30 julho 2012

Passando pela serra


Junto à ponte da Candosa, quando deixo a estrada que vem de Cadafaz e regresso à que liga Góis ao Colmeal e a Cepos, a serra dá por momentos ao Ceira espaço para respirar, num pequeno e breve oásis de campo verde, moradias recuperadas e oliveiras.

   Logo à frente, ainda eu trago a vista presa ao Ceira, a escorregar prazenteiro entre pastos verdejantes, passa por mim um homem vestido com uma samarra preta. Ultrapassa-me em passadas largas, caminhada determinada e sã de aldeão. Só pára para ler um papel branco com grossas letras pretas impressas. Desaparece rapidamente engolido pelos pinheiros e eucaliptos da beira da estrada. O papel anuncia um funeral na aldeia seguinte, o Colmeal.

   Uns três quilómetros adiante, já um magote de gente se vai juntando no largo perto de um café onde um gato branco observa tudo em cima da massa laranja de bilhas de gás. “Lá se foi o Manel, era o seu destino”, comenta um homem de suíças e popa à Elvis Presley vestindo um blusão preto de cabedal. “Chega a vez a todos, não é?” diz a mulher que atende detrás do balcão. Serve-me um copo” pede. “Tinto ou branco?” O homem, as suíças acinzentadas e grisalhas como cinza de rescaldo, encolhe os ombros: “Tanto faz. Pobre do Manel. “Inda era novo, num era?” A mulher, as mãos embrulhadas num casaco de malha, por cima do balcão: “Então não era… 59 anos. Olha, este é que não teve sorte nenhuma na ‘bida’. Depois do primeiro acidente, disseram-lhe para parar de trabalhar. Continuou, teve o segundo acidente”.

   Um segundo homem entra no espaço exíguo e esverdeado do café, depois um terceiro e em seguida um quarto. “Não bebem nada?”, pergunta o das suíças grandes. Parece estar ali para ajudar a casa ou apenas para congregar todos à volta de algo que os aconchegue. “Pode ser um copito”, aceita um. “Eu não posso, pode ser um sumo”, diz outro, muito magro, precocemente envelhecido, a pele seca e esticada no pescoço, os olhos avermelhados. “O segundo acidente foi de quê? Não caiu de um andaime?” A mulher serve mais uns copos. “Olhem que vocês hoje têm de me ajudar, o patrão ‘tá para o funeral e eu estou aqui emprestada. As minis já sei que são 55… o copo de vinho? Trinta?”

   Lá fora, uma multidão silenciosa de vultos negros cerca a Igreja branca erguida entre ciprestes no topo do monte. Tudo o que se ouve no vale perdido na serra é agora o “vxxxxxhhhhh…” das eólicas pairando como fantasmas brancos sobre Colmeal.

   “É às quatro, não é?”, pergunta um homem encostado a uma lareira. Por cima, uma paisagem com picos de neve muito brancos e um vale muito verde decora um calendário. Na parede há ainda raposas, um esquilo e um mocho empalhados. “Se for o padre Xavier, é às quatro. Com ele não há atrasos. Se fosse o padre Carlos… A mulher sorri: “Ui, esse nem amanhã…”

   O funeral é uma oportunidade para os cada vez menos habitantes da serra se juntarem. Vem gente de Góis, do Cadafaz, de Cepos, da Cabreira. Todos conheciam o Manel. “Ele tinha invalidez e continuava a trabalhar… não era homem de parar. Deixou para aí obras espalhadas…” Um aldeão remata: “Os filhos acabam-nas, ‘num’ é? É para isso que servem os filhos”. A mulher ao balcão: “Eles são muito trabalhadores…”

   A conversa já vai longa quando alguém ganha coragem depois de mais um copo. “Afinal, de que morreu o Manel?” O Manuel, que já andava mal do fígado e vesícula, terá falecido de um fulminante cancro no pâncreas. “Pobre Manel, foi o dia dele”.

   Lá fora, o largo deserto batido pelo vento. A serra encolhe-se de frio. Um a um, os homens vão saindo na direcção do promontório de ciprestes onde sobressai a igreja branca do Colmeal. As mulheres há muito que já lá estão. O café esvazia. Só lá fica um idoso, com as maçãs do rosto rosadas, bigode escuro, boina preta e olhos de raposa: “Eu já não tenho pernas para acompanhar o funeral, vou beber mais um copito. Coitado do Manel, este já não vai ao meu funeral. Dá-me lá mais um”.

in “Portugal a pé”, de Nuno Ferreira, Novembro de 2011, págs. 220 a 222   

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma recordação triste e, apesar da tristeza, uma homenagem à memória do nosso conterrâneo e amigo. Fora os pormenores, muito bem observado! E escrito! Vou ler o livro do jornalista logo que o encontre.

Açor, Colmeal
Lisete de Matos

Anónimo disse...

Se fosse vivo, o Tio Manuel, fazia hoje anos...
Saudades...