vassouras de
moiteira ou giesta!
Enfim,
parte do tal intangível e da magia do Cabeço do Gato e arredores, recordados
como sítios de pertença, trabalho e permanência, por alguém que agora os visita
como paisagem e espaço transitório de lazer e contemplação.
E,
neste novo registo, como beleza e riqueza da serra que importa potenciar,
considerando que o sítio já funciona como ponto de encontro e reencontro.
Percebe-se isso através de as caminhadas da União Progressiva da Freguesia do Colmeal,
da mensagem civicamente inscrita numa pedra - e não na própria estrutura do marco
geodésico -, da colher deixada junto aos penedos da Pedra de Água, para o caso
de alguém precisar, das garrafas esquecidas ou estilhaçadas contra as pedras
indefesas, sugerindo pedras de outra natureza …
É
proibido caçar, mas, paradoxalmente, a destoar na beleza agreste da serra, pode
ver-se o abrigo de uma associação de caça e pesca.
Afagadas
pela longevidade do tempo e do vento, pelo ímpeto das neves de antigamente e pelo
gelo dos invernos frios de sempre, os penedos mostram-se de arestas lisas e
arredondadas, replicando o ondeado da montanha.
Apesar
de a secura do verão enxuto, por entre a erva e o mato crestados, frágeis e
delicadas cilas-de-outono teimam em resistir!
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, 16 de setembro de 2015.
1 comentário:
Obrigado, Dra. Lizete, pelos seus artigos, sempre tão interessantes por preservarem a memória das gentes e dos lugares do Colmeal. Fiquei com vontade de ir ao cabeço do gato!
Rui Ferreira
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